Nelson Rodrigues e o teatro do desagradável: um olhar simbólico sobre a vida e obra do autor
por Cristiana Boavista
Psicóloga (CRP 05/29385) e arte-terapeuta
Introdução
Nelson Rodrigues revolucionou o teatro brasileiro, de tal forma, que chega a ser considerado por muitos, o maior dramaturgo nacional, sendo o autor cujas peças são mais montadas na atualidade.
No entanto, nem sempre foi assim. Suas peças retratavam a classe média carioca com a incrível crueza do cotidiano que conhecia tão bem. Essa forma de linguagem não era bem aceita pela crítica ainda influenciada pelos moldes de um teatro mais eloqüente e poético.
Nelson Rodrigues trazia para os palcos a palavra suada de rua, como dizia. E, enquanto filho do modernismo, se defendia:
“Meus diálogos são realmente pobres. Só eu sei o trabalho que me dá empobrecê-los.” (Castro, org.,1997: 47).
Mas além do estilo coloquial, suas peças tratavam de denunciar toda a hipocrisia que pairava sobre uma sociedade vítima da repressão sexual, revelando toda a perversão e deturpação dessa sexualidade latente.
Por flagrar aspectos da sombra coletiva, a obra de Nelson Rodrigues foi muitas vezes mal compreendida, censurada e suas peças tachadas como pornográficas, corrompedoras da família e dos bons costumes. Os críticos, chocados, não conseguiam enxergá-las em seus aspectos simbólicos, como arte.
Nelson sempre se utilizou de elementos obscenos em seu teatro catártico onde os personagens acabavam possuídos por seu lado mais primitivo.
“A ficção para ser purificadora precisa ser atroz. O personagem é vil para que não o sejamos. Ele realiza a miséria inconfessa de todos nós”. (id. Ibid.:161).
Através desse trabalho tento fazer uma análise das bases arquetípicas que se relacionam tanto à obra como à própria personalidade do autor afim de compreender o sentido do teatro que propunha enquanto purificador de desejos inconfessos. A interpretação aqui e a analogia que busquei fazer com diferentes mitos gregos, explicitamente presentes na obra de Nelson, principalmente em Senhora dos Afogados, pretende apenas traçar um esboço de uma personalidade criativa em confronto com questões pessoais que atingem a esfera coletiva. Tais bases arquetípicas que se relacionam à obra e a personalidade do autor se referem a aspectos patológicos de um homem do seu tempo. Se pensarmos na etimologia da palavra grega Pathos, paixão, ela parece bem concernente ao homem e dramaturgo que foi. E aqui vemos a função dos complexos como nos aponta J. Jacoby de “germe criador” cuja função é levar os conteúdos do inconsciente para o consciente e evocar a força criadora deles (1990: 35).
Nas palavras de Nelson: “Todo grande homem tem que ser obviamente obsessivo. Não sei se me entendem. Mas o ‘grande homem’ é a soma de suas idéias fixas. São elas que o potencializam”. (id. Ibid. :76).
Por fim cabe ainda ressaltar a relatividade de interpretações feitas a partir de dados biográficos.
A personalidade de Nelson Rodrigues
“Sou um menino que vê o amor pelo buraco da fechadura. Nunca fui outra coisa. Nasci menino, hei de morrer menino. E o buraco da fechadura é, realmente, a minha ótica de ficcionista. Sou (e sempre fui) um anjo pornográfico.”
(Castro, org.,1997:12)
Nelson Rodrigues pode ser considerado, de acordo com a tipologia de Jung, um intuitivo com uma função pensamento bastante diferenciada. O autor tinha a capacidade de mergulhar nas profundezas sombrias e trazê-las a tona de forma brutal num estilo quase que sarcástico como apenas uma pessoa com um forte poder de julgamento e crítica poderia. O retrato cru dessa natureza instintiva do homem que toca o absurdo, ganha um tom irônico, crítico, característico de sua arte quando trazido para o quotidiano mais banal.
