A RELAÇÃO DO SUJEITO CONTEMPORÂNEO COM O CORPO
Uma reflexão à luz da psicologia analítica
Raíssa Völker Rauter*
* Psicóloga, cientista política e Mestre em Psicologia Social pela Universidade de Brasília. Cursando a especialização em psicoterapia de orientação junguiana pela Associação Junguiana do Brasil.
Email: raissarauter@hotmail.com
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Sinopse: Este artigo traz a relação do sujeito contemporâneo com o corpo e os efeitos dessa relação sobre os afetos e a prática clínica. A cultura contemporânea globalizada é regida pela lógica do consumo, liquidez dos valores e fragilidade dos vínculos. Observa-se um superinvestimento na persona como tentativa de estabelecimento de vínculos, persona esta formada em função de aspectos corporais fundados na aparência. Na polaridade oposta, aspectos orgânicos do corpo são colocados à sombra. Para Jung, o corpo está incluído em uma totalidade unificada e é fundamental no processo de individuação. Os desdobramentos dessa cultura que exalta a aparência e nega a organicidade aparecem na clínica e passam pela estigmatização dos que se desviam da norma somática ideal, proliferação dos transtornos da imagem corporal e submissão compulsiva à moda publicitária. Convida-se o profissional em saúde a uma reflexão acerca de sua prática que, longe de ser normatizadora, pode ser libertadora e promotora da experiência do si-mesmo.
Palavras-chave: persona, corpo, cultura, individuação.
Este artigo lança um olhar para a sociedade e para a cultura1 contemporâneas, em particular na relação com o corpo no mundo urbano globalizado. Contrastando-se com a modernidade, que valoriza sobretudo a interioridade, o mundo contemporâneo voltou seu olhar para o corpo, tornando a aparência um valor fundamental. Esse deslocamento centrífugo do que se considera a essência humana repercute na clínica psicológica e na área de saúde em geral.
Mas o que cultura tem a ver com psicologia? O texto começa mostrando a relação entre a cultura e a psique humana, intrínsecas uma à outra. Segue-se apresentando resumidamente a conjuntura cultural em questão, com base nas contribuições de autores de outras áreas, como antropologia e sociologia, fazendo-se uma leitura dessas contribuições à luz da psicologia analítica. Em seguida, reflete-se acerca da visão de ser humano e de corpo predominante na contemporaneidade, contrastando-a com a perspectiva junguiana de corpo.
As vivências corporais são consideradas fundamentais para o processo de individuação, na visão de Jung. Na última parte do texto, reflete-se sobre as possibilidades e desafios que a cultura, agora tão voltada para o corpo, traz para o afeto humano e para a prática clínica.
Para que uma análise fosse possível, foi necessário um recorte no cenário multicultural do nosso País. O foco foi voltado para a cultura predominante nas camadas médias e altas das grandes cidades brasileiras. Note-se, portanto, a impossibilidade de uma generalização para toda sociedade brasileira.
A cultura e a psique humana
Ainda que a maioria das teorias psicoterápicas faça alguma referência à dimensão social do sujeito, o que prevalece é a ênfase nos processos subjetivos e intrapsíquicos (DUTRA, 2004). Na prática psicológica, ainda predomina a visão naturalizadora do sofrimento, associada à aplicação de técnicas pré-definidas e diagnósticos centrados em transtornos pré-classificados, ignorando-se as construções oriundas das tramas sociais que este sujeito vive.
No âmbito da psicologia analítica, poder-se-ia pensar que a ideia junguiana do substrato universal da psique, formada pelos arquétipos, seja meramente essencialista e incompatível com a noção de sujeito de história e de cultura. Isso não procede. Em “O Eu e o Inconsciente”, Jung (1981) diz que “do mesmo modo que o indivíduo não é apenas um ser singular e separado, mas também um ser social, a psique humana também não é algo isolado e totalmente individual, mas também um fenômeno coletivo” (p. 136, grifo no original). Esse substrato coletivo da psique se refere aos aspectos universais e também àqueles característicos de cada grupo sócio-cultural. Nas palavras de Jung (1981): “na medida em que há diferenciações correspondentes à raça, tribo ou mesmo à família, também há uma psique coletiva que pertence à raça, tribo e família, além de uma psique coletiva ‘universal’” (p. 136).
