Depressão na meia-idade e processo de individuação: a busca pela autorrealização
Autora: Fernanda Gomes Vasconcelos
Graduada em Psicologia pela Universidade Federal de Pernambuco, na área de Psicologia Clínica. Possui experiência de estágio extra-curricular e curricular em um CAPS de saúde mental, localizado em Recife-PE.
Endereço: Rua Guedes Pereira, número 105, apt 1101, Casa Amarela. CEP: 52060-150. Recife-PE.
Contato: fernandagvas@gmail.com; (81) 9998-5996
Sinopse
Para o sujeito que está envelhecendo, é um dever e uma necessidade prestar mais atenção ao seu si-mesmo. Quando atinge a meia-idade o sujeito começa a dar mais atenção a aspectos individuais e passa a questionar suas escolhas e onde estas o levaram. A tarefa mais importante desta fase é viver a vida não vivida em busca de ser mais realizado e trazer sentido à existência, porém, em alguns casos, esta chegada à meia-idade e o despertar de uma nova consciência podem levar ao sofrimento psíquico. Em nossa vida consciente estamos expostos a constantes estímulos que desviam nossa atenção do individual o tempo inteiro e podem acabar nos distanciando do caminho de nossa individualidade. A partir do contato com os símbolos apresentados em forma de sintomas, o indivíduo com depressão pode ter mais espaço para entrar em contato com o seu processo de individuação e, assim, com sua cura.
Palavras-chave: Meia-idade; depressão; individuação; vida não vivida; escolhas.
*
Viver implica realizar escolhas o tempo inteiro e, automaticamente, abdicar de tantas outras coisas. A escolha de seguir uma carreira, constituir uma família, fazer um investimento, comprar isto ou aquilo, dentre inúmeras possibilidades, geram milhões de não escolhas, das quais estamos sujeitos diariamente. Desde o momento em que acordamos até a hora em que vamos dormir estamos, constantemente, realizando escolhas. Estas, porém, podem ter grandes ou pequenas implicações em nossas vidas. A escolha do que iremos comer no café da manhã, por exemplo, talvez seja algo que, para a maioria, não demande muito esforço e nem traga sérias consequências para a vida psíquica. Já a escolha de uma profissão tem uma influência maior na rotina do indivíduo e, consequentemente, na sua psique. São essas grandes escolhas que põem rumo à vida de uma pessoa e definem os caminhos pelos quais ela irá passar. Grandes escolhas, porém, geram grandes não escolhas. Ser arquiteto é também não ser médico, filósofo, professor, etc.
Além das decisões feitas por nós, existem também aquelas das quais não temos controle. Jung (2008) aponta que há uma grande diferença entre uma decisão tomada conscientemente e uma situação espontânea que define alguma escolha. Na primeira situação estamos diante de uma conquista do ser civilizado, já na segunda há uma perda da alma que pode vir a ser a causa de uma neurose patológica (JUNG, 2008).
Em todo caso, aquilo que não é eleito por nós, se não fizermos algo em a relação a ele, passará a fazer parte de nossa vida não vivida e virá nos atormentar mais cedo ou mais tarde (JOHNSON; RUHL, 2010). De acordo com Johnson e Ruhl (2010), a vida não vivida inclui todos os aspectos essenciais do sujeito que não foram integrados à sua experiência. São talentos e capacidades que foram abandonados ao longo da primeira metade da vida e permaneceram inconscientes (JOHNSON; RUHL, 2010). Estes aspectos não vividos encontram lugar no subterrâneo da nossa psique e, à medida que vamos envelhecendo, podem tornar-se problemáticos se não forem resgatados (JOHNSON; RUHL, 2010).
