As Bases Gnósticas do Pensamento de Jung

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As Bases Gnósticas do Pensamento de Jung
por Heloisa Cardoso*

I – INTRODUÇÃO:

A gnose atua sempre como uma subcorrente em relação ao pensamento hegemônico. Ela é o que se mantém oculto, no pólo dialético do ocultar-revelando e do revelar-ocultando, exigindo, desse modo, uma análise hermenêutica para o entendimento de seus pressupostos. Representa, assim, do ponto de vista da compreensão do homem e do mundo, a contracultura e as heresias em cada época, e possivelmente a semente do novo, do que está por vir.
A emergência de uma atitude gnóstica ocorre em relação às questões não respondidas, pelo paradigma hegemônico, e à perda do sentido da vida, com o desmoronamento dos valores, das culturas e instituições. Quando o paradigma já não é mais um referencial operante, quando se carecem de novos pressupostos e novas idéias; então, retoma-se o processo de conscientização para a subida em uma oitava superior, da qual o mito de Prometeu é uma metáfora.
A gnose pode manifestar-se na religião, na filosofia e na política (o mito do salvador da pátria = Hitler). A missão gnóstica é a de revelar o saber oculto, substituindo as trevas pela luz que amplie os níveis de consciência da humanidade. Foram gnoses religiosas: as de Alexandria, o cristianismo, o luteranismo, na atualidade os Brahma Kumaris etc. Nas gnoses filosóficas podem-se incluir o positivismo, o paradigma emergente, os estóicos, Hegel (e o Espírito alienado), Marx (e a dialética de exclusão entre opressores e oprimidos), Nietzshe (com a proclamação da morte de Deuse suas críticas ao racionalismo e ao cristianismo), Heidegger (e o Dasein), Jung (com seus arquétipos do inconsciente coletivo). Entre as gnoses políticas, o marxismo (em suas aplicações à praxis), Bakunin, Lênin, Sorel e o princípio do poder, o fascismo, enfim todas as “mystiques politiques” ou as “religiões políticas” etc.
O pressuposto metafísico da gnose institui o que está em cima como o que está embaixo; o que está dentro, como o que está fora: o microcosmo refletindo o macrocosmo, consoante a fórmula do CORPUS HERMETICUM. Trata-se, então, de estabelecer as correlações e analogias entre as duas realidades que, na verdade, expressam a mesma essência.
Do ponto de vista religioso, duas concepções se defrontam com dinâmicas bem diferentes: a religião como religare e como relegere – a primeira caracterizando o aspecto salvador da religião pela fé; a segunda, tentando promover a busca e o encontro com Deus, pelo conhecimento. Trata-se, nesta, do esforço libertador do autoconhecimento; naquela, do messianismo pela salvação coletiva através da fé. Confrontam-se, assim, as religiões oficiais e até de Estado e as religiões de mistérios, de sentido iniciático (os mistérios eleusinos, dionisíacos, órficos, na Grécia; o mitraico, adotado depois pelos militares de Roma; o culto praticado por escravos, o cristianismo em sua origem, o gênero apocalíptico, o maniqueísmo e outras).
Para o gnóstico não há questão proibida, tema tabu ou dogma, menos ainda a verdade revelada através de profetas ou oráculos. Assim, uma característica da gnose religiosa é a eliminação do intermediário autorizado (padre, ministro, pastor…) e a tentativa da experiência direta e, portanto, mística, de Deus. O pressuposto é o da imanência de Deus, habitando na alma humana, sendo dela o mais importante parceiro.
Na verdade o gnóstico já não é mais o buscador, aquele que está à procura das respostas: Ele já tem as respostas. Cristo disse: “Conhecei a verdade e Ela vos libertará!” Os gregos proclamavam: “Conhece-te a ti mesmo e conhecerás a Deus”.
A dicotomia entre essas duas concepções se concretizava, principalmente, pela existência de religiões oficiais ou de Estado versus as religiões de mistérios e o ritos de iniciação. Na verdade, a gnose é uma vivência mais que um simples conhecimento intelectual.
A grande questão, pois, colocada à indagação e ao coração do homem é a da origem da dor e do sofrimento do mundo. O próprio abandono do termo grego kosmos – que significa beleza – substituído pelo termo latino mundo, que era o buraco onde se jogavam os detritos na antiga Roma, é um poderoso indicador da radical mudança que se operara no inconsciente coletivo, na passagem do mundo pagão para o mundo cristão. O cristianismo fundou toda uma ética na base da dualidade entre corpo e alma, matéria e espírito, imanência e transcendência, anulando qualquer valor aos termos iniciais dos pares de opostos, tornando unilateral o desenvolvimento do espírito humano e, como adverte Jung, em certo sentido reprimiu seu lado sombrio, projetando-o em forças metafísicas, representantes do Mal.
E a queixa dos filhos de Raquel encontra eco em suas lamentações: “Quem nos jogou nas trevas” “Quem éramos nós?” “Onde estávamos?” “De onde fomos expulsos?” “Aonde nos precipitamos?” “De que temos de nos livrar para o retorno à nossa morada?” Estas são as eternas questões que todos os gnósticos se colocam, em qualquer época histórica, em qualquer latitude do Planeta.
E a resposta/explicação também é sempre a mesma: a verdadeira vida não é deste mundo, pertence aos mundos siderais – ao Paraíso, ao Cosmos, ao Nirvana, ao WU-CHI (não-sopro, vazio) etc. O mundo em que vivemos não passa de uma prisão para o espírito que vive o sentimento de ter sido expulso, de que está alienado, mas que experiencia a dialética dolorosa de querer fugir ao mundo e, ao mesmo tempo, dele tem medo de liberar-se.
Essa angústia ou leva o Homem ao desespero niilista, daquele que perdeu o contato com suas fontes superiores, ou força o caminho na busca do mito pessoal, daquele significado que torna toda vida digna de ser vivida e todo homem merecedor do respeito devido a seu ser consciente.
Inerente à essa última postura, coloca-se o mito da SALVAÇÃO, quer pelo Divino Mediador – Jesus, o Cristo – quer pela fé no encontro direto entre o Deus Transcendente e o Deus Imanente, a centelha de que todo homem é portador, e que estabelece o trânsito entre a dimensão temporal de nossa consciência corpórea e a eternidade, a dimensão própria do espírito.
As etapas da SALVAÇÃO passam por dois tipos de atitudes opostas: aquelas que se refugiam em práticas mágicas, revelando a crença egóica da possibilidade da interferência do Homem no Drama Cósmico; e aquelas que se referem ao êxtase místico, onde o abandono total do ego (o ascetismo), permite que o Self se manifeste, ativando a imago Dei, presente no recôndito da alma humana. Trata-se, portanto, de construir uma nova imagem do Homem…
Da mesma forma, do liberalismo ao indiferentismo ou ao ascetismo, a questão é sempre a de matar o homem velho, o mundo velho, de abandonar as velhas crenças e estruturas para se fazer nascer o homem novo, o mundo novo, perfazendo o caminho da agnóia (ou ignorância) à gnose (ou conhecimento). Este é o caminho da verdadeira SALVAÇÃO. Há, no entanto, pontos de vista divergentes, que não admitem a possibilidade da salvação, como os de Mani, concebendo uma luta cósmica infindável entre as forças da luz e das trevas, do bem e do mal, consagrando de vez um dualismo que até hoje se faz presente.
Como já dissemos, para o gnóstico não há pergunta proibida, não há tema tabu ou dogma, quando a civilização está em crise e o paradigma já não é mais um referencial. Nesses momentos surgirão vozes que falarão no deserto, mas que de qualquer forma indicarão o novo caminho e a boa nova. Assim foi com o ramo cristão do judaísmo, assim será na Nova Era que se avizinha, sedenta de novas sínteses, que derrubem os muros da incompreensão e coloquem as pontes da fraternidade, do amor e da paz. Até porque o século XXI será espiritual ou não será…
Urge um novo nível de consciência, a partir desse processo de conscientização individual e coletivo, que represente uma nova vinda de Prometeu com o fogo revivido do céu. Assim, a melhor postura de análise é a gnóstica, pois ela não se fecha em nenhum conhecimento, ou tradição; pelo contrário, busca sempre a revelação nas oitavas superiores, pois não se deixa levar pelas aparências do momento, nem pelas limitações pessoais. Lá onde o UM impera, o ensinamento flui sem reservas para todo aquele que ousar ouvir o coração do Eterno.