A cultura está contemplada de forma particular em um aspecto importante da personalidade: a persona. Trata-se, segundo Jung (1981), de uma máscara adotada para aparentar uma individualidade que, na verdade, é apenas um papel no qual fala a psique coletiva. A persona é formada a partir de um encontro entre uma aspiração individual e uma expectativa coletiva. Ainda que os aspectos valorizados pelo grupo social sejam decisivos na formação da persona, há algo de individual na escolha e definição dela, porque o si-mesmo não pode ser extinto, mas está sempre presente em algum grau (STEIN, 2006; JUNG, 1981).
A persona tem dupla função: possibilitar a relação do indivíduo com os objetos e proteger o sujeito. A função de proteção acontece quando a pessoa, em um papel (profissional, por exemplo), adota os comportamentos e gestuais previstos, estando assegurada sua aprovação, expondo tão somente aspectos da sua personalidade oportunos para uma boa adaptação. Isso é especialmente confortável para os introvertidos. “A persona, quando usada criativamente dentro do contexto de um forte desenvolvimento psicológico, funciona tanto para expressar quanto para esconder aspectos da personalidade” (STEIN, 2006, p. 109).
Stein (2006) aponta dois riscos que se corre no desenvolvimento da persona. Por um lado, o risco de superidentificação, de se considerarem excessivamente as expectativas externas em detrimento dos aspectos subjetivos. Por outro lado, pode-se não levar suficientemente em conta aquelas expectativas por um intenso envolvimento com o mundo interno, gerando então um certo grau de desadaptação.
Vemos que a cultura participa de forma importante na formação da personalidade, dentro da perspectiva junguiana. Proponho, portanto, que pensemos agora os aspectos culturais que circunscrevem a existência no mundo contemporâneo.
Liquidez, consumo e descarte de coisas e pessoas
Bauman (2009, 2005, 1998) faz um amplo e fino desenho macrossociológico da sociedade contemporânea, contextualizada no que chama de modernidade líquida. A liquidez que adjetiva esse momento se refere o caráter fluido, inconstante, mutável dos valores, hábitos, sentimentos e tudo que diz respeito à vida, incluindo os vínculos interpessoais. “As condições sob as quais agem seus membros mudam num tempo mais curto do que aquele necessário para a consolidação, em hábitos e rotinas, das formas de agir” (BAUMAN, 2009, p. 7).
No mundo contemporâneo, vivemos sob a égide do consumo. Novas demandas surgem permanentemente. O lema é consumir sempre para substituir o que rapidamente deve ser descartado por não ter mais valor. Enquanto estão sendo usados, os objetos imediatamente perdem a atração. A sociedade do consumo e, portanto, do descarte, acumula montanhas de lixo, depreda e saqueia o mundo exterior, visto como mero instrumento (BAUMAN, 2005).
Essa lógica se estende às relações interpessoais. Para Bauman (2009), os vínculos já não se prestam a cuidar dos afetos. Ao contrário, são de uma fragilidade e uma liquidez tais que são fonte potencial de angústia. Os objetos de desejo, sejam de que natureza forem, envelhecem e perdem o encanto muito rapidamente. Esses objetos, envolvidos na dinâmica de consumo e descarte, são também seres humanos. São as crianças que passam a ser vistas como tormento aos pais, que precisam acompanhar as exigências do mundo veloz; são os jovens vistos como problema; são os parceiros perdendo rapidamente o seu encanto inicial, e assim por diante.
Indo além, essa avaliação de adequação não se restringe ao outro, mas o exame volta-se para o próprio sujeito. O consumo tem a função de tornar as pessoas permanentemente viáveis, segundo critérios de moralidade que mudam rapidamente.
Não importa a intensidade com que se concentre no objeto do desejo. O olho do consumidor não pode deixar de dar uma espiada no valor de mercadoria do sujeito que deseja. Vida líquida significa constante autoexame, autocrítica e autocensura. A vida líquida alimenta a insatisfação do eu consigo mesmo (BAUMAN, 2009, p. 19, grifo do autor).