É mais comum que a vida não vivida venha cobrar “satisfações” do sujeito na chamada meia-idade, ou seja, a partir da segunda metade de sua vida, momento em que este estaria mais ligado às suas questões inconscientes. Seria a época em que o indivíduo teria a oportunidade de buscar o significado de sua vida (GRINBERG, 2003). No início desta fase, que Jung (2011 v8/2) coloca como sendo entre os 35 e 40 anos, ocorrem mudanças sutis, que parecem começar no inconsciente, que tanto podem ser espécies de mudanças lentas no caráter do sujeito, como traços infantis que reaparecem, ou ainda diminuição de interesse em hábitos, sendo estes substituídos por outros. Johnson e Ruhl (2010) trazem que neste momento em que a vida não vivida desperta para ser vista pelo sujeito, a chamada crise da meia-idade, os comportamentos do indivíduo tendem a tomar um rumo oposto ao que era comum.
Na primeira metade da vida o sujeito está mais voltado para sua inserção social, a conquista de uma identidade e autonomia. Ele precisa passar pela adaptação ao coletivo, sendo isto uma condição necessária ao psicológico (GRINBERG, 2003). É um tempo voltado para expansão exterior, onde as forças de maturação dirigem-se para as capacidades de lidar com o mundo social (JOHNSON; RUHL, 2010). Porém, sua imersão em processos de massificação ameaça sua individualidade. Individualidade esta que não é sinônimo de isolamento, mas que preza por um maior conhecimento pessoal e busca relações sociais mais intensas (GRINBERG, 2003).
Os indivíduos são iguais na medida em que são inconscientes. Assim, quanto mais consciência tomam de suas individualidades, mais se diferenciam uns dos outros (JUNG, 2011 v8/2). Esta consciência individual é mais ampla e diferenciada, de forma que proporciona ao sujeito um maior grau de liberdade em relação às normas sociais (JUNG, 2011 v8/2). O sujeito de maior consciência individual possui comportamentos menos previsíveis e mais distantes da expectativa social (JUNG, 2011 v8/2).
Porém, com o decorrer do processo de desenvolvimento voltado mais para o social e não o individual atinge-se a idade adulta divido entre uma vida vivida e uma vida não vivida (JOHNSON; RUHL, 2010). Na segunda metade da vida, por percebermos que o tempo está se esgotando, podemos começar a sentir um vazio, um aprisionamento em uma vida que parece nos viver e existe uma cobrança maior da vida não vivida para que ocorra uma mudança de consciência (JOHNSON; RUHL, 2010). Segundo Johnson e Ruhl (2010) a tarefa mais importante da meia-idade é viver a vida não vivida em busca de ser mais realizado e trazer sentido à existência. Ao explorarmos a vida não vivida, ultrapassamos os limites de nossos medos, anseios e decepções, adquirimos nova vitalidade e energia e aprendemos a expandir nossa visão para além da consciência comum, assumindo nossa forma plena de ser (JOHNSON; RUHL, 2010).
Espera-se que na meia-idade o sujeito já tenha mais capacidade para fazer reflexões sobre sua vida pessoal e força psíquica suficiente para que seu ego passe por autocríticas (JOHNSON; RUHL, 2010). Para o sujeito que está envelhecendo, é um dever e uma necessidade prestar mais atenção ao seu si-mesmo, enquanto que, para o jovem, ocupar-se consigo mesmo seria um desperdício de tempo (JUNG, 2011 8/2). Sendo assim, o indivíduo na meia-idade estaria mais acessível para seus conteúdos inconscientes e sua vida não vivida.
Sobre a vida não vivida pode-se dizer:
“São muitos – muitíssimos – os aspectos da vida que poderiam ser igualmente vividos, mas jazem no depósito de velharias, em meio a lembranças recobertas de pó; muitas vezes, no entanto, são brasas que continuam acesas por baixo de cinzas amareladas.” (JUNG, 2011 v8/2: 351)
É óbvio que ninguém é capaz de vivenciar tudo que existe de possível no mundo, mas existem coisas que precisam ser trazidas para nossa vida consciente, ou corremos ou risco de nunca nos realizarmos totalmente (JOHNSON; RUHL, 2010).
