Jung Hoje, Jung Amanhã

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Jung Hoje, Jung Amanhã
Andrew Samuels

Uma nova peça montada no prestigioso teatro britânico, Royal National Theatre, sobre os primórdios da psicanálise oferece a chance de reavaliar a reputação de Jung, sugere o analista junguiano Andrew Samuels.

A presença do famoso ator Ralph Fiennes no papel de Carl Gustav Jung na nova peça de Christopher Hampton produzida no Royal National Theatre, a qual trata da relação de Jung, Freud e Sabina Spielrein (The talking cure), suscitou reações da crítica e do público em geral. Inevitavelmente, nós tomamos conhecimento do caso amoroso de Jung com sua paciente (ou ex-paciente), do impacto que este teria causado sobre seu casamento com Emma, assim como o quanto Spielrein teria se colocado entre esses dois poderes narcísicos do surgimento da psicanálise (um forçoso retrato da desvalorização do papel da mulher nas construções intelectuais, até os presentes dias), e como toda essa confusão causou a inevitável ruptura desses dois homens, sempre em evidência. Sexo e não a teoria da sexualidade será o principal interesse. De certa forma isto é pertinente ao que John Kerr revela no livro cuja peça se baseou (A Most Dangerous Method), Freud e Jung tinham algum poder de ordem sexual um sobre o outro: Freud sabia sobre Jung e Spielrein, Jung sabia sobre o suposto caso incestuoso de Freud com sua cunhada Minna Bernays.
É pouco enfatizado o que Jung realmente disse em sua defesa. Mas há razões para pensar, já que o último século foi chamado de ‘O Século Freudiano’ que este poderá ser o de Jung. No presente momento há uma angústia coletiva sobre o que se entende por ‘o ocidente’. Fácil definir em contraposição ao supostamente fanático Islã (uma invenção política e da mídia que vem distorcendo aquela religião e cultura), que o que se designa por ocidental é um tópico bem mais complexo que clama uma abordagem junguiana. Por Jung ter se visto como um terapeuta da cultura ocidental, sua crítica pode soar como aquilo que muitas autoridades muçulmanas defendem, mas isto desperta em mim algo mais significante. Jung se desesperava com a unilateralidade da cultura ocidental, seu materialismo, sua exagerada dependência da racionalidade, a cisão corpo e mente e a falta de valorização no ocidente do sentido e significado. Ele até, num característico momento de genialidade imaginativa mesclada à uma inflação psicológica, tentou ser o terapeuta do Deus judaico-cristão, em seu iconoclástico livro Resposta a Jó.
Jung se voltou para outras culturas como forma de mapear os profundos problemas do ocidente, os quais envolviam muita idealização, porém o ponto principal sempre foi o mesmo: a existência de algo fundamentalmente desconectado na forma em que vivemos. Especificamente a falta de significado na vida das pessoas foi algo que fez Jung (e os analistas junguianos de hoje) considerar um motivo adequado para o trabalho clínico.
As neuroses e os sofrimentos emocionais, de acordo com Jung, sempre envolvem uma catastrófica perda de significado, implicando num vazio que só pode ser preenchido do interior, dado que as grandes religiões deixaram de ser efetivas enquanto veículos capazes de trazer significado de fora do Si mesmo. Pode parecer estranho nos termos do pensamento linear ver o sofrimento emocional ser causado pela perda de significado mas é um modo de se conceber a psicoterapia – e uma crítica social também- que visto de outra forma pode ser aguda e decidida.
Uma outra área aonde o discurso contemporâneo vem tomando um enfoque ‘junguiano’ é no que se refere ao papel dos gêneros. Por um lado, Jung foi bem conservador na sua avaliação dos papéis comportamentais de homens e mulheres. Porém, por outro lado, com sua teoria sobre animus e anima (algo que lhe ocorreu durante o seu relacionamento com Sabina Spielrein), ele nos ofereceu uma forma de enxergar várias posturas possíveis para as pessoas de ambos os sexos. Para a mulher, seu animus não é um pequeno homem dentro de sua cabeça mas um sinal da sua capacidade de ser e fazer mais coisas do que se pensa ser possível para uma mulher. Para o homem, a confrontação com a anima pode levá-lo a uma expansão similar de papéis. Animus e anima, como muitas escritoras feministas observaram, por exemplo a crítica literária Susan Rowland, podem ser idéias radicais de contracultura.