“O aprofundamento da intuição leva naturalmente o indivíduo a um grande afastamento da realidade palpável, de modo a tornar-se completo enigma até para as pessoas mais chegadas. Se for artista, apresentará na sua arte coisas extraordinárias, estranhas ao mundo, reluzentes em todas as cores, ao mesmo tempo importantes e banais, belas e grotescas, sublimes e ridículas.” (Jung,1991: 378).
E de fato, a pessoa e a arte de Nelson Rodrigues sempre provocaram estranhamento. Segundo consta em sua biografia, quando menino já possuia certo ar melancólico de afastamento da realidade. Ao contrário dos irmãos, era avesso aos esportes, sua paixão pelo futebol era apenas de espectador, não se animava a ir à praia e precisava ser subornado para que participasse de brincadeiras na garagem.
“Uma atmosfera de fog envolvia Nelson à medida que ele entrava na adolescência. Estava ficando depressivo, como costumam ficar os meninos nessa idade – só que, nele, essa depressão era dramática, de tango, porque ele só faltava subir num caixote para proclamá-la. Vivia suspirando pelos cantos e, às vezes, soltava uma exclamação que certamente lera nos livros, mas que ninguém sabia se era sério ou não: ‘Eu sou um triste!’ – uma frase que, aliás, continuaria repetindo pela vida afora”. (Castro, 1992: 40).
Há algo nos estados melancólicos que poderia ser associado arquetipicamente à figura mítica de Saturno/ Cronos. Na alquimia, Saturno estaria relacionado ao chumbo, o escuro e pesado metal e também ao primeiro estágio, a putrefacto e mortificatio, no processo de transformação alquímico.
A figura mítica de Saturno/ Cronos remonta o tema mítico da sucessão do pai pelo filho. Trazido para a dimensão social, se analisarmos diferentes aspectos da figura de Cronos, poderíamos falar da necessidade de confronto com uma estrutura social, cultural que precisa ser renovada por já não atender mais às demandas da psique, no caso simbolizada pela imagem do velho rei. Tambem é interessante notar que Cronos não é o sucessor definitivo, pois está entre Úranos e Zeus, o que nos faz associá-lo ainda mais à esse momento de transição, onde o transgressor ainda possui certa fragilidade. Cronos não consegue se diferenciar totalmente, acabando por repetir as ações do pai e a ter assim o mesmo destino. Ainda se pode especular acerca dos estados depressivos em relação à figura de Cronos como uma luta a ser travada com esse Pai autoritário e devorador que impede a vida.
E de fato, Nelson Rodrigues, através de sua obra vai travar uma luta contra o pai coletivo sombrio, dogmático e repressor de sua época, que através de um moralismo hipócrita tenta esconder uma sexualidade cada vez mais deixada à sombra. A sexualidade perversa, que não é compatível com a atitude da cosciência pode ser comparada à prisão de Cronos no útero materno, enquanto aspecto da personalidade totalmente submerso no inconsciente e suas bases instintivas.
Segundo sua biografia, Nelson teria presenciado o assassinato do irmão, episódio extremamente traumático em sua vida.O fato teria ocorrido quando este tinha 17 anos na redação de jornal do seu pai onde Nelson trabalhava. A causa da morte seria uma matéria que havia saído no dia anterior revelando o adultério por parte da esposa de um casal de alta sociedade. Eis que então, essa senhora vai até o jornal com o intuito de se vingar do pai de Nelson e não o encontrando, dispara um tiro contra o irmão. Dois meses mais tarde, o pai morre profundamente deprimido pelo assassinato do filho em seu lugar, de derrame cerebral. E nesse drama novelesco vemos novamente a questão da hipocrisia social que parece impulsionar o autor no seu trabalho de despir seus personagens até de suas personas até as raízes sombrias e arquetípicas.
Mas, o conflito com o pai coletivo moralista é também interno, pois, enquanto homem de sua época, Nelson era uma personalidade marcada por grandes contradições, um conservador que ao mesmo tempo proclamava a liberdade, o que novamente nos remete à imagem de Cronos. “Sou um homem que cultiva velhos sentimentos de culpa. Lembro-me de coisas que fiz aos sete, oito anos. Não tenho ilusões. O canalha é uma dimensão que existe em mim ou em qualquer um. Eis que, nas minhas insônias, me pergunto: -‘O que é que eu fiz?’.” (Castro, org., 1997:48).