Quando atinge a meia-idade o sujeito começa a dar mais atenção a aspectos individuais e passa a questionar suas escolhas e onde estas o levaram. Em alguns casos esta chegada à meia-idade e o despertar de uma nova consciência, com um aspecto introvertido mais acentuado, podem levar ao sofrimento psíquico. Johnson e Ruhl (2010) colocam que quando o indivíduo está em depressão na meia-idade e passa a questionar suas escolhas é sinal de que a vida não vivida está chamando sua atenção.
O sofrimento psíquico acaba por distanciar o homem do convívio social, não sendo este sofrimento um simples sinônimo de um fracasso pessoal, e sim um problema comum a todos, que caracteriza uma época (JUNG, 1972). A sociedade moderna e suas atuais formas de funcionamento, tais como o consumo e a massificação, exigem do sujeito a inserção em um mercado de trabalho cada vez mais disputado. A cultura ocidental busca do indivíduo que este entre em um ritmo desenfreado de produção, onde qualquer pausa ou diminuição acarretará em uma perda de lugar (JOHNSON; RUHL, 2010). As obrigações sociais nos fazem escolher entre certas coisas de forma que, com o passar do tempo, acabamos nos tornando seres unilaterais (JOHNSON; RUHL, 2010). Por outro lado, somos chamados a vivenciar toda nossa plenitude do ser pelo Self e estes dois movimentos acabam gerando contradições e sofrimento (JOHNSON; RUHL, 2010). A dinâmica da modernidade não dá espaço para que as individualidades tenham importância e o próprio indivíduo tende a desvalorizar seus aspectos pessoais, em detrimento do coletivo. A neurose representa um sistema social enfermo (JUNG, 2008).
Em nossa vida consciente estamos expostos a vários tipos de influências (profissionais, sociais, etc.) que desviam nossa atenção do individual o tempo inteiro. Estes constantes estímulos podem acabar nos distanciando do caminho de nossa individualidade e, notando ou não, nosso consciente vai sendo afetado por isso sem possibilidade de defesa (JUNG, 2008). Quando nos damos conta, as coisas, de repente, parecem muito diferentes do que costumavam ser e surgem sintomas que querem nos dizer algo. Porém, se levarmos em consideração que a ideia patológica não surge de formal causal, em um momento aleatório, mas sim em um momento psicológico determinado, então podemos nos referir à psicogênese, ou seja, ao fato de que a causa ou a condição em que um distúrbio mental irrompe é de natureza psíquica (JUNG, 2011 v3).
Na clínica em saúde mental escuta-se constantes relatos de pacientes deprimidos que não sabem por que estão neste quadro, pois, segundo eles, não há motivos para tal. Eles sempre se acharam pessoas para cima, alegres, que tinham tudo o que desejavam e, sem mais nem menos, se viram sem ânimo, interesse e energia para enfrentar seus cotidianos. Na verdade, o que eles não sabiam é que estavam sendo afetados durante todo o tempo por suas escolhas, de forma que a entrada em um quadro depressivo, por mais que tenha aparentado ser de repente, não se deu de maneira aleatória.
Para Alvarenga (2007), sujeitos com depressão sofrem da chamada doença da alma. “Como expressão do sofrimento da alma, a depressão pode ser vista como um estado de aprisionamento no qual a pessoa se coloca, se sente ou se sabe, mas sem entender emocionalmente o porquê de estar nessa condição.” (ALVARENGA, 2007: 19).
Alvarenga (2007: 19) traz que, para a psiquiatria, a depressão é um “processo mórbido das manifestações relacionais, consigo mesmo e com o mundo”. O indivíduo com depressão apresenta irritabilidade aumentada, ansiedade, angústia, dificuldade de concentração, pensamentos negativos e incapacidade, parcial ou total, de sentir prazer e alegria com as vivências cotidianas (MORENO; MORENO, 1995 apud ALVARENGA, 2007). A depressão faz a pessoa sentir-se escrava de algo que não sabe o que é, pois a coloca em uma situação de aprisionamento em que não há uma explicação emocional precisa (ALVARENGA, 2007).