O corpo em cena
Os vínculos interpessoais são frágeis, os valores morais coletivos duradouros já não existem e a velocidade das mudanças atropela um sujeito que não tem controle sobre o mundo. Surge então a necessidade de alguma autonomia. Na visão do antropólogo David Le Breton (2009) e do filósofo Francisco Ortega (2008), o sujeito contemporâneo, diante dessa necessidade, volta-se para esfera privada, para buscar o que não encontra mais nas relações sociais.
O controle sobre o corpo e ocupar-se dele propicia algum grau de autonomia. O sujeito conquista um mundo portátil quando se volta para si mesmo. É com seu corpo que ele vai experimentar uma relação mais sólida e cúmplice do que as relações possíveis na sociabilidade comum. “É de fato a perda do corpo do mundo que leva o ator a se preocupar com seu corpo para dar corpo à sua existência” (LE BRETON, 2009, p. 54). É o corpo-parceiro.
Modificar o corpo entra também como possibilidade de produção de um sentimento de identidade mais favorável, o que se torna especialmente importante dada a incerteza da relação com o mundo. É uma possibilidade de estreitamento dos laços, porque é para a aparência que o olhar do outro se desloca, é a partir dela que o sujeito é deduzido. É o corpo-acessório, uma prótese do eu (LE BRETON, 2006).
A valorização da interioridade, das emoções, da intelectualidade, predominante na modernidade, dá lugar à valorização da exterioridade, da aparência, da performance. O eixo do eu é empurrado para fora (BIZERRIL, 2011; SIBILIA, 2008). O corpo passa a ser um objeto privilegiado de investimento, porque é nele que a identidade passa a se dar. Le Breton (2009) fala que “a interioridade do sujeito é um constante esforço de exterioridade” (p. 29), porque é estando na superfície que ele se torna ele mesmo. O corpo passa a ser “a prótese de um eu eternamente em busca de uma encarnação provisória para garantir um vestígio significativo de si” (p. 29). É algo que o sujeito porta, um acessório, um rascunho a ser corrigido permanentemente (LE BRETON, 2009), uma substância que precisa ser moldada aos modelos de felicidade hegemônicos – e transitórios (SIBILIA, 2008).
Ortega (2008) refere-se ao sujeito contemporâneo como indivíduo somático. A identidade da pessoa passou a ser um projeto reflexivo, no sentido de um “processo de taxação contínua de informação e peritagem sobre nós mesmos” (p. 32). Há forte ênfase em procedimentos de cuidados corporais, médicos e estéticos na construção das identidades pessoais, a que o autor se refere como bioidentidades.
O cuidado do corpo e a saúde passam a ser um fim em si mesmo, caracterizando assim o que Ortega (2008) chama de cultura somática. Nas culturas antigas clássicas, cuidar do corpo representava um meio para se atingir outros valores fundamentais, como a liberdade, e uma forma de resistência cultural e política. Hoje, porém, o corpo não mais carrega um valor simbólico de construção do eu, mas agora o corpo é essência e, em inversão, o eu existe para cuidar do corpo (ORTEGA, 2008).
Segundo Sibilia (2008), a essência do sujeito moderno é o que está dentro dele, uma polpa que não se pode tocar e que deve ser revelada. É a partir da interioridade que pode dizer o que o sujeito verdadeiramente é, e as aparências são consideradas enganosas2. Os recursos para este desvelar da essência interior estão ali à disposição, como é o caso da psicanálise, que desabrochou no terreno fértil da era moderna. O sujeito contemporâneo, por sua vez, enfrenta o que a autora chama de “tiranias da visibilidade”, por ser julgado e avaliado pela aparência, esta sim que diz quem ele realmente é. Na “sociedade do espetáculo”, o eixo em torno do qual as subjetividades se constroem se desloca, passando da alma para o corpo.
Sibilia (2008) mostra como os meios de comunicação e expressão de diversas épocas expressam diferentes formas de ser e estar no mundo e, ao mesmo tempo, contribuem para produzi-las. Instrumentos de criação de si geram modalidades subjetivas e corporais afinadas com momentos históricos e sua forma de perceber, vivenciar e compreender o mundo. Se outrora eram os diários íntimos e chaveados as ferramentas de auto-construção, hoje a intimidade está acessível a quase todo Planeta, pelos blogs e redes sociais. A subjetividade introdirigida dá lugar à alterdirigida. É preciso ser visto. Se ninguém me vê, é possível que eu não exista (SIBILIA, 2008).