II – A GNOSE COMO ATITUDE ANTE A VIDA
Gnose, em grego, significa conhecimento e seu estudo como epistemologia ou teoria do conhecimento integra o campo da filosofia na atualidade. No presente texto, aludimos a uma concepção específica da gnose, cujas características passamos a enunciar.
O conhecimento ou a gnose surge como atitude ante a vida todas as vezes em que se carecem de novas estruturas intelectuais para compreender certas realidades. Quando novas questões são colocadas e novas respostas se tornam urgentes, homens e mulheres tentam a ultrapassagem do já constituído para instituir o novo mais abrangente, mais condizente.
Tanto movimentos espirituais, como reações de massa, podem significar que se está clamando por uma nova subida do nível de consciência coletiva, o que poderá ser constelado em um homem ou em grupo que afine seus ideais de vida, seus sonhos comuns.
E por que a atitude gnóstica tem este sabor de heresia (etimologicamente = aquele que pode escolher) e a de Alexandria foi assim efetivamente considerada? A resposta é simples, porque homens e mulheres, que ousam pensar e fazer de sua consciência o tribunal em que – como lembra Jung – se é ao mesmo tempo réu e juiz, tornam-se ameaça à ordem e ao poder constituído.
Do ponto de vista individual, quando se perde o sentido da vida, quando ruem os valores da moral convencional, quando as instituições já não mais atendem a seus objetivos, estabelece-se a busca. O mito da busca é a decorrência necessária do desconforto que sente o gnóstico diante da perda do paraíso pela queda ou exílio. E essa busca não tem apenas o sentido transcendente do misticismo religioso, ela também se manifesta no plano da matéria, como procura de um significado e de um entendimento para o Mal e para a Injustiça.
Mas não se trata apenas de novos referenciais teóricos: a gnose é sobretudo uma vivência, uma prática. O que caracteriza a vivência gnóstica é a percepção do mundo como algo estranho, sendo o homem um errante, à procura do retorno à sua verdadeira morada. Este é o sentido profundo da palavra ética em sua origem grega: hthos, isto é, a morada do homem. A gnose como atitude ante a vida deve ser utilizada não só em situações pessoais, mas em quaisquer eventos à nossa volta.
Sem dúvida uma questão instigante é saber se, em vez de ter prevalecido os cânones da Igreja Romana, o gnosticismo tivesse sobrevivido. De que forma isto teria afetado a cristandade e o Ocidente em geral?…
III – DA GNOSE AO GNOSTICISMO:
A gnose pode manifestar-se de modos diferentes, segundo a época em que emerge e as circunstâncias que lhe dão origem e significância. Assim, pode-se falar em gnoses pré-cristãs e pós-cristãs; em gnoses ascendentes e descendentes, intelectualistas ou pseudo-gnoses. Pensadores como Goethe, Marx, Nietzsche, Heidegger estruturaram sistemas gnósticos, tanto quanto Blavatski e Rudolf Steiner. Como sistema filosófico ou político, o gnosticimo aparece todas as vezes em que as circunstâncias retratam o esgotamento de uma dada situação.
Na história, os essênios entre os judeus, movimentos neo-pagãos, em Alexandria, novos mitos e até religiões políticas, a partir principalmente do Renascimento, surgiram, quer como parte do fenômeno das heresias, quer como novas interpretações da história do espírito humano.
Hoeller mostra que os essênios representavam, de fato, um judaísmo pré-cristão de caráter gnóstico, organizados em comunidades espalhadas, a partir da sede em Qumram, abarcando o Egito – Alexandria, portanto – toda a Judéia, atingindo Roma e a Ásia Menor. Tal organização era a matriz perfeita para abrigar o novo credo que se formava, sob a liderança de Jesus, provavelmente, o Mestre da Retidão, de que os essênios falavam (1990:47). Para maiores detalhes consultar OS MANUSCRITOS DO MAR MORTO, de Laperrousaz, s/d.
A gnose, como gnosticismo cristão, ocorreu entre o séculos II a V d.C. Como maniqueismo, ela se revela em todas as visões de mundo que promovem o embate entre as forças da luz e a das trevas, entre o Bem e o Mal, em seu sentido metafísico e absoluto. Como alquimia, na Idade Média européia, debruçou-se sobre uma tarefa que era verdadeira reviravolta de 180o graus, em relação à visão cristã oficial: não era mais Deus a salvar o homem de seus pecados, mas o homem a resgatar Deus do abraço mortal com a matéria, através da Magna Opus. Como kaballah, a gnose era um conhecimento reservado a poucos iniciados nos mistérios da língua hebraica e de seus símbolos revelados metaforicamente no Antigo Testamento. Constitui seu aspecto místico.
É bem verdade que houve diversas manifestações de gnose, tornando difícil falar desse movimento como uma unidade. Podemos perceber uma gnose mágica associada ao nome de Simão, o Mago, que se fazia acompanhar de uma prostituta que acreditava ser a encarnação da divina Helena, de Tróia (citado nos ATOS DOS APÓSTOLOS, no NOVO TESTAMENTO); ao lado da gnose mística e de práticas pneumáticas ou mediúnicas (hoje campo de estudos da parapsicologia).
Várias seitas iniciáticas se constituem em outras tantas gnoses, a saber: o templarismo, o catarismo, a maçonaria, o rosacrucianismo, a teosofia, a antroposofia etc. Todas entendem a gnose como auto-iluminação.
No presente texto, nosso interesse central é o sistema filosófico que se expandiu em Alexandria – a cidade, segundo Jung, em que o Oriente e o Ocidente se encontram – conhecido como a gnose de Alexandria, movimento carismático dos primeiros tempos do cristianismo. Nela coexistiam alguns tipos de gnose: a gnose mágica ou mística, a filosófica; a ofita ou naassena; a ascética ou liberal. A gnose ofita ou naassena, com seus adoradores da serpente (vide a serpente como símbolo do Cristo, citado em JUNG, C.G. SÍMBOLOS DA TRANSFORMAÇÃO, 1989), considera-a o divino canal pelo qual a consciência manifestou-se ao Homem; ao lado de vertentes ascéticas e de moral rígida, celibatárias, com alimentação especial etc. (como a de Marcião) e liberais, em que os excessos eram permitidos, no pressuposto de que o que quer que acontecesse ao corpo não poderia, de forma alguma, afetar a alma.
IV – A GNOSE DE ALEXANDRIA:
Os principais representantes da gnose de Alexandria (séc. II a V d.C.) são Valentino, Basilides, Carpócrates e Marcião.. “Quem nos jogou nas trevas?” A grande questão, pois, colocada à indagação e ao coração do homem é a da origem da dor e do sofrimento do mundo.
A resposta era dada mediante inspirações literárias e míticas, das quais destacamos quatro mitos:
1) o mito do paraíso perdido (o inconsciente urobórico);
2) o mito da queda ou da exclusão (a queda angélica e a queda adâmica = paralelo ao conceito grego da hybris X metron = não o mal no sentido ético do termo. O abandono pela família, como início do processo de individuação);
3) o mito da busca (sensação de alienação e de ter sido expulso, o herói ou a alma enfrentando as dificuldades e a aventura da vida);
4) o mito do eterno retorno (o estranhamento e fuga deste mundo – introspecção necessária à individuação), a sensação de ser errante ou estar de passagem; a sensação do déja-vu (teoria da reminiscência de Platão: toda lembrança é uma recordação); a necessidade de retorno à origem e à verdadeira vida dos espaços siderais – Cosmos, Paraíso, Nirvana (o medo da volta).
Desse ponto de vista mítico, as almas mais puras guardam a lembrança de sua origem divina e a ela querem retornar. Marcião funda uma seita religiosa, com base em práticas ascéticas e moral rígida, pelo pressuposto de que o corpo devia tornar-se sagrado, por ser o templo do Espírito nele aprisionado.