Para Jung (2008), os sintomas neuróticos possuem um significado simbólico, sendo, como os sonhos, um modo de expressão do inconsciente. Estes sintomas não são consequências exclusivas de uma doença, e sim exageros patológicos de acontecimentos comuns, e é justamente por serem exageros que aparecem mais em evidência (JUNG, 2008). Ao se penetrar nos segredos do doente vê-se que o sofrimento psíquico possui seu sistema próprio e se reconhece a doença mental enquanto reações inusitadas a problemas emocionais que abrangem todos os indivíduos (JUNG, 2011 v3). Sintomas de depressão, por exemplo, podem ser vistos em qualquer pessoa, porém em um grau mais reduzido, de forma que passam despercebidos e não chegam nem a formar um quadro depressivo. É a maneira como encaramos as situações da vida que tem, muitas vezes, grande influência naquilo que denominamos como patogênico ou não (JUNG, 2008 v16/1). Quando paramos para pensar porque algo é patológico, nos damos conta disso.
O sujeito em depressão na meia-idade pode acreditar que não há mais saída para ele. Então tenta, desesperadamente, voltar a ser o que era. Por não saber ao certo o que o levou a este quadro, ele busca apoio no seu passado, enxergando todos os momentos bons e felizes que viveu e guardando lembranças saudosistas. Como estamos sendo bombardeados o tempo inteiro por influências externas das quais não nos damos conta, nossa psique entra em sofrimento antes mesmo que possamos perceber. Todas as escolhas que fez, até então, sempre lhe pareceram certas e suficientes, mas algo está fora dos eixos. Ele não sabe o que é, ou até sabe, mas não consegue assumir, e pensa que seu caso não tem mais solução. Não consegue mais ser feliz com o passado que tinha. Tenta e deseja sentir prazer na vida que levava, mas não dá mais. Como irá mudar? O que precisa mudar?
“A condição de não poder criar um futuro diferente do provável coloca os escravizados cada vez mais prisioneiros de um passado idealizado e perdidos de si mesmos. Por mais acomodado que o aprisionado-deprimido seja, o Self não deixa de mandar notícias: sonhos, fantasias, ideação de morte – como expressão introvertida e subjetiva da dor da alma –, bem como os incontáveis sintomas físicos – como expressão extrovertida, objetiva da dimensão concreta da dor da alma.” (ALVARENGA, 2007: 20)
O deprimido vira escravo do seu saudosismo, pois ficar nesta situação o impede de buscar alguma mudança em sua vida, o que acaba sendo, de certa forma, bastante cômodo. Claro que esta não é uma decisão totalmente consciente e voluntária, mas é, talvez, uma defesa do ego diante das solicitações do Self. Muitas pessoas que chegam à meia-idade e se veem em um quadro depressivo acham que não tem mais tempo nem energia para mudar. O medo de arriscar em coisas novas é grande por colocar em risco o que já se tem, logo, permanecem presas a um passado idealizado. Quem se conecta ao passado, rejeitando o que é novo e estranho, está na mesma situação daquele que foge do passado e se identifica com o novo (JUNG, 2011 v8/2). Ambos mantem a consciência dentro de estreitos limites ao invés de lidar com a tensão dos opostos e, assim, atingir um nível de consciência maior e mais elevado (JUNG, 2011 v8/2).
Na meia-idade se espera que o sujeito esteja mais forte psiquicamente e que, com isso, seu ego seja mais receptivo a críticas, dando-lhe mais oportunidade de lidar com o diálogo entre o consciente e o inconsciente. Porém, isto não significa dizer que o processo de mudança seja fácil e acessível. A pessoa nessa fase pode temer a velhice que se aproxima e suas perspectivas de futuro se tornam sombrias, de forma que acaba se prendendo ao seu passado (JUNG, 2011 v8/2).