Diz Birman (1999) que os corpos exaltados nesta conjuntura cultural são atores que se inserem como personagens. São máscaras para o desfile no cenário social. Uma estetização da existência que é acompanhada pela exaltação do eu, em um universo onde a imagem tem valor central.
Na terminologia junguiana, a incerteza da relação com um mundo de vínculos frágeis e valores inconstantes faz com que haja um forte investimento na persona, que tem justamente a função de interface com os objetos. É como se investir na persona fosse aumentar as possibilidades de pertencimento e laços. Ao mesmo tempo, a fragilidade das relações cria uma demanda de autopreservação afetiva, que a persona também possibilita. Além disso, a formação da persona está fortemente baseada em critérios corporais, estéticos, que, a propósito, mudam muito rapidamente. A metáfora de Stein (2006) relativa à persona parece mais adequada que nunca, quando diz que ela é a “pele psíquica entre o ego e o mundo” (p. 110, grifo meu).
O corpo fora de cena
Há, porém, um aparente paradoxo, porque, ao mesmo tempo que exalta a aparência, a sociedade ocidental construiu uma forma de sociabilidade que coloca o corpo à sombra, nutrindo seu apagamento3. Nas situações de elevador ou sala de espera, por exemplo, o sujeito contemporâneo se esforça para se fazer transparente diante do outro. E essa negação do corpo é socialmente institucionalizada. Quando nos escapa uma manifestação corporal, como um ronco no estômago, rompe-se a fluidez do teatro simbólico social e o corpo-excesso fica em evidência. Resta-nos estampar um falso semblante de que nada ocorreu ou usar o humor, que, afinal, autoriza abordagens proibidas (LE BRETON, 2011).
É sob a lógica do apagamento que as interações sociais se dão. Isso mostra que a “liberação” do corpo é mito, porque a convenção é se manter a exposição do corpo tão somente no leque de possibilidades da ritualística. O corpo liberado não é o corpo cotidiano, com pulsões, desejos, odores, idade, marcas, fadiga. A publicidade expõe o corpo, sempre usando recursos humorísticos, descontraídos ou estampando um corpo “perfeito”. Le Breton (2011) diz que a necessidade de lançar mão destes “desvios para proteger o objeto, ou a conduta, mostra bem que o corpo permanece impregnado de sentido e de valores, lugar simbólico que a publicidade tenta expurgar” (p. 208). E prossegue mostrando que, como a publicidade exclui o que emana do orgânico, “a ‘liberação’ do corpo se faz sob a égide da higiene, de um distanciamento da ‘animalidade’ do homem” (p. 208).
O que se vê aqui é um corpo à sombra, que não pode aparecer, em uma cultura em que a marca identitária está no corpo. O aparente paradoxo é perfeitamente explicável sob o ângulo junguiano. Persona e sombra são clássicos pares opostos na psique humana. Os critérios do que deve aparecer (persona) são os mesmos que definem o que se deve esconder (sombra), só que invertidos. A natureza é a mesma. Se há um corpo moldado e coletivamente padronizado que deve aparecer e identificar a pessoa, há um aspecto corporal individual que deve manter-se na escuridão.
Fica aqui um ponto de interrogação: fala-se de uma mudança de foco do interior para o exterior, fala-se do corpo… mas onde está a pessoa inteira? Que visão de corpo e, mais ainda, que visão de sujeito sustenta essa teia de sentidos?
O ser humano e o corpo na cultura globalizada contemporânea
A conjuntura contemporânea descrita pressupõe necessariamente uma visão de corpo muito particular, predominante no Ocidente, com duas características principais: o corpo é demarcador da individualidade; e o corpo é separado da pessoa (LE BRETON, 2006). Essa visão é histórica e culturalmente construída.