Os vários relacionamentos extra-conjugais mantidos ao longo da vida paralelos à um casamento indissolúvel com uma mulher bastante idealizada revela um drama comum do homem cristão que dividido, não consegue integrar os aspectos telúricos e espirituais de sua anima.
Os aspectos telúricos, ligados ao corpo, aparecem contaminados pela sombra, o que se revela nos componentes histéricos presentes em quase todos os personagens femininos de Nelson. A imagem da mulher ainda bastante presa à imagem materna gera uma cisão em que pureza e sexualidade se antagonizam. Em Álbum de Família o personagem Guilherme, um típico Puer Aeternus, referindo-se a mãe, diz que esta não poderia tomar conta da sua irmã pois “é uma mulher casada, conhece o amor – não é pura.” A irmã, no caso aparece como um duplo virginal da mãe.
“A contradição só aparece quando começa o desenvolvimento pessoal da psique e quando a razão descobre a natureza irreconciliável dos opostos. A consequência dessa descoberta é o conflito da repressão. Queremos ser bons e portanto devemos reprimir o mal, e com isto, o paraíso da psique coletiva chega ao fim. A repressão da psique coletiva foi uma condição necessária ao desenvolvimento da personalidade.” (Jung, 1996:24).
Nas palavras de Nelson:
“Só não estamos de quatro, urrando no bosque, porque o sentimento de culpa nos salva.” (Castro, org., 1997:48).
Porém, a repressão dos aspectos telúricos do feminino pode ter um efeito sombrio contaminador sobre a sexualidade e também a matéria. O mundo material torna-se ameaçador o que se acentua num tipo intuitivo como se supõe ter sido Nelson Rodrigues:
“O mundo é a casa errada do homem. Um simples resfriado que a gente tem, um golpe de ar, provam que o mundo é um péssimo anfitrião. O mundo não quer nada com o homem, daí as chuvas, o calor, as enchentes e toda sorte de problemas que o homem encontra para a sua acomodação, que, aliás, nunca se verificou. O homem deveria ter nascido no Paraíso.””(id. Ibid.:115)
Rui Castro que escreveu uma biografia sobre o autor relata algumas manifestações do insconsciente em Nelson: “…seus apelos à sensibilidade ficaram tão agudos que começou a enxergar miragens. Em ‘O elogio do silêncio’, de 23 de fevereiro, Nelson viu ‘flores que se transformam em lindos seios de mulher, seios que acabam como botões de rosa’. Em ‘A felicidade’, de 8 de março, comparou a lua a ‘uma prostituta velha que ainda se julga apetecível para rapazes que zombam dela’. E em ‘Palavras ao mar’, de 22 de março, descreveu ondas que ‘depois de altanarem num arremesso formidável, caem ruidosamente no torvelinho branco de espumas, parecendo um bando de mulheres se contorcendo em convulsões de amor’.” (1992: 65)
A estreita relação com o inconsciente conduziu o autor para além da dimensão pessoal e por tocar em questões coletivas seu teatro chocava, incomodava, gerava polêmica. É no seu trabalho como dramaturgo que Nelson Rodrigues vai transcender a oposição e conflito. Através de seu dom hermeneutico de escritor, que lhe permite comunicar o que se passa nos subterrâneos da psique, ele consegue unir profano e sagrado. “Mais importante são os ovários da alma. Os verdadeiros órgãos sexuais estão na alma!” (Castro, org., 1997:12)
Por vários aspectos, podemos fazer um paralelo entre à personalidade e obra de Nelson e a imagem do deus grego Dioniso. Nesse sentido vale a pena ressaltar o sentimento de aversão e estranhesa que suas peças sucitavam.