“(…) o homem adulto recua assustado diante da segunda metade da vida, como se o aguardassem tarefas desconhecidas e perigosas, ou como se sentisse ameaçado por sacrifícios e perdas que ele não teria condições de assumir, ou ainda como se a existência que ele levara até agora lhe parecesse tão bela e tão preciosa, que ele já não seria capaz de passar sem ela.” (JUNG, 2011 v8/2: 353)
Voltar ao passado não irá levar aqueles que enfrentam um processo de depressão a lugar algum, pois foi o passado que construiu o presente. Tudo o que vimos e sentimos anteriormente determina o que vemos e sentimos agora (JOHNSON; RUHL, 2010). Os anos que se passaram não podem ser trazidos de volta, porém, o contato com a vida não vivida pode nos trazer uma ideia de como seríamos caso tivéssemos seguido outros caminhos (JOHNSON; RUHL, 2010). Quando a vida não vivida é trazida à consciência pode nos levar para além de nossas limitações e em direção a uma maior e mais profunda consciência (JOHNSON; RUHL, 2010).
Incorporar sua vida não vivida ao consciente não significa ter que realizar tudo o que você não fez e gostaria de ter feito, e sim estar ciente desses aspectos e não deixar que eles se voltem para si de forma negativa. A vida simbólica seria a solução para tal. Através dela seríamos capazes de vivenciar potencialidades não exploradas e, com isso, atingirmos um maior desenvolvimento pessoal (JOHNSON; RUHL, 2010). Uma forma específica de imaginação, a imaginação ativa, também pode ser um meio para acessar a vida não vivida. Tudo que é vivido pela imaginação é uma experiência e, consequentemente, possui o poder de nos modificar (JOHNSON; RUHL, 2010). A vida simbólica pode expressar a necessidade da alma, levando os sujeitos a uma busca interior de sua inteireza (JOHNSON; RUHL, 2010). Na psicologia junguiana, este movimento de busca da totalidade, de vir a ser algo, vir a ser o que de fato se é, é chamado de processo de individuação.
Jung denominou de Self o centro organizador do sistema psíquico, sendo ele a totalidade absoluta da psique, funcionando como uma espécie de núcleo atômico (FRANZ, 2008). O Self só pode ser apreendido a partir do trabalho com sonhos, onde este aparece como um centro regulador que traz desenvolvimento e amadurecimento à personalidade. Porém, tal evolução vai depender do ego, que constitui uma pequena parte da psique, e de seu desejo e, prestar atenção aos sinais que surgem no material onírico, visto que é o ego quem permite que certos conteúdos atinjam a consciência (FRANZ, 2008).
A psicoterapia de base junguiana tem como um de seus pressupostos auxiliar o sujeito a entrar em contato com seu processo de individuação, não o levando a atingir a totalidade de seu ser, até porque o processo de individuação é contínuo e ininterrupto. Esta clínica não tem como objetivo ir em busca de um individualismo, mas sim de uma responsabilização do sujeito por seus atos, fazendo com que este se conheça, conheça sua maneira de ser e tenha coragem de assumi-la (JUNG, 2008 v16/1).
O trabalho com sonhos é uma das técnicas utilizadas nesta psicoterapia. Os sonhos fazem parte de um sistema de autorregulação psíquica, de forma que trazem indicadores (sintomas) da existência de falta de sintonia entre o sujeito e seu inconsciente (JUNG, 1972). Eles possuem uma função compensatória que busca reestabelecer, de maneira sutil, o equilíbrio psíquico (JUNG, 2008).
Os sonhos parecem obedecer a um determinado esquema, de forma que temas e tendências aparecem e desaparecem com certa constância. Se for dada atenção a tal esquema, se notará a existência de uma ação reguladora que dá margem para que se gere um lento e imperceptível processo de crescimento psíquico, o chamado processo de individuação (FRANZ, 2008). Tal processo tem como objetivo fazer o homem alcançar a sua unicidade, ou seja, buscar elementos ainda não conhecidos por ninguém. Cada pessoa deve realizar algo exclusivamente seu, pois cada um tem uma maneira própria de autorrealização (FRANZ, 2008).