Quando eu ofereço palestras junguianas para um publico não-junguiano, eu sempre peço para as pessoas fazerem um simples teste de associação de palavras com a palavra estímulo ‘Jung’. A maioria das respostas (quase 100 %) é ‘Freud’. Isso certamente cria um problema para os junguianos, a medida que eles são sempre definidos como ‘o outro grupo’; sempre o Número Dois, assim eles têm que se esforçar ainda mais. O mais sério é que essa associação acaba por encobrir o fato de que existiu um ‘Jung’ pré-freudiano e não-freudiano. De qualquer forma, o que certamente fica destacado é o relacionamento entre eles dois. Existem diferentes formas de avaliar a separação de Freud e Jung: Como um desastre do qual a psicoterapia nunca se recuperou, ou como uma saudável libertação do mundo psicanalítico de uma desafortunada superficialização sobre ele.
Jung é certamente usado pela psicanálise institucional para mantê-los unidos, como um tipo de tribo inimiga. Isso implica em ignorar às pioneiras contribuições de Jung. O reconhecido historiador da psicanálise Paul Roazen comentou: ‘Poucas figuras responsáveis na psicanálise ficariam incomodadas hoje se um analista lhes apresentasse visões idênticas às de Jung em 1913’. Roazen estava se referindo à várias coisas, como o movimento da mãe para o centro do pensamento analítico, a realização que motiva os seres humanos além dos seus impulsos sexuais, a conseqüente reavaliação da arte, literatura e religião, a consciência de que os sonhos nos falam sobre exatamente como nós somos e não são elaborados enredos enganosos, a forma como a psicoterapia se estabeleceu como uma relação a dois, e não como algo que se refere à uma relação onde um ‘expert’ interpreta a vida interior de outra pessoa segundo uma teoria preexistente – todo esse enorme e importante desenvolvimento na psicanálise foi primeiro introduzido dentro da escola da psicologia analítica de Jung.
Se levarmos em conta a reputação de Jung seria errado terminar com um comentário otimista. Eu tenho defendido e insistido entre os analistas junguianos que nós façamos uma reparação ao anti-semitismo de Jung nos anos 30 reconhecendo e nos desculpando por isso e a comunidade junguiana como um todo está ativamente tentando concertar aquelas partes da teoria imprudentes ou simplesmente erradas. Jung sempre se defendeu contra a acusação de que suas idéias se harmonizam com a ideologia nazista, no entanto, para alguns, suas palavras e arrependimento soam como inadequados e não sinceros. Jung foi um homem ambicioso (assim como Freud) e ele viu a oportunidade de se tornar o principal psicólogo da Europa Central nos anos 30. Ele foi também uma pessoa muito intuitiva, no entanto seus escritos aos quais ele chamou ‘Psicologia judaica’ (i.e. psicanálise) são repetidamente muito problemáticos, existem algumas partes que devem ser repensadas. Por exemplo, o protesto de Jung sobre a imposição de um sistema de psicologia para todos, antecipando os psicólogos e terapeutas transculturais e interculturais que se guiam pelo sistema universal, e acabam deixando de fora um particular contexto social, quando isso não pode existir. A reflexão de Jung sobre como a posse de terra dos judeus, diferentemente da experiência histórica judaica, afetaria seu funcionamento psicológico enquanto grupo contribui para o nosso entendimento de ainda outros tópicos políticos recentes e polêmicos.
Andrew Samuels é Professor de Psicologia Analítica da Essex University e leciona Estudos Psicanalíticos a convite no Goldsmith’s College, University of London. Seu mais recente livro foi Políca no divã: Cidadania e vida interior.
Esse artigo foi publicado na revista New Stateman em Dezembro de 2002.