A reação negativa que sua obra despertava nos remete à perseguição de Dioniso pela rainha dos deuses, Hera:
“Através de um fragmento de Plutarco, concernente às antigas festas beócias das ‘Dédalas’, em honra de Hera, ficamos sabendo que, em Atenas, e possivelmente na Beócia, se evitava cuidadosamente todo e qualquer contato entre os objetos que pertenciam ao culto de Hera e aqueles pertencentes ao de Dioniso… A verdadeira muralha que separava os dois cultos era certamente consequência das características muito diferentes desse par antitético: de um lado, Hera, a teléia, a saber, a protetora dos casamentos, de outro, Dioniso, o deus das orgias, dos ‘desregramentos’.” (Brandão, 1996:121)
No entanto, sua arte representa uma reação criativa contra o que seriam as forças destrutivas de Hera, causadora do despedaçamento de Dioniso Zagreu. Do mesmo modo como Hermes salva Dioniso é através da sua arte que Nelson vai possibilitar essa convivência dos deuses rivais.
Em última análise, pode-se dizer que Nelson possuia uma sabedoria sobre os pântanos da alma humana o que revela um contato com o que Moore e Gillete chamam de arquétipo do Mago.
“O arquétipo do Mago num homem é o seu ‘detector de mentiras’, ele percebe a falsidade e exercita o discernimento. Ele descobre a maldade onde ela estiver oculta por trás da bondade, como tantas vezes acontece.” (Moore e Gillette, 1993:98).
A obra
“Para salvar a platéia, é preciso encher o palco de assassinos, de adúlteros, de insanos, em suma, de uma rajada de monstros.”
(Castro,org.,1997 :161).
As peças de Nelson Rodrigues podem ser divididas em três grupo temáticos: peças psicológicas, míticas e tragédias cariocas. Suas peças sempre girariam em torno dos mesmos mitologemas, caracterizando também seu estilo inconfundível. Ocorre que em certo momento da obra de Nelson há um aprofundamento até raízes bem primitivas do homem.
Esse caminho que Nelson percorre com sua dramaturgia assume a forma espiralar onde o autor vai percorrendo os mesmo temas com diferentes personagens que vão se tornando cada vez mais despidos de suas personas, instintivos e semelhantes à personagens míticos. Tal movimento se assemelha ao termo alquímico utilizado por Jung, circumambulatio, o andar em torno de um símbolo.
Assim analisa Sábato Magaldi, crítico e admirador da obra rodriguiana:
“A evolução dramatúgica de Nelson levava inevitavelmente a esse mergulho na inconsciência primitiva do homem. A Mulher Sem Pecado já estava carregada de motivos psicológicos, prestes a romper as barreiras da censura interior. Vestido de Noiva rasgou o véu da consciência, para dar livre curso às fantasias do subconsciente. Na exploração das verdades profundas do indivíduo, o passo seguinte se dirigiria para o estabelecimento dos arquétipos, dos mitos que se encontram nas origens das nossas forças ‘vitais’. A menos que traísse sua vocação autêntica, Nelson teria mesmo que escrever Álbum de Família. ” (Rodrigues,1981:14)
Porém, a exposição que lhe traria este percurso constituia em si um ato heróico. Foram justamente suas peças míticas que lhe renderam o maior número de críticas.
“Álbum de Família, a tragédia que se seguiu a Vestido de Noiva, inicia meu ciclo do ‘teatro desagradável’. Quando escrevi a última linha, percebi uma outra verdade. As peças se dividem em ‘interessantes’ e ‘vitais’… todas as peças vitais, pertencem ao ‘teatro desagradável’. A partir de álbum de Família, tornei-me um abominável autor. Por toda parte, só encontrava ex-admiradores. Para a crítica, autor e obra estavam justapostos e eram ambos ‘casos de polícia’.” (id. Ibid.:13,14)
O teatro desagradável nos remete aos primórdios da tragédia grega bem como ao seu patrono, Dioniso.
Segundo Junito Brandão, “a tragédia seria uma evolução do ditirambo através do drama satírico”. (1996: 128). Brandão explica que o ditirambo era uma canção coral que tomava parte nos ritos sacrificiais dionisíacos e que foi se tornando com o tempo um gênero literário. Os coros ditirambicos se apresentavam nas Dionísias Urbanas, festas que celebravam a primavera e que terminavam com a apresentação de três tragédias e um drama satírico. Tudo isso se passando em torno do altar de Dioniso.