Para realizarmos o processo de individuação é preciso nos submetermos conscientemente ao inconsciente, buscando dar atenção ao que o Self deseja. Isto pode ser feito através da interpretação do material onírico. O processo de individuação só é real a partir do momento que o sujeito está consciente dele (FRANZ, 2008). O ego precisa ser capaz de entregar-se ao impulso interior do crescimento, deixando de lado os planejamentos mais conscientes e racionais (FRANZ, 2008).
Isto não significa dizer que devamos abandonar projetos e planos de vida em função de sermos guiados por conteúdos inconscientes, e sim que deve existir um diálogo entre essas duas partes (consciente e inconsciente) que possibilite ao homem de se aproximar o máximo possível de se tornar aquilo que ele realmente é. Tornar-se quem de fato é, é ser levado à “totalidade”, que significa o sagrado ou a cura (JUNG, 1972). A descida ao inconsciente, a aproximação entre ego e Self, trarão ao sujeito sua individualidade – tendo em mente que este é um processo contínuo –, sendo esta, dito de outra forma, sua cura (JUNG, 1972). Este lugar é o da inconsciência primordial e, ao mesmo tempo, da cura, pois é onde está contida a possibilidade de um ser total (JUNG, 1972).
A partir do contato com os símbolos apresentados em forma de sintomas, o indivíduo com depressão pode ter mais espaço para entrar em contato com o seu processo de individuação e, assim, com sua cura. É importante que o psicólogo esteja ciente de que seu papel ali não é curar ninguém, sendo bastante cuidadoso para não impor suas vontades ao cliente (JUNG, 1972). As pessoas não podem ser desviadas de seus destinos, elas devem encontra-los às suas próprias maneiras (JUNG, 1972).
A personalidade do sujeito jamais poderá se desenvolver se ele não escolher seu próprio caminho de forma consciente. O desenvolvimento da personalidade não depende apenas da necessidade, que é seu motivo causador, mas também desta decisão consciente e moral por parte do indivíduo (JUNG, 2011 v17). Sem a necessidade o desenvolvimento fica sujeito à vontade, sem a decisão consciente fica sujeito a um automatismo instintual (JUNG, 2011, v17).
A harmonização entre o consciente e o Self é que é o verdadeiro processo de individuação (FRANZ, 2008). Todo ser possui a tendência a crescer e desenvolver-se. Assim é para o homem em relação ao seu corpo e sua psique, sendo ele capaz de tomar consciência de seu próprio processo de desenvolvimento, podendo influenciá-lo (SILVEIRA, 1997). É no confronto do consciente com o inconsciente, tanto no conflito como na colaboração entre eles, que os mais diversos componentes da personalidade amadurecem e se unem, sintetizando um indivíduo específico e inteiro (SILVEIRA, 1997).
O trabalho no sentido a individuação leva sempre em conta os aspectos coletivos da psique humana, o que permite se esperar por um melhor funcionamento do sujeito dentro da coletividade (SILVEIRA, 1997). Sendo assim, este processo inclui a integração de aspectos inconscientes – sombra, anima, animus – ao ego.
Após feita tal integração, na medida do possível, o inconsciente muda e aparece sob uma nova forma simbólica, representando o Self, que é o núcleo mais interior da psique. O centro da personalidade se estabelece no Self e a energia irradiada por ele englobará todo o sistema psíquico (SILVEIRA, 1997). Como consequência, haverá a totalização do ser, de maneira que o indivíduo não estará mais fragmentado interiormente. O sujeito, então, torna-se ele mesmo, completo, com suas partes claras e escuras, seu feminino e masculino, consciente e inconsciente, todos ordenados de acordo com uma base que lhe será peculiar (SILVEIRA, 1997).