A atitude gnóstica não reconhece um mundo que é uma prisão. O gnosticismo busca o reconhecimento do que éramos, do que fomos, de onde estávamos, de onde fomos expulsos, aonde nos precipitamos e do que temos de nos livrar e renascer pelo impulso salvador do espírito (pneuma): “Não se põe vinho novo em odre velho”…Mito de morte e renascimento…
Que ensinavam estes mestres? Que havia um Deus supremo, increado, que era o máximo de Unidade. Que Deus não havia criado o mundo, mas este havia sido emanado de sua Sophia, segundo um mito gnóstico, através de desdobramentos (emanações) numa série complexa de entidades intermediárias – espíritos inferiores – que terminariam, estes sim, por criar o mundo.
Assim, o desprezo dos gnósticos era pelo kosmos do Demiurgo e não pela Natureza, onde Deus habita. Cultivavam, pois, a idéia de um deus imanente (o Anthropos), idéia que foi incorporada pelos alquimistas como a lumen naturae (a luz da Natureza). Na psicologia analítica, representa os instintos e o inconsciente. Cumpria salvar o homem do mundo, que nem era um cosmos, nem criação de Deus, diferençando-se os gnósticos, tanto dos gregos como do judaísmo-cristão sobre a questão da origem do mundo.
Teoria da emanação antes que da criação, nela já há um primeiro confronto com o que viria a ser a ortodoxia apostólica e seus pressupostos de crença: DEUS, a CRIAÇÃO e a REVELAÇÃO, através de alguns intermediários autorizados, os primeiros dos quais naturalmente os apóstolos, entre eles os que viriam a compor os evangelhos canônicos.
Para Carpócrates as almas humanas seriam anteriores à produção do mundo, tendo vivido, portanto no seio da divindade e experimentado a máxima Unidade (influência da teoria platônica das formas puras). Basilides supõe que as entidades divinas, vivendo no Estereoma celeste, teriam engendrado o primeiro ARCONTE e suas principais entidades (os éons). As principais emanações do Absoluto seriam: Sofia ou o lado feminino e criador de Deus: a sabedoria divina (sophos = Sábio), seu amor e misericórdia como a redentora do homem; o Nous, a inteligência e a sabedoria divina que rege todos os processos do universo; o Logos, isto é, o dizer, o Verbo que, ao nomear, impregna o ente de significação; a Energueia, a energia criadora; a Dynamis, como a força, o movimento universal, a Aletheia, a verdade, a descoberta (fonte do Logos, como princípio constitutivo da coesão e da Vida) e a Phronesis, discernimento e inteligência prática responsável pelo mundo da manifestação. Elas seriam os arcontes ou regentes do mundo, seus primeiros éons.
Com a criação do mundo pelo Demiurgo (YALDABAOTH ou JAVÉ), diz a gnose mítica que Sofia, desejosa de conhecer todos os meandros do Pai, cai nos mundos inferiores da matéria, apaixona-se e é por ela abraçada, não podendo mais afastar-se do convívio dos homens, também eles decaídos.
Por esse mito – das centelhas de luz (espírito) presas na matéria – se configuraria a possibilidade do Absoluto de, ao contemplar o Abismo, ter se entristecido com o “Não-Ser”, tendo suas lágrimas derramadas se transformado em centelhas de luz que se aprisionaram à realidade física. A alma e o espírito do homem… E o Eterno Deus Altíssimo sonhou ainda por muito tempo. No sonho ele viu o mundo que criou potencialmente, se expressar ciclo cósmico após ciclo cósmico (éons). Quando acordou do sonho, o Altíssimo deu um grande sorriso e, voando como um pássaro, lançou-se no abismo da noite, repartindo-se em milhares de pedaços que cintilavam com tal esplendor espiritual, com tal intensidade, que …Fez-se a luz!
Assim é que cada um de nós é uma partícula desta luz. A gnose mística sustenta ainda que é destino da humanidade descobrir sua unidade divina e reunir-se novamente, retornando ao lugar da queda, ao local onde feminino e masculino eram um só no Absoluto. A lenda ainda conta que para empreender feito de tal envergadura, o ser humano deverá encontrar embaixo, no elemento adâmico, a unidade perdida, para só então retornar ao Paraíso, coagulando-se com as milhares de miríades de si mesmo.
Sofia representará assim o arquétipo do amor divino pelos homens, a misericórdia de Deus pela criação, e seu retorno ao mundo divino expressa a exigência da redenção da humanidade. Enquanto aprisionada na matéria perdida entre os homens é a Sophia Achamot, aguardando sua redenção para voltar a ser a companheira de Deus, primícia de suas obras: a divina Sophia Shekiná.
Uma variante do mito diz que Deus, para criar o mundo, debruçou-se em uma janela e ficou longo tempo a sonhar. Era noite, o mais denso caos, e a sucessão de imagens passava pelos Pensamentos de Deus. Lá fora o negrume do abismo sem fim contrastava sobremaneira com os Pensamentos do Eterno. No seu sonho, Deus criava Adão, o homem universal à sua imagem refletida. Sonhou também que fez cair Adão em um profundo sono magnético, de modo que Adão adormeceu e o Ser Altíssimo tomou uma das imagens mentais com que este sonhava e revestiu de beleza e forma corporal a sua base. Depois consolidou a essência desse produto da imaginação que tinha extraído de Adão, fazendo dela sua esposa intelectual e lha trouxe. E o Eterno Deus Altíssimo sonhou ainda por muito tempo. No sonho ele viu o mundo que criou potencialmente, se expressar e manifestar. O final da lenda é misteriosa, pois termina com o Homem-Deus frente ao Superior Incógnito, um duplo seu: sua imagem e semelhança.
Compare-se com a teoria bíblica das quedas (angelical, de Samael, e humana, de Adão) opondo o problema do livre-arbítrio ao do destino, sem conseguir alcançar a noção de complementaridade entre os princípios, o que seria feito, do outro lado do mundo: na China taoista, com seus pares “yang/yin” e com uma ética que visava aproximar o jen tao (o tao do homem) ao ch’ien tao ( tao do Céu), tendo como modelo as leis naturais e cósmicas…
Assim, ao lado do Deus transcendente (ainda que escondido: Júpiter, Javé, Espírito Absoluto, Dialética Materialista), admitiam os gnósticos a imanência de Deus no coração do Homem, ou seja uma nova imagem do Homem, aceitando também que o Homem poderia vir a redimir o espírito, tanto quanto o Homem-Deus viera para redimir o Homem carnal. Nesse sentido – alquímico, por excelência – os gnósticos e depois os alquimistas farão a ponte entre o paganismo e o cristianismo, tanto quanto os essênios serão o elo entre o judaísmo e o cristianismo. Até chegar a Jung e sua contundente crítica ao cristianismo, em especial a relativa à transcendência de Deus, colocada como dogma de fé, e afastando a imagem divina da interioridade humana que, sem ela ressecou no materialismo vigente em nossa época (ver Dourley, J.P. – A DOENÇA QUE SOMOS NÓS, 1987).
A ação mítica de Lúcifer ou de Prometeu representa a possibilidade de subida do nível de consciência, graças ao impulso para a salvação que vem do espírito (pneuma) e, sobretudo, ao aspecto divino do feminino em seu afã de conhecer-se: Sofia, Lilith, Eva ou Pandora, por exemplo.
Podemos caracterizar, pois, a gnose de Alexandria como uma proposta de:
1) hierarquia entre os indivíduos (o homem hylético, o psíquico, o pneumático) versus a
hierarquia eclesiástica, que separava o clero dos fiéis. Como se percebe, tal hierarquia se
estabelece, consoante o desenvolvimento espiritual de cada um: os hyléticos, que vivem ao
nível da matéria: os psíquicos, que se deixam levar por suas paixões, só se alçam ao anímico e
os pneumáticos que alcançam o mundo espiritual propriamente dito. Em cada grau, no entanto,
havia perfeita igualdade, sem distinção entre os sexos ou entre fiéis e sacerdotes. Não havia, pois, uma hierarquia eclesiástica no sentido restrito do termo.
2) ausência do intérprete autorizado.
3) uma metafísica das relações entre o Criador e a criatura através de quatro movimentos: a
emanação, a criação, a formação e a manifestação.