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Version English:

Jung Today, Jung Tomorrow

Andrew Samuels

A new play at Britain’s prestigious Royal National Theatre about the early days of psychoanalysis offers a chance to re-assess Jung’s reputation, suggests Jungian analyst Andrew Samuels

The presence of film star Ralph Fiennes as Carl Gustav Jung in the Royal National Theatre production of Christopher Hampton’s new play about Jung, Freud and Sabina Spielrein (The Talking Cure) determined critical and popular responses. Inevitably, we heard about Jung’s love affair with his patient (or ex-patient), the impact of the affair on his marriage to Emma, how Spielrein starts to shuttle between the two narcissistic oligarchs of the early psychoanalytic world (a compelling emblem of the belittlement of women’s role in intellectual endeavour, then and now), and how the whole shish-kebab made the rupture between the two men – always on the cards – into an inevitability. Sex, not the theory of sexuality, is going to be the main interest. In a way, this is apposite for, as John Kerr pointed out in the book on which the play is based (A Most Dangerous Method), Freud and Jung each had something sexual on the other: Freud knew about Jung and Spielrein, Jung knew about Freud’s supposed incestuous affair with Minna Bernays, his sister-in-law.

There was little focus on what Jung actually said and stood for. Yet, if the last century has been called ‘The Freudian Century’, there are reasons for thinking that this one could be Jung’s. Right now, there is collective agonising over what is meant by ‘the West’. Easy to define in contradistinction to a supposedly fanatical Islam (itself a political and media concoction and a distortion of that religion and culture), what it means to be Western is a much more complicated topic that cries out for a Jungian input. For Jung saw himself as a sort of therapist for Western culture and, if his criticisms of it do resonate with what many responsible Muslims are saying, then that strikes me as all the more significant. Jung despaired of the one-sidedness of Western culture, its materialism, over-dependence on rationality, the mind-body split, and the West’s loss of a sense of purpose and meaning. He even, in a characteristic moment of imaginative genius mixed with psychological inflation, tried to be the therapist of the Judaeo-Christian God, in his iconoclastic book Answer to Job.
Jung’s turn to other cultures as a way of addressing the West’s profound problems involved a lot of idealisation but the main point was always the same: there is something fundamentally ‘off’ in the way we live. Specifically, the lack of meaning in people’s lives was something that Jung (and today’s Jungian analysts) regard as a suitable matter for clinical work. Neurosis and emotional distress, according to Jung, always involve a catastrophic loss of meaning, implying a void that can only be filled from within, given that the great religions have ceased to be effective as conveyors of meaning from outside the self. It may sound odd in terms of linear thinking to see emotional distress as caused by a loss of meaning but it is a mode of conceiving of psychotherapy – and cultural critique as well – that, in their own ways, can be acute and tough-minded.
Another area where contemporary discourse is taking a ‘Jungian’ turn is that of gender roles. Jung was, on the one hand, rather conservative in what he thought were appropriate behaviours for women and men. But, on the other hand, with his theory of animus and anima (something that came to him during his relationship with Sabina Spielrein), he offers us a means of expanding what is possible for people of either sex. For a woman, her animus is not a little man in her head but a sign of her capacity to be and do more things than used to be thought possible for a woman; for a man, conforntation with the anima can lead to a similar expansion of roles. Animus and anima, as many feminist writers such as the literary critic Susan Rowland have noted, can be profoundly radical counter-cultural ideas.
When I give talks on Jung to non-Jungian audiences, I always ask them to do a simple word association test to the stimulus word ‘Jung’. The overwhelming response (virtually 100%) is ‘Freud’. This certainly makes a problem for Jungians if they are always defined in terms of ‘the other lot’; always Number Two, they have to try harder. More seriously, the association overlooks the fact that there was a very important pre-Freudian or non-Freudian ‘Jung’. Nevertheless, what surely gets highlighted is the relationship between these two. There are different ways of evaluating the split between Freud and Jung: as a disaster from which psychotherapy has never recovered, or a healthy ridding by the psychoanalytic world of an unfortunate ex crescence upon it.
Jung is certainly used by institutional psychoanalysis to keep itself together, as a sort of tribal enemy. This involves a degree of quite deliberate overlooking of Jung’s pioneering contributions. The distinguished historian of psychoanalysis Paul Roazen commented that ‘Few responsible figures in psychoanalysis would be disturbed today if an analyst were to present views identical to Jung’s in 1913’. Roazen was referring to such things as the move of the mother to the centre of psychoanalytic thinking, the realisation that humans are motivated by more than their sexual drive, consequent re-evaluation of art, literature and religion, an awareness that dreams tell us about ourselves just as we are and are not elaborate skeins of deception, the way in which psychotherapy has emerged as a two-person, relational business, not one expert interpreting the inner life of the other person in terms of a pre-existing theory – all of these hugely important developments in psychoanalysis were first introduced within Jung’s own school of analytical psychology.
It would be wrong to end on an upbeat note, from the point of view of Jung’s reputation. I have been prominent among Jungian analysts in insisting that we make reparation for Jung’s anti-semitism in the 1930s by acknowledging and apologising for it and the Jungian community as a whole is actively trying to fix those parts of the theories that are misguided or plain wrong. Jung always defended himself against the accusation that his ideas chimed with Nazi ideology, though, to some, his expression of regret seemed inadequate and insincere. Jung was an ambitious man (as was Freud) and he saw an opportunity to become the leading psychologist in Central Europe in the 1930s. He was also an intuitive person and, though his writings on what he called ‘Jewish psychology’ (i.e. psychoanalysis) are often deeply problematic, there are some nuggets therein that give one pause for thought. For example, Jung’s protest at the imposition of one system of psychology on everyone anticipates today’s transcultural and intercultural psychologists and therapists who hold that such a universal system, outside of a particular social context, cannot exist. And Jung’s musings about how the Jewish people’s possession of land, so far from their historic experience, would affect their psychological functioning as a group contributes to our understanding of yet another of today’s hot political topics.
Andrew Samuels is Professor of Analytical Psychology at the University of Essex and Visiting Professor of Psychoanalytic Studies at Goldsmith’s College, University of London. His most recent book was Politics on the Couch: Citizenship and the Internal Life.
This article was first published in the New Statesman magazine in December 2002.

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