Jung (1972) diz que o caminho para tornar-se neurótico é fazer ou crer em algo que não esteja em consonância com o que o sujeito, de fato, é, que seria tomar o caminho oposto do processo de individuação. O fato das convenções aumentarem, de alguma forma, mostra que a maioria das pessoas tende a seguir por elas ao invés de escolher seus próprios caminhos. Assim, seu desenvolvimento pessoal fica prejudicado, dando vez ao coletivo (JUNG, 2011 v17). Para o homem atual, é mais fácil e menos amedrontador seguir por caminhos que já foram desvendados por outros do que ir em busca do desconhecido (JUNG, 2011 v17). Os indivíduos buscam certezas e não dúvidas, resultados e não experimentos, assim procuram seguir por caminhos conhecidos, que lhes transmitam tranquilidade e segurança (JUNG, 2011 v8/2).
O indivíduo possui uma voz interior que, em meio a estas convenções sociais, pode sumir e dar lugar às necessidades do coletivo (JUNG, 2011 v17). A alguns, porém, ocorre que, mesmo estando distante desta voz interior e inconsciente de seu processo de individuação, são chamados por ela e passam a se deparar com problemas diferentes dos demais, dos quais ninguém nada sabe a respeito (JUNG, 2011 v17).
Seria possível dizer, então, que em casos de sujeitos com depressão na meia-idade, mais do que a vida não vivida tentando chamar atenção, estaria a voz interior querendo lhes dizer algo? Se pensarmos desta forma, podemos passar a encarar a depressão não como um acometimento negativo na vida de algumas pessoas, mas como uma possibilidade de despertar para o individual. E, melhor ainda, como um meio para se atingir a totalidade do ser. Jung (2011 v17: 196) diz: “Por trás da distorção neurótica se oculta a designação, o destino e a formação da personalidade, a realização completa da vontade vital inata em todo indivíduo. O homem desprovido de amor ao destino é o neurótico.”
O sujeito neurótico é aquele que está distante de seu inconsciente mas que, talvez justamente por sua neurose, é chamado a dar atenção a seus processos individuais. A meia-idade é uma fase em que, naturalmente, se espera que isso ocorra. Além disso, qualquer pessoa, a qualquer época da vida pode entrar em contato com seu lado mais inconsciente. Porém, acredita-se que é mais difícil que este contato se dê durante a primeira metade da vida. Por outro lado, estar na meia-idade não é certeza que se entrará em contato com o processo de individuação. Ou seja, cada pessoa tem sua história, sua vida, seus caminhos, de forma que cada um vai entrar em contato com sua individuação nos momentos que lhes for mais conveniente. A crença que nutro é, finalmente, que o processo depressivo na meia-idade pode ser o caminho que falta a alguns sujeitos para que estes entrem em contato com suas individualidades.
Referências Bibliográficas
ALVARENGA, M. Z. Depressão: a dor da alma de quem se perdeu de si mesmo. Junguiana, Rio de Janeiro, v. 25, p. 19-27, 2007.
FRANZ, M. L. V. O processo de individuação. In: JUNG, C. G. O homem e seus símbolos. 2 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.
GRINBERG, L. P. Jung o homem criativo. 2 ed. São Paulo: FTD, 2003.
JOHNSON, R. A.; RUHL, J. M. Viver a vida não vivida: A arte de lidar com sonhos não realizados e cumprir o seu propósito na segunda metade da vida. Petrópolis: Editora Vozes, 2010.
JUNG, C. G. A natureza da psique. 8 ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2011. (Obra Completa de C. G. Jung, v. 8/2).
______. A prática da psicoterapia. 11 ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2008. (Obra Completa de C. G. Jung, v. 16/1).
______. Chegando ao inconsciente. In: O homem e seus símbolos. 2 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.
______. Fundamentos de Psicologia Analítica: as conferências de Tavistock. Petrópolis: Editora Vozes, 1972. (Coleção Psicanálise)
______. O desenvolvimento da personalidade. 11 ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2011. (Obra Completa de C. G. Jung, v. 17).
______. Psicogênese das doenças mentais. 4 ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2011. (Obra completa de C. G. Jung, v. 3)
SILVEIRA, N. Jung: vida e obra. 16 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.