4) configurar o criador do mundo na figura do demiurgo (responsável pelo mal e pelo
sofrimento). Ficam, assim, recusadas as idéias do judaísmo e do maniqueismo sobre o livre-
arbítrio ou o destino como origem do mal .
5) partir da idéia de um Deus imanente em complementação à de um Deus transcendente.
6) uma missão do homem redimindo o espírito (Deus), contrária à tradição de um Homem-Deus
redimindo o homem carnal. Nesse sentido a Alquimia se revela como continuação do
gnosticismo.
7) opor a idéia messiânica de uma salvação coletiva ao esforço libertador do autoconhecimento individual e solitário (A verdade vos libertará…Conhece-te a ti mesmo e conhecerás a Deus…).
Obs. O mal para os gnósticos não é apenas uma categoria moral, a hybris grega oposta ao métron, nem deve ser atribuído às quedas luciferina ou adâmica, em função do livre-arbítrio. “À pergunta: por que o homem deseja o mal?” respondem com a idéia de destino, como isca, colocado pelas moiras, entidades que urdiam o destino das coisas, na mitologia grega.
V – INFLUÊNCIAS GNÓSTICAS NO PENSAMENTO DE JUNG:
Jung encontrou nos gnósticos verdadeiros amigos, que lhe permitiram refazer elos históricos. Vislumbrou ele uma linha de continuidade entre suas descobertas relativas ao inconsciente, principalmente ao inconsciente coletivo – que nos identifica enquanto espécie – e as intuições dos mestres de Alexandria que, a seu modo, mítico ou especulativo, também eles iam ao encontro do inconsciente, ou de sua projeções.
Por uns foi acusado de ser gnóstico (a pior das heresias para os cristãos ortodoxos); por outros, de agnóstico (pela recusa de assumir pressupostos metafísicos). Para Stephan Hoeller, Jung foi um gnóstico. Não só por sua atitude ante a vida, trazendo novos conceitos e dimensões para explicar o humano, como pelo fato de que buscou o gnosticismo de Alexandria, nos séc. II a IV, de nossa era, como fundamento para muitas de suas idéias. Para Jung. o processo de individuação permite o autoconhecimento e a autotranscendência. Contudo, Jung é considerado, entre outras razões, como agnóstico, por recusar a fé como fundante da experiência de Deus. E isto fica muito claro, em sua entrevista à BBC de Londres, quando indagado se acreditava em Deus, ele responde: “Eu não creio em: eu sei!”.
A obra indiscutivelmente gnóstica de Jung é um pequeno texto, escrito sob a forma de poema-metafórico, intitulado OS SETE SERMÕES AOS MORTOS que ele assina sob o pseudônimo de Basilides, homenagem ao grande filósofo de Alexandria. Esse texto surgiu em circunstâncias estranhas, em uma atmosfera pesada, sentida até por seus filhos, ainda pequenos: campainhas tocando, sem que ninguém estivesse batendo; sonhos perturbadores etc., até que Jung resolveu pegar da pena e começou a escrever…E escreveu sobre a vida e a morte, tal como sentida por um gnóstico…
No 1o Sermão, Jung faz uma espécie de cosmogonia, indicando a natureza do elemento primordial, o PLEROMA, segundo a terminologia gnóstica, isto é: o Nada ou Vazio primordial, que paradoxalmente, contém potencialmente Tudo ou a Plenitude. Trata-se de uma dialética de ambigüidade. O conceito de inconsciente coletivo pode ser entendido como o PLEROMA dos gnósticos, em nível psicológico individual. É infinito e incognoscível, é eterno, transcendental, incriado e intemporal. Nele os conteúdos são indiferenciados, e, portanto, incognoscíveis, no entanto, ele é, ao mesmo tempo, a fonte e matriz da consciência e de todos os seus conteúdos.
Para Jung, o mundo criado se constitui de emanações e é penetrado pelo Pleroma, assim como um corpo é penetrado de luz. Daí, poder-se falar do Pleroma em nós, como um ponto pequeno e hipotético, no firmamento ilimitado do cosmos. Tudo que é definido e sólido é sujeito à mudança. A criação dos seres é fruto da diferenciação que exige o Principium Individuationis.
Nesse Sermão, Jung fala, pois, do princípio de individuação, um dos pilares de sua teoria, e que se constitui na diferenciação a ser feita entre os pares de opostos que emanam do Nada primordial. Tal diferenciação não é, para Jung, apenas uma questão intelectual, mas a necessidade de que cada ser atinja a verdade de sua própria natureza. Para ele, há, assim, uma dialética de implicação mútua entre o Criador e os seres criados, cabendo ao homem realizar a soma de suas potencialidades latentes, integradas no Si-mesmo, sua totalidade transconsciente.
A indiferenciação é como a morte, já que os opostos se anulam no Pleroma e, assim, Jung, diferentemente, de certas posições orientais dá grande valor ao trabalho consciente do ego, capaz de diferenciar os opostos. Na verdade, o estado anterior de igualdade é, para Jung, a anulação do indivíduo enquanto tal.
Esses representam emanações do Pleroma e se apresentam como syzygias (pares complementares de opostos), significando as qualidades do Pleroma em nós, pois o Pleroma em si é vazio e não tem qualidades. Dessa forma, Jung se apresenta não como um dualista, pois cada um deve transcender o fascínio de cada pólo e guardar a distância de cada um (função transcendente). Jung apoia-se aqui na idéia do conflito de opostos de Heráclito.
Diz ele: “Não a vossa mente, mas o vosso ser constitui a diferenciação”. Daí Jung recomendar que cada um de nós deve lutar por realizar sua verdadeira natureza, mantendo o raciocínio sob controle, através da gnose, sem anular as forças da vida. Trata-se de seguir o caminho fáustico, existencial, de viver a vida em sua plenitude.
A salvação do homem constitui, pois, em sua libertação dos pares de opostos, das syzygias que, em termos junguianos, se constituem dos aspectos positivos e negativos dos arquétipos. Como, para Jung, o inconsciente é a matriz da consciência, nós não temos os pensamentos, mas eles fluem para nós a partir do Pleroma (função psicológica da intuição) e abrem nossa consciência para a plenitude do Ser.
Assim, a verdadeira natureza do homem implica a relação dialética entre a consciência e a inconsciência, entre a moral e o instinto, sendo que nós no Ocidente privilegiamos a consciência, enquanto o Oriente desenvolveu mais seu relacionamento com o inconsciente.
Daí que o desejo de autoconhecimento, da mesma natureza que o desejo por alimento ou por sexo, é o movimento pela transformação, superando as unilateralidades da consciência pela compensação exercida pelo inconsciente. Se vida e liberdade se reconquistam a cada dia, podemos dizer que Jung é um precursor da psicologia existencial.
Na verdade, para ele, as teorias são apenas abstrações que nos afastam do mundo concreto e das conexões com nossa criatividade transformadora. Diz ele: É preciso mudar não os conceitos, mas a si mesmo, pondo o pensamento sob o controle do Self.
No 2o Sermão, Jung faz uma espécie de teogonia. Ele fala de Deus, que denomina de Helios (sol) e do demônio. Deus já pertence ao mundo criado, pois se diferencia do Pleroma (é uma qualidade deste), mas é menos definido e diferenciado que a própria criação. Deus é a plenitude efetiva, manifestada do Pleroma; é a criação como atividade. Ele é a potencialidade do bem e do mal. É como a luz das estrelas que nos guiam, enquanto o demônio é o espaço vazio manifestado, que circunda cada uma. Ele é também o vazio efetivo do ser e o mal, como um princípio que atua em nós. O que Deus constrói, o demônio destrói, numa trama eterna de criação e destruição.
Na psicologia junguiana, esses dois princípios estariam representados pelos arquétipos, as formas estruturantes de nossa psique e eles só existem se os discernirmos do Pleroma que eles também são.
Esse dualismo DEUS-DEMÔNIO (influências zoroastrinas e maniqueistas) só existe no mundo das emanações, como as primeiras manifestações do NADA ou do Pleroma resistindo um ao outro, como opostos ativos, pela atividade de ABRAXAS, o deus incognoscível da atividade real do todo, ou da não-realidade ativa do ser criado. No Pleroma, eles se anulam porque se unificam.