Le Breton (2011, 2006) traz exemplos de trabalhos etnológicos sobre culturas em que as pessoas não estão delimitadas pelos contornos do corpo. Em sociedades comunitárias e tradicionais, assim como em culturas arcaicas, o corpo é o elo de ligação com o coletivo: o corpo “não é índice de uma individualidade, mas uma diferença favorável às complementaridades necessárias à vida coletiva” (LE BRETON, 2011, p. 36, grifo meu). Esta concepção de sujeito inclui sua carne. O corpo não é separado do homem que, por sua vez, não é separado do cosmo, mas há entre eles relação de dependência, continuidade e influência mútua (PEREIRA, 2009).
Com o estabelecimento da mente racional na evolução da consciência, este sentido de união foi rompido. “O corpo tornou-se uma espécie de escravo da mente, e cada vez mais, à medida que os hábitos do homem se distanciaram das leis e ciclos da natureza” (PEREIRA, 2009, p. 221). O homem contemporâneo não mais vivencia o corpo, mas vive com o corpo. O corpo como algo separado da pessoa só é pensável, portanto, em sociedades individualistas em que as pessoas são separadas umas das outras. Esta noção está associada aos primeiros anatomistas e à filosofia mecanicista, tendo, portanto, uma demarcação histórica localizada entre os séculos XV e XVII. O surgimento do individualismo ocidental tem como momento-chave as primeiras dissecações oficiais no início do século XV e a banalização da prática nos séculos XVI e XVII (LE BRETON, 2006). Conhecemos cada vez mais sobre estrutura e funcionamento do corpo, mas estamos cada vez mais distante do seu funcionamento instintivo (PEREIRA, 2009).
É fundamental, portanto, relativizar as certezas perpetuadas nos nosso meio cultural, percebendo que o conhecimento biomédico4 do corpo é apenas uma representação entre outras existentes e, vale notar, é altamente eficaz para as práticas que sustenta. O corpo tem materialidade mas não coincide com ela. Uma vez que o ser humano é um ser de símbolos e de relações, o seu corpo é antes de tudo uma estrutura simbólica, uma construção social e cultural. Não se trata meramente de um agregado de órgãos arranjados segundo leis científicas (LE BRETON, 2006).
A psicologia junguiana não compartilha da visão fragmentada de ser humano. Jung considerava uma intolerável contradição a oposição entre matéria e espírito (FARAH, 2009). Como, então, se insere a noção de corpo na psicologia analítica?
O corpo na perspectiva junguiana
“A individuação só pode ocorrer quando retornamos ao corpo, à nossa terra. Só assim ela se torna verdadeira” (JUNG apud FARAH, 2009, p. 12). Esta frase resume a resposta à pergunta acima. O corpo, para Jung, é um caminho para a vivência da totalidade. Sem o corpo, o si-mesmo não se realiza. Ao contrário de uma visão dualista, aqui a psique humana é uma totalidade unificada que inclui o corpo (PEREIRA, 2009). Para o inconsciente, matéria e espírito não são equivalentes, mas idênticos (JUNG, 2000).
Jung relacionava o corpo a terra, ao que é denso e que mantém o sujeito no aqui e agora. Um relacionamento consciente com o corpo significa fidelidade à terra. São os fatos corporais que nos mantêm na vida real e “ajudam-nos a não perder nosso caminho no mundo das meras possibilidades, onde estamos simplesmente de olhos vendados” (JUNG apud FARAH, 2009, p. 11).
Jung destacava a importância da incorporação das experiências subjetivas no caminho para individuação. O que quer que seja deve ser experimentado no corpo para que tenha sido de fato experimentado. Caso contrário, o sujeito se mantém mergulhado nos mistérios simbólicos (FARAH, 2009). Para Jung, “a individuação só pode ocorrer quando é percebida, quando alguém está lá e a registra; de outro modo, é a eterna melodia do vento no deserto…” (apud FARAH, 2009, p.13).
Walter Boachat5 nos lembra de que o último estado da opus alquímica é o rubedo, a vermelhidão da vida, que remete ao sangue e, portanto, a um aspecto corporal. Diz Jung (apud EDINGER, 2006) que, após o sofrimento experienciado na nigredo, vem o estado de brancura, o albedo, que não é de fato vivido, mas é um estado abstrato. À matéria, “para insuflar-lhe vida, deve ter sangue (…). Só a experiência total de vida pode transformar este estado ideal de albedo em um modo de existência plenamente humano” (p. 165).