Para Jung, a atividade está acima de Deus e do Demônio, pois ABRAXAS, a atividade manifesta do Pleroma, preexiste a ambos e cria os seres diferenciados do Pleroma. Aqui é patente a influência de Goethe em Jung, quando no capítulo V, do Fausto, o poeta alemão diz: No princípio era a ação…
Assim, bem e mal não seriam encarados como realidades éticas ou morais (ele critica, pois, o cristianismo por ter reduzido o problema à sua única dimensão moral), mas como forças metafísicas (por sua magnitude titânica), o que explica o célebre antinomianismo (desprezo pelas leis dos homens) por parte dos gnósticos. Enfim, o que está em jogo é o princípio do poder, a persistência e a mutação em todos os seres, pois, para ele, a vida é uma tensão de opostos e o mal é o oposto necessário para que se reconheça o bem (yin/yang como complementares metafísicos). Como um é relativo ao outro, sua origem está no próprio homem. Em suma, o conflito é uma realidade psicológica necessária (Heráclito) ao processo de individuação. O arquétipo correspondente é o dos irmãos inimigos: Caim e Abel, Esaú e Jacó, Osiris e Seth etc.
Jung advoga a importância do reconhecimento de Deus na alma, como imago Dei, ou o Self. Desse modo, para ele, os arquétipos são o aspecto divinal da multiplicidade de deuses, são como que emanações divinas, como dito no item IV, sobre a gnose de Alexandria.
No 3o Sermão, Jung fala de ABRAXAS, uma espécie de atividade cósmica, igualmente doadora da vida e da morte. Nesse Sermão Jung atinge beleza literária, com suas metáforas, semelhantes às de Goethe, o supremo poeta da língua alemã.
ABRAXAS é a vida indefinível (seu nome tem 7 letras ou os sete regentes do mundo ou os raios criativos das esferas planetárias e significa “abir” = touro + “áxis” = pólo, eixo); é a energia psíquica, a atividade do todo, a mãe do bem e do mal, na dialética de ambigüidade em que o indivíduo se vê envolvido em sua ascese às esferas celestiais. É o élan vital, o arauto celestial, o poder supremo que une luz e treva, a energia vibrante e a suprema atividade responsável pelas primeiras manifestações do Pleroma.
Nesse sermão, Jung refere-se ao ano cósmico do touro e sua etimologia que, em grego e em hebraico, compõe o número 365 (para os gnósticos eram os diversos céus governados por ABRAXAS), o número de obstáculos psicológicos a serem vencidos, na totalidade do tempo, para a libertação. Trata-se, na verdade, de um eterno-agora (criador/destruidor ou Vishnu X Shiva), ligado à figura de Osiris, do Cristo ressuscitado para os gnósticos, enfim de todos os heróis que triunfaram sobre os regentes guardiães do ego humano (arquétipos ou os planetas, na astrologia, que definem o caráter daqueles que subjugam – Marte, a ira; Vênus, o erotismo, Mercúrio, a ambição, etc.) e sobre o tempo linear ou cíclico a que estavam sujeitos.
Esses regentes representam os poderes obstrutivos que caíram e se tornaram ignorantes e maléficos em camadas cada vez mais inferiores. Eles se opõem à busca e ao retorno às esferas e éons celestiais, a verdadeira fonte para o cumprimento das tarefas, obrigações, purificações e transformações.
Invocado por talismãs e amuletos, ABRAXAS afastava a influência limitadora dos Regentes do Mundo, auxiliando na ascensão a estados transcendentes. Ele é o primeiro dos mistérios. Dos homens, apenas os pneumáticos (espiritualizados) podiam destruir o tempo, libertando-se do ciclo das necessidades (o sansara budista: a roda dos nascimentos).
A salvação pela redenção de Jesus é um evento irreproduzível: mas a salvação pela ascese entre os éons é um evento reproduzível, pelo processo de crescimento espiritual. Do ponto de vista psicológico, ABRAXAS representa a união dos opostos, a dualidade complementar entre consciência e inconsciente. É a árvore e suas raízes escuras. É isto e aquilo; e não isto ou aquilo.
Assim, a luta pela individuação é a conquista das diferentes regiões do inconsciente por parte da consciência, pela renovação através do Self. O requisito é a libido ou a energia psíquica, a força espiritual titânica, impessoal e amoral, indiferenciada que perpetua a vida da psiqué, incluindo os opostos e não se ligando unilateralmente a um deles. O que importa é a plenitude do ser. Para isso, não basta o conhecimento intelectual, é preciso a sabedoria intuitiva. Trata-se de unir o demiurgo à Sophia.
A atitude da consciência em face de ABRAXAS não é a da simples contemplação ou veneração; mas a do temor, da reverência e da prudência. Não se deve resistir a ABRAXAS, porque ele representa o poder da Natureza, a aceitação do inconsciente, a permeabilidade entre a repressão e a servidão, pois na verdade nada acrescentamos nem subtraímos. Em suma, o 3o Sermão nos coloca diante da tarefa de projetarmos nossa alma para fora e para dentro, introjetando o arquétipo de Deus dentro de nós.
No 4o Sermão, Jung nos remete às relações entre dois princípios divinos que unem o bem e o mal: Deus-Sol, como bem supremo; o demônio, como o mal supremo. Eles se apresentam como Eros flamejante (a chama que brilha e devora e se apaga: a própria vida em toda a sua violência) e como a Árvore da Vida. O primeiro gerador e doador de vida; o segundo acumula a matéria viva enquanto cresce, estabilizando e construindo a cultura e a civilização. O Homem, em sua escalada espiritual, precisa de ambos os princípios. Eles são arquétipos que opõem a consciência aos instintos. Vida e amor opõem-se mutuamente em sua divindade.
Jung considera um politeísmo (e um polidemonismo) ao referir-se à quaternidade (quatro é o número das dimensões do mundo) dos deuses: o UM = o Deus-Sol, como princípio; o DOIS = Eros que se expande; o TRÊS = a Árvore da vida que dá forma aos seres, preenchendo o espaço com os corpos; e o QUARTO = o demônio, que abre o que está fechado, tudo dissolve e tudo destrói, conduzindo de volta ao nada. Deus é a estrela; o demônio é o espaço vazio por ela ocupado. O Pleroma é o vazio do todo e a unidade de tudo. ABRAXAS é a atividade do todo: o oposto de ABRAXAS é o irreal.
Ele também fala de uma multiplicidade de deuses que podem converter-se em UNIDADE, como símbolos e arquétipos; sendo que como deuses se encontram em solidão e separados, enquanto cabe ao Homem o movimento de libertar sua existência pela individuação, à base de uma nova ética.
Assim, Jung coloca-se como monoteísta, pois ele acha lastimável que se substitua a unidade de Deus – como união dos opostos – por uma diversidade que significaria a luta entre esses opostos. Indaga ele: “Como podeis ser leais à vossa natureza quando tentais fazer um dos muitos?”
Diz Jung: “O homem é um partícipe da essência dos deuses, ele vem dos deuses e vai para Deus” (o eterno retorno) . Mas acrescenta: há deuses da luz (celestiais que se expandem ao infinito) e deuses das trevas (que diminuem e encolhem infinitamente). E, assim, tem-se um mundo celestial, múltiplo, em expansão (HÉLIO) e um inferno que se contrai, é o espírito da Lua e o servo da Terra. O menor, o mais frio e inerte que a própria terra. Mas esses diferentes deuses são apenas a expansão e a contração ao infinito da mesma energia.
Nesse Sermão, Jung usa símbolos como os da sarça ardente e da árvore da vida e procura realçar que os pólos em luta na vida de cada um de nós são, de um lado, o corpo; do outro, o espírito; o sentimento versus o intelecto; o feminino versus o masculino; o instinto versus a civilização; Dioniso versus Apolo; ou o flamejante versus o florescente; a revolução versus a conservação; a guerra versus a paz; a destruição versus a construção.
Diante desses opostos, cabe ao homem a tarefa heróica, mística e ética, de centralizar-se em face de cada pólo, verticalizando-se ao imprimir à sua vida um sentido, uma significação através do Self ou da divindade interior: ao mesmo tempo deve horizontalizar-se, ao se colocar em relação com o Outro, buscando conhecê-lo na vida social, assumindo suas responsabilidades em face da nação (como entre os judeus) ou no domínio de uma fé comum (como entre os cristãos). Sendo o caminho, o do autoconhecimento e o da individuação.
Não se trata de uma pura e simples volta à Natureza (Rousseau), pois esta pode não ser pacífica e até ser destruidora, colocando-se acima do bem e do mal humanos. Aconselha Jung a segurança, a continuidade, a permanência ao lado da criatividade, da espontaneidade, assegurando tanto as instituições sociais, quanto a criatividade artística individual.
Ele alerta contra a trivialidade do cotidiano, das repetições e dos hábitos, que refazem sempre um retorno cíclico às acomodações costumeiras. Jung mostra os pontos positivos do florescente: a autopreservação e a nutrição, a cultura e a civilização que retratam a realidade do coletivo, exigindo tolerância, refreamento do instinto; e seus pontos negativos, como a repressão, propondo, em seu lugar, uma disciplina interior ou uma autodisciplina.
No 5o Sermão, Jung fala do Homem e da comunidade, para os cristãos primitivos, a Igreja ou ekklesia (assembléia do eleitorado: homens que se reconhecem como de origem divina). Constituem a oposição entre a espiritualidade (Pleroma, deuses celestiais) e a sexualidade (deuses terrestres); entre o Logos, Apolo e Minerva, de um lado; e Eros, Dioniso, Afrodite, de outro. É um problema energético que exige uma concessão à carne, pois representam demônios super-humanos, mais próximos do homem que dos deuses.
Nesse sermão, Jung fala do mito da Grande-Mãe (mater coelestis) e do phallos (pai telúrico), a matéria (hylé). O princípio celestial é feminino; o terrestre é masculino: o primeiro recebe e compreende; o segundo gera e cria. A união desses opostos engendra o Anthropos, o Andrógino, o Espírito, Logos e Sophia.
No homem, diz Jung, a sexualidade é mais terrena e a espiritualidade, mais celestial, na direção do maior. Na mulher, a sexualidade é mais celestial e a espiritualidade, mais terrena, na direção do menor. O conflito entre anima e animus beneficia a ambos, embora homem e mulher devam separar seus caminhos espirituais, segundo a natureza da diferenciação, para não se tornarem demônios um para o outro. “Cada um deve dirigir-se ao próprio lugar.”
De fato, para Jung, o homem deve separar-se da espiritualidade e também da sexualidade – colocando a necessária distância entre esses dois demônios para não ser vitimado por eles. O homem deve conhecer o que é menor; e a mulher o que é maior. Mesmo que esteja sujeito às leis da sexualidade e da espiritualidade (que são seres superiores e externos a ele), deve buscar apoio na comunidade, porque é fraco e pode ser por eles vitimado.
Nós não possuímos esses dois demônios; eles é que nos possuem, e se não nos diferenciarmos, ficaremos sujeitos às suas leis. Eles são causas comuns e perigos graves aos quais não se pode escapar. Por isso, devemos unir-nos em comunidade, compensando nossas fraquezas, ou sob o signo da mãe ou do pai (phallos). Assim, evitaremos sofrimentos e enfermidades, embora a comunidade fragmente e dissolva, pois a diferenciação conduz à solidão..
Na verdade, ensina Jung, a comunidade existe por causa dos deuses que forçam a uma comunhão, e ele mostra que, enquanto a vida em comunidade nos faz crescer em abrangência, a solidão do indivíduo que procura a si mesmo faz crescer em altura e profundidade. O primeiro dá calor, o segundo dá luz. O tema é a tensão entre o individual e o coletivo, entre o masculino que se resolve em profundidade e o feminino que engendra o silêncio (yang/yin). Pois, afinal, é da tensão dos opostos que se gera a energia e seu excedente é necessário à construção da cultura e da civilização, da arte e da estética, da religião etc.
É marcante a influência de Heráclito no pensamento de Jung, do princípio de que é da luta dos opostos que nasce a luz. Do ponto de vista psicológico, acha Jung que não se deve ter apego a qualquer dos pólos, nisso consistindo o valor transformativo do conflito.
Simbolicamente, Jung vê a comunidade feminina na cidade-mãe e a masculina na fortaleza-pai. Os opostos, psicologicamente, para Jung, se fundem, ou para produzir algo novo intrapsiquicamente (o andrógino alquímico); ou criam algo novo no campo de força entre eles, as duas pessoas interagindo com autonomia, mas na relação surgindo algo novo entre elas.
Eva é a feminilidade psíquica da intuição; Adão é a alma vivente, moroso, animalesco que se conscientiza através de Eva. Esta constatação não deve ser confundida com uma dualidade, em função da consciência diferenciadora, que considere o espiritual como bom e o animal, como mal. Nesse ponto, Jung critica o cristianismo hegemônico que acabou com o valor do conflito, considerando toda concessão à carne como pecado contra o espírito, traduzindo-se em culpa e desesperança.
Em conseqüência, surgiu um espiritualismo unilateral ao qual se opôs o Renascimento e, por sua vez, um antropocentrismo unilateral: materialista, trivializando a vida. Ele comenta sobre alternativas orientais – o taoísmo, o tantrismo – opostos que se complementam em luta criativa às premissas unilaterais ocidentais. É claro que Jung critica também a unilateralidade da espiritualidade de algumas seitas orientais, considerando como missão do Ocidente reviver seus próprios mitos, como a alquimia de Toth ou de Hermes.
Esse Sermão levanta, enfim, todo o problema das relações entre os sexos, não escapando às questões do feminismo, com suas implicações culturais. Mas o que verdadeiramente importa é a união dos opostos relativos à construção do gênero (masculino/feminino) em cada um de nós. A realização da androginia compondo 4 fases:
1) a do ego, do sexo ou da nigredo;
2) a do sexo unido à emoção ou da albedo;
3) a do amor romântico, projetado, ou da citredo;
4) a do hieros gamos, a rubedo, a introjeção do Cristo gnóstico ou do 2o Adão (o homem individuado).
No 6o Sermão, Jung analisa dois símbolos: o da serpente que corporifica a sexualidade, ou o pensamento do desejo; e o do pássaro branco, que corporifica a espiritualidade ou o desejo do pensamento. Mais uma vez considera o conflito entre sexualidade e espiritualidade, no Anthropos ou no Deus interior.
A serpente é a alma telúrica, mensageira do Pai Telúrico ou do PHALLOS; e o pássaro branco é o mediador entre o Homem e a Mãe Celestial. Interessante notar a inversão que aqui Jung faz, considerando a divindade celestial, feminina; e atribuindo caráter masculino à Terra.
Jung fala dos adoradores da serpente (os ofitas) e da kundalini. A serpente é como Mefistófeles a guiar Fausto. Ela representa a sabedoria sagrada dos instintos que resgata o 1o Adão da servidão ao demiurgo. É uma alma semidemoníaca, tem um caráter feminino, associada aos mortos que não passaram ao estado de solidão, e instila temor, inflamando o desejo.
Psicologicamente, trata-se de um espírito tirano e atormentador, tentando para a pior espécie de companhia. A serpente desce às profundezas, paralisa e estimula o demônio fálico. Traz pensamentos ardilosos saturados de desejo. Ela nos é útil ao escapar de nosso alcance e, ao persegui-la, ela nos mostra o caminho que, limitados, não poderíamos encontrar.
O pássaro branco é a alma semicelestial, casta e solitária; mensageira da MÃE CELESTE que intercede e adverte, embora não possua poderes contra os deuses. É o pensamento efetivo, masculino, é o desejo do pensamento que dá significado à vida, através do conflito. Comanda a solidão e recebe as mensagens dos que alcançaram a perfeição. Para atingir tal significado é preciso a gnose, como autoconhecimento, introspecção e consciência; ligada à pistis (confiança ou fé empírica). É um veículo do Sol.
Em sua dialética de oposições, Jung acha necessário incorporar os dois princípios: o pensamento e o desejo. Diz ele: “Cada oposto contém sua polaridade latente que pode emergir pela enantiodromia…O mistério dos opostos não é um problema a ser solucionado, mas uma condição a ser superada pela psiqué como um todo, não apenas pelo intelecto, levando à transformação na cadeia infinita dos opostos polares que formam a estrutura do ser.”