A psicologia analítica vê a pessoa como um ser integrado e reserva ao corpo um papel essencial no desenvolvimento psíquico e no processo de individuação. Isso nos leva a uma última reflexão: se o corpo é inerente à psique e seu desenvolvimento, quais as possibilidades e limites que a “cultura somática” impõe ao psiquismo do sujeito contemporâneo que estamos acompanhando na nossa prática clínica?
Os desdobramentos da cultura somática
Alguns autores reconhecem um potencial positivo neste movimento centrífugo do eixo identitário. Segundo Wurzba (2009), o voltar-se para o corpo pode sinalizar possibilidades de integração que não se configuravam na modernidade que tinha como ideal maior o intelecto. Para Farah (2009), se a inclusão do corpo nas questões da Psicologia ainda tem resistência por alguns profissionais, agora deve haver maior prontidão para essa inclusão, já que o corpo tem ocupado um lugar privilegiado.
Costa (2004), ainda que reconheça o lado nocivo da obsessão pelo corpo, diz que não há problema ético no quanto o sujeito se ocupa cuidando do corpo, mas o que importa perceber é a significação que esses cuidados assumem. O cuidado como fim em si mesmo é “corpolatria fútil” (p. 20), mas, se o interesse pelo corpo “volta-se para a ação pessoal criativa e amplia os horizontes da interação com os outros, isto não contraria os nossos credos morais básicos. O abuso não desautoriza o uso. Cuidar de si, aliás, pode ser o melhor meio de se colocar disponível para o outro.” (p. 20).
A cautela de Costa (2004) é louvável, já que, partindo de uma análise macro e das contribuições de outras áreas do conhecimento, como a antropologia, desvelamos a lógica que há por trás da inclusão do corpo na agenda, lógica esta que tem um preço alto para a subjetividade humana. O corpo para o qual se voltam os olhares não é o contemplado por Jung. Não é o corpo que aterra, o corpo de sangue. Não é o corpo que transforma imagens e possibilidades em experiências. Mas é o corpo acessório, o corpo parceiro, o corpo rascunho, o corpo prótese do eu.
Lembrando Ortega (2008), o sujeito contemporâneo exalta o corpo e investe nele como um fim em si mesmo. É isso que o vai tornar socialmente viável e moralmente adequado. Há um grande investimento na persona. Em compensação, cada vez mais nos fechamos para a sombra e todo o potencial criativo e integrador do encontro entre essas duas polaridades (STEIN, 2006). Deixando o corpo em sua organicidade em uma inacessível escuridão, dificultamos o percurso para totalidade e para a experiência plena de ser e estar no mundo (WURZBA, 2009).
Ortega (2008) aponta alguns desdobramentos da cultura somática. Destaco dois. O primeiro é de natureza ética: o valor da pessoa é dado segundo critérios de saúde, força, rigidez, longevidade e capacidade de cuidar de si. O que acontece com quem não joga o jogo do consumo inesgotável? Que lugar encontram aqueles que expõem o corpo que se quer apagar, como os deficientes ou os loucos?
O segundo é o desdobramento clínico, refletido no surgimento de transtornos baseados em disfunções orgânicas ou psicológicas (bulimia, anorexias, síndromes de pânico, depressões distímicas, drogadições, adições sexuais e consumistas…). Esses quadros “são medicamente reciclados e reinscritos na lógica do biopoder. Normalmente, as saídas prescritas para todas esses distúrbios jamais são saídas éticas ou biopolíticas, mas ao revés, sempre saídas médicas ou farmacológicas” (ORTEGA, 2008, p. 48). Mais do que nunca, hoje o sofrimento é localizado na bioquímica do sujeito. Perguntas maiores são deixadas de lado. É mais fácil intervir no nosso mundo portátil que questionar o mundo que nos atropela. Espera-se alcançar a felicidade cortando o cabelo ou regulando o neurotransmissor do cérebro, mas mal se pensa em rever as contas que se encadeiam no cartão de crédito, reconsiderar o emprego que deixa infeliz ou repensar a qualidade das relações.