Criticando o racionalismo ocidental, Jung adverte para a questão do significado, da gnose como experiência da totalidade ou da inteireza. É um processo de tensão entre opostos e a posição gnóstica é um tipo especial de significado que deve ser vivido. Para Jung, a verdadeira ekklesia é a porção da humanidade que reconhece sua própria origem divina, é a pessoa consciente que busca a comunidade para fortalecer a vontade humana no sentido da individuação ou da solidão.
Isso gera a tensão entre o individual e o coletivo, já que o autoconhecimento ou a gnose, para ser atingida, exige a distância em relação ao coletivo que, no entanto, existe duplamente em nós, por via da consciência e do inconsciente.
Para o gnóstico, pecar é errar o alvo (etimologia do termo hermatia) e a questão da paz de espírito é apenas uma pausa entre o conflito passado e o conflito iminente. Mas como o conflito é que traz o significado, a gnose é a experiência desses significado, a compensação entre os opostos.
Hoeller considera que há diferenças entre a serpente gnóstica e a concepção junguiana dela. A primeira é sábia e sagrada, mensageira de SOPHIA e da consciência, tendo representado esse papel junto a Eva. Para os hindus, a serpente kundalini é um símbolo da individuação humana. Para Jung, ela é um demônio tirânico, com o qual, no entanto, se aprende, pois ensina a gerar-se a si mesmo, numa opus contra naturam, por sermos duais: carne e espírito, a serem transcendidos para se formar um novo Self.
Em aramaico, a palavra serpente quer dizer instruir, pelo simbolismo dual do anfíbio, por sua co-inerência de opostos num mesmo ser ou princípio. Comenta Hoeller que, na verdade, a serpente e o pássaro têm a mesma natureza: a feminina e a masculina, formando o Andrógino e fundando a divisão do Anthropos em terrestre e celeste.
Enfim, o pássaro branco é o pensamento, o espírito, a transcendência, o princípio salvador. É Hermes, como o deus da revelação, o mediador entre os homens e os deuses, levando-lhes a SOPHIA. O Anthropos hoje é pessoal e humano e deve precaver-se contra o perigo da inflação do ego.
No 7o Sermão, Jung fala do ser humano – criador de significados – como o portal por meio do qual penetramos do macrocosmos (o infinito exterior, o mundo dos deuses, dos demônios e das almas) no microcosmos (o infinito interior) e diz que “à imensurável distância cintila solitária uma estrela, no ponto mais alto do céu. Trata-se do único Deus desse solitário ser. É seu mundo, seu Pleroma, sua divindade”. É seu Deus pessoal…Simbolicamente, o pentagrama representaria o microcosmo, e o hexagrama o macrocosmo, representação do mundo das projeções.
O homem é o elo, o mediador que promove o equilíbrio entre o micro e o macrocosmos; mas isso ele só fará se, como ABRAXAS, for capaz de dar nascimento a seu próprio mundo, de mudar e transformar-se, operando a opus contra naturam, isto é, superando o mundo natural, criando um mundo de significados, acabando com as projeções ilusórias, libertando-se dos dualismos e de ABRAXAS, conquistando o Self, no retorno a Si-mesmo, unindo o micro e o macrocosmos, mediante a lei da sincronicidade, que traduz a eternidade interior e exterior, pela transgressividade dos arquétipos.
A estrela que cintila solitária é o Deus do homem e seu destino; é sua divindade tutelar e seu repouso. O fim da jornada de sua alma, nela reluzem todas as coisas com o brilho de uma grande luz. “A esse Ser, o homem deveria orar”, aumentando a luz da estrela, construindo uma ponte sobre a morte, aumentando a vida no microcosmo.
E só quando conquistado o seu Deus pessoal a ser gnosticamente vivenciado, além da fé e da crença cegas, com a imago Dei em seu coração é que o homem se sentirá interdependente com Deus, promovendo pela gnosis kardia – isto é, pelo “conhecimento do coração” que confere um significado à vida – o mito da redenção mútua e da encarnação contínua de Deus em cada indivíduo da espécie humana. Aí poderá vivenciar o mito do eterno retorno: RUMO AO LAR ENTRE AS ESTRELAS…
VI – CONCLUSÃO
Jung é um gnóstico, na medida em que vivencia a experiência direta e interior (1914-19) com as imagens arquetípicas: sombra, trevas etc., como o caminho do auto-conhecimento e da individuação.
O processo junguiano de individuação é a contrapartida moderna da luta pela aquisição gnóstica do autoconhecimento. Assim, salvar o Homem do mundo é para um gnóstico o que Jung denomina de desidentificação em relação ao Outro exterior e ao Outro interior, inclusive de sua Sombra, já que o Bem e o mal estariam contidos no Pleroma, a realidade indivisa primitiva, indiferenciada, para Jung, o inconsciente de Deus, contendo em potencial o caos e o cosmos.
Os Sermões representam a expressão metafórica de uma experiência interna. Assim, alguns paralelos podem ser traçados entre os princípios gnósticos e a psicologia junguiana. São em número de oito:
1- o elemento pneumatológico = Si-mesmo;
2- diálogo consciência/inconsciente, como a tentativa de experiência direta com a realidade
arquetípica;
3- processo de individuação como o percurso da alma para retornar à sua verdadeira morada, a
seu hthos, pelo processo de autoconhecimento;
4- a aceitação do mal, da dor e do sofrimento como ontologicamente substantes e não apenas
como ausência do Bem;
5- a vivência da alienação da consciência para atingir a plenitude;
6- o Pleroma, o Anthropos e o Si-mesmo, como a experiência dos opostos;
7- a plenitude do Si-mesmo como aspiração substitutiva à da santidade de Deus e dos santos;
8- a plenitude e não a perfeição moral como escolhas emocionalmente auto-sustentadas.
A teogonia de Jung é a projeção no macrocosmo da psiqué humana e os mitos de criação (cosmogônicos) descrevem o despertar da consciência a partir do inconsciente. Para ele, o Demiurgo é o ego ou o pequeno Si-mesmo. Nossos relacionamentos projetam nossos fracassos e inadequações interiores: é o reino da sombra, o vilão interior. Além disso, ele escolhe Sophia como a mais elevada entre as figuras de anima: Barbelo, Eva, Helena e Maria. Estas são representantes de fases anteriores do processo de autoconhecimento masculino, que é acionado quando a anima, ativada, conduz a alma para dentro do interior psíquico e produz a totalidade indispensável. Para ele, salvar o homem do mundo é um processo de desidentificação em relação ao Outro externo e ao Outro interno.
Jung diz mais: mudança sem transformação é um desastre: os elementos naturais apenas mudam, mas não se transformam, por isso é necessário realizar a opus contra naturam, para que haja real transformação e diminuam as projeções, preparando o homem para encarar sua própria luz interior, quando o Self retorna a si-mesmo, dando a quintessência do que foi e do que será.
Sobre a questão do mal, Jung pronuncia-se contra a teoria platônica, retomada por Santo Agostinho, de que o mal é a ignorância ou privação do Bem; para ele, o mal existe como pólo antinômico do Bem, atributos que se anulam no Pleroma. Isso ele afirma em seu Primeiro Sermão. Nessa questão, Jung coloca-se contra a teoria agostiniana da privatio boni, de origem platônica.
Jung levanta a hipótese da inconsciência de Deus, a partir do caos da indiferenciação ao cosmos, da lei, da ordem e da diferenciação. Para ele, não existem seres irreligiosos, apenas há os que não reconhecem o nível importante do inconsciente, o poder da imaginação e a dialética de compensação que efetiva, por meio dos símbolos, os conteúdos inconscientes. Mas acrescenta ele: a necessidade não é de uma crença e sim de uma experiência religiosa que integra a alma numa totalidade. Deus é para ser vivenciado, pois só o que experimenta está vivo, o que crê está morto. Daí a importância do controle da consciência que enriquece e beneficia a alquimia e a magia do inconsciente em suas projeções.
É assim que Jung dá grande importância à subida do nível de consciência, a partir do inconsciente urobórico e indiferenciado. Disso dão conta os mitos luciferinos e prometeicos, bem como os papéis de Lilith e Eva.
Na verdade, Jung acha que não somos nós que fazemos as imagens de Deus: “Elas é que se fazem”, constituindo-se a imago Dei num complexo autônomo de grande força e intensidade, arraigado na plenitude do Ser, na psiqué como um todo, cabendo apenas ao ego pessoal confiar nesse poder transcendente, que é o Deus que está na alma, como uma realidade viva, dando-nos o esplendor dos recursos suprapessoais, da criatividade e da auto-renúncia.
Tais idéias conduzem diretamente à relatividade da concepção de Deus, sendo a prece apenas o prazer que se extrai da experiência divina, como doação de si-mesmo a seu Deus interior: a gnosis kardia, já mencionada. Por via de conseqüência, o mito da encarnação contínua de Deus nos seres criados e a redenção mútua do homem e de Deus, idéias que Jung retomará na década dos 50, com seu “Resposta a Jó”.
No campo da moral, Jung aceita o antinomianismo dos gnósticos (não reconhecimento das leis ditadas pela moral convencional dos homens em sociedade) e propõe a ética da convicção pessoal, ditada pelo núcleo arquetípico da sabedoria interior que cada homem possui. Para ele, a meta da plenitude não deve ser confundida com os ideais da perfeição, pela via da imitação do Cristo.
Hoeller acha mesmo que a individuação pode implicar em ir-se contra os critérios estabelecidos pela sociedade, evidenciando um conflito entre a lei e a liberdade do indivíduo, único verdadeiro portador de consciência. (Cf. 1993:155).
Como Deus é uma união de opostos no Pleroma, a plenitude do Ser só ocorre no inconsciente coletivo: bem e mal, belo e feio, verdade e erro etc. Daí, a importância da integração da sombra, para compor a totalidade do indivíduo, incluindo seu lado negativo ou rejeitado no processo de individuação.
Acompanhando Hartmann e Schopenhauer, Jung concebe Deus como inconsciente, representado pelo caos e sua indiferenciação, tanto no inconsciente, como no cosmos. Resulta, então que a missão do homem é o resgate da diferenciação pela consciência, inclusive pela consciência do mal.
A subida do nível de consciência, cujos mitos principais, já apontados, são os de Lúcifer e de Prometeu é a verdadeira missão do homem na terra e o papel do feminino no processo de individuação (Lilith, Eva, Pandora) é reconhecido em diversos mitos de diferentes povos.
Jung segue ainda as idéias de um filósofo medieval – Joachim dei Fiori – que falava de uma Era do Pai, uma Era do Filho e uma Era do Espírito Santo. Em seu livro “Resposta a Jó”, Jung retoma essas idéias com seu mito de encarnação contínua de Deus e da redenção mútua do homem e de Deus.
Do ponto de vista religioso, aceitam os gnósticos de Alexandria, nesses primeiros séculos da Era de Peixes, a figura de Jesus – o homem perfeito – que encarna o CRISTO, o ungido, o Messias – emanação do Deus perfeito – para a redenção do Homem e da Humanidade. Jung, no entanto, criticará a unilateralidade da concepção cristã, com a ausência da sombra divina, o Leviatã. Ele fala, também, da sombra de Deus e do Cristo, ainda que não aceita oficialmente pelo cânones da Igreja. Ele se refere à figura do Anticristo, que surgiu no fim do primeiro milênio cristão, como uma enantiodromia à perfeição imaculada do Cristo. Aconselha ele que devemos temer a Deus e ensina que a idéia do anticristo é arquetípica, para completar o quatérnio: MAL X BEM; ESPÍRITO X MATÉRIA..
Em suma, a salvação ou redenção do Homem não se faz pela fé, mas pelo conhecimento – GNOSE (do grego = conhecimento). Mais precisamente, pelo autoconhecimento. Coincide assim o esforço gnóstico com o processo de individuação junguiano, a partir dos seguintes pressupostos:
1) – se há um Deus supremo, transcendente; por outro lado, há um Deus imanente, em cada ser
humano, que cumpre libertar e contactar, pela experiência direta do divino em nós;
2) – o caminho para isso é o da transformação da alma, cadinho onde as experiências místicas
ocorrem, e onde se cumpre (ou não) o casamento alquímico do Rei e da Rainha, do divino e do
humano, em nossos corações: é o Caminho da Individuação;
3) – a meta e o propósito da vida são, portanto, o atingimento desse estado de consciência, a
partir da inconsciência – da agnoia – anterior, sombra que sustenta o desabrochar da consciência
divina no Homem;
4) – o grande pecado da alma é a ignorância (avidya, em sânscrito) que a mantém nas trevas,
afastada de sua divina origem.
5) – a possibilidade de se realizar a transmutação da alma é sustentada pelos arquétipos,
elementos estruturantes da psiqué, padrões e formas dominantes que organizam o ego,
complexo do nível consciente, assim como as demais partes que se confrontam na arena
psíquica: a sombra – geralmente identificada pelos aspectos rejeitados, não assimilados que
permanecem subliminares na inconsciência; a persona – cuja base arquetípica permite a
adaptação ao mundo exterior, de relação, integrando a consciência coletiva no indivíduo etc.
6) – dos arquétipos – do pai, da mãe, do puer, da puella, do senex, do animus, da anima e outros – o principal, é o SELF (Si-mesmo), o que coordena, estrutura e corrige compensatoriamente os desvios das ações conscientes. Representa a imagem de Deus em nossa alma, o Deus interior, o Cristo imanente, objeto constante da busca gnóstica pelo conhecimento e pela devoção.
7) – por último, a relação dual entre matéria e espírito, se é resolvida por alguns gnósticos pela
negação da primeira e até por sua tentativa de supressão, por outros, mantido embora o
dualismo, a matéria é considerada divina, por ser o Templo que abriga o espírito e, assim, é
considerada e respeitada. Alguns gnósticos chegaram ao extremo de supor que nada do que
fosse materialmente feito poderia afetar o espírito, razão pela qual permitiam-se até exageros e
licenciosidades, condenados pelos demais (Carpócrates).
8) – ABRAXAS é a energia psíquica, a vida criativa que confere significado a partir da ilha da consciência que emerge do inconsciente. O mergulho neste, no entanto, exige o afastamento do espetáculo feérico da vida ativa sustentada por ABRAXAS.
Os Sete sermões representam a descida pelo setenário do Pleroma à psiqué humana, a criadora das imagens, sendo o homem o mediador entre as duas eternidades, e a sincronicidade o ponto de encontro entre ambas. Trata-se do encontro entre a física subatômica e a psicologia analítica.
É o homem que dá significado através da consciência – reino das avaliações subjetivas – contactando e ativando emocionalmente o inconsciente e, assim, trazendo as imagens arquetípicas à luz da consciência. Sendo os arquétipos psicofísicos ou psicóides, eles se manifestam nos dois planos, o que caracteriza sua transgressividade.
O homem, como alquimista e sacerdote dessa nova gnose, é um modelo unitário da realidade com conexões causais e acausais, reconciliando espírito e matéria, na unidade do mundo, na síntese do unus mundus. Vida e espírito se reúnem: o espírito dá o significado, mas ele não é nada sem a vida…
Sem dúvida, que a natureza dual da condição humana aconselha o convívio sábio com estas forças instintivas, inconscientes, que deverão ser encaminhadas – pela GNOSE, pelo reconhecimento – à luz da consciência, que delas retirará a necessária energia para a Grande Obra, a saber a transmutação do chumbo em ouro, da matéria bruta em matéria sutil, ultrapassando os sete corpos, os 32 caminhos e as 50 portas – estreitas que sejam – para se chegar à flor de ouro, que jaz escondida no fundo de nossas almas. Achá-la é o desafio diuturno da vida de cada um de nós!
No entanto, é preciso precaver-se contra o falso otimismo do poder positivo da mente: é preciso estar sempre de olhos abertos, sabendo introvertê-los, para fugir da sedução de ABRAXAS, encontrando o Deus interior que realiza a própria transformação, como realidade psíquica, que dá significado à vida, engendrando o processo de individuação.
BIBLIOGRAFIA
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* Livre-Docente e Doutora em Ciências pela UERJ. Pesquisadora da obra de Jung, com livros e artigos publicados.

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