Considerações finais
Este artigo é um convite à reflexão da nossa prática profissional. Se a conjuntura cultural contribui para o descarte de pessoas; se o paradoxo da aparência sem a presença do corpo traz sérias repercussões éticas e clínicas; se questões relacionais e culturais são naturalizadas na pessoa, tirando do grupo e de suas lideranças a responsabilidade por soluções efetivas; se tudo isso permanece em voga, há processos subjetivos que sustentam e viabilizam esta dinâmica. Não somos chamados a resolver questões socioeconômicas estruturais da sociedade, mas somos convocados sim a intervir naqueles processos subjetivos (MARTÍN-BARÓ, 1997).
Para que essa intervenção seja libertadora e não normatizadora e reguladora, deve-se problematizar o lugar social a partir do qual estamos vendo a realidade que nos é trazida e qual a visão de sujeito que estamos privilegiando no nosso olhar e na nossa intervenção. Precisamos confrontar nosso saber psicológico com os problemas novos que surgem no âmbito da cultura. Aplicar irrefletidamente teorias e técnicas que surgiram em outros contextos dificilmente contribui para nosso trabalho amplo de conscientização e libertação. Para que alcancemos uma compreensão adequada dos problemas mais profundos, precisamos partir da perspectiva histórica das pessoas de que nos propomos a cuidar (MARTÍN-BARÓ, 1997).
A pessoa tem que ser cuidada em sua totalidade. Não no corpo, não na mente, não no psiquismo, mas em tudo isso, que não são coisas separadas, mas compõem juntas um ser pertencente a um todo coletivo e cósmico. Trata-se de abrir possibilidades em vez de encerrá-las. Romper decididamente com visões essencialistas e naturalizadoras, injetando na veia métodos, técnicas e substâncias químicas invasivas e iatrogênicas. Trata-se de buscar novas formas de lidar e significar as experiências singulares do sujeito. Negar a busca por uma cura como a modificação de algo inadequado, errôneo, disfuncional, para se restabelecer a normalidade. Inspirar uma prática que não imponha a normalização dos excessos e a diluição das singularidades, mas que esteja pronta a uma escuta para a permanente reconsideração de suas certezas.
Diz Jung (1981, p. 143) que “a base da ordem social não é a lei, mas a imitação”, que é “uma faculdade muito valiosa para os propósitos coletivos, mas extremamente nociva para individuação”. Para o autor, a personalidade se desenvolve na medida em que se diferencia dos conteúdos coletivos. Isso não significa negar a cultura, mas abrir-se para o si-mesmo. É o que retrata a experiência de Pedro que, negando o Cristo, se dissolve na psique coletiva. Jung chama isso de “perda da alma”. Que possamos, portanto, pensar nossa prática de forma mais ampla e ética, promovendo, nesse sentido de Jung, menos perdas e mais encontros.
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Notas:
1. A cultura é aqui entendida como um contexto, um campo de possibilidades que circunscrevem a ação e, de forma mais ampla, a existência humana. Concordo com Barth (2000) quando sublinha o caráter tipicamente controverso e não-padronizado da cultura. Enquanto um sistema de significados, ela não é homogênea nem guarda consistência lógica.
2. Ao contrário da autora, uso aqui propositadamente o tempo presente dos verbos, porque a realidade do sujeito moderno existe no sujeito e na sociedade contemporâneos, em que formas culturais múltiplas podem coexistir, como aponta Bizerril (2011).
3. Os ritos de evitamento ou de regulação do contato físico demonstram isso. Pedir desculpa quando se toca a pessoa sem querer, não mostrar o corpo nu ou semi-nu sem um contexto em que isto seja previsto, são exemplos (LE BRETON, 2011).
4. O modelo biomédico “prioriza o orgânico e propõe que toda doença ou desordem física pode ser explicada por alterações no processo fisiológico resultante de lesões, desequilíbrios bioquímicos, infecções bacterianas ou virais e similares” (TRAVERSO-YÉPEZ, 2001, p. 50).
5. Em 3/12/2011, no I Grande Seminário do curso de formação em psicologia clínica de orientação junguiana, IJUSP/AJB, Brasília/DF.