Sendo assim, compreender o teatro dentro do contexto religioso de que fazia parte ajuda-nos a perceber o significado mais profundo e a função social que este adqüiria, no sentido de encarnar forças inconscientes, arquetípicas, ameaçadoras, possibilitando assim um certo controle e purificação. Este era o teatro que Nelson Rodrigues buscava e que muito se distancia da idéia atual de um mero entretenimento. O teatro, como tal, adqüiria um papel terapêutico.
Segundo Jung, “todo complexo autônomo ou relativamente autônomo tem a particularidade de apresentar-se como personalidade, ou melhor, personificado.” (1985: 392). Desse modo, o teatro aparece como uma forma lúdica de interagir com essas forças inconscientes, personificando-as arbitrariamente, sem que se corra o risco de uma invasão.
“La violencia es una violencia contenida dentro de los limites del juego, del acto ludico y, por eso, puede ser purificante.” (Maldonado, 1974:139).
O movimento de descida às profundezas do inconsciente de onde o espectador emergiria transformado assemelha-se à catábase, ou seja, a descida ao reino dos mortos, seguida de uma anábase, tal como ocorre no mito de Dioniso.
Outro aspecto de Dioniso que se relaciona a obra de Nelson Rodrigues é o entusiasmo. “O entusiasmo é ter um deus dentro de si, identificar-se com ele, co-participando da divindade.” (Brandão, 1996:136)
E de fato, todos os personagens do autor, principalmente os femininos, em determinado momento sucumbem, como que possuidos por uma força estranha, uma outra voz que fala por eles, numa espécie de transe histérico.
Enquanto deus da fertilidade Dioniso está relacionado às orgias. Aqueles que não honravam ao deus no mito eram castigados pela loucura, por uma espécie de frenesi que os conduzia a um final trágico. Porém, a possessão pelo deus através do entusiasmo também fazia parte de seus cultos. Portanto, de acordo com o mito é forçoso o relacionamento com Dioniso, ele é um deus que nos possui e se não é aceito, reconhecido em seu poder de divindade sua imposição se dá de forma violenta e devastadora.
O deus tinha que ser honrado como tal e na Grécia Antiga tal homenagem se prestava nas Antestérias, a festa sagrada do vinho, onde os participantes se embriagavam e dançavam até o semi-desfalecimento, segundo nos conta J. Brandão.
“Evidentemente, essa superação da condição humana e essa liberdade, adqüirida através do ékstasis, constituiam, ipso facto, uma libertação de interditos, de tabus, de regulamentos e de convenções de ordem ética, política e social, o que explica, consoante Mircea Eliade, a adesão maciça das mulheres às festas de Dioniso. E, em Atenas, as coisas eram claras: Nada mais repremido e humilhado do que a mulher.” (Brandão, 1996:136).
Porém, se Dioniso já é um deus incompatível à ordem, num mundo cada vez mais orientado pelo Logos e suas tentativas de organização e controle, tudo que manifeste uma esfera mais animal, corporal, instintiva, por assim dizer, definitivamente perde o seu lugar sagrado. Há uma analogia na descrição do que seria uma possessão pelo deus com as patologias histéricas e os transtornos maneiformes. A cisão Apolo-Dioniso revela a cisão mente-corpo. A reconstituição deste espaço dionisíaco, pelo teatro, talvez seja um grande valor da obra de Nelson Rodrigues e possivelmente uma das razões pelas quais suas peças continuem a exercer fascínio, pois aquilo que está na sombra causa aversão mas também curiosidade, é sedutor. O teatro é um lugar social no qual Dioniso pode transitar. E Dioniso é também deus da fertilidade e como tal garante a renovação da vida.
As peças míticas se encerram com Senhora dos Afogados, peça inspirada na Oréstia, a trilogia de Ésquilo. É curioso notar a simbologia do mar na trama: “Há também um personagem invisível: O mar próximo e profético, que parece estar sempre chamando os Drummond, sobretudo as mulheres.” (Rodrigues,1981: 259).
“Um mito da cidade tebana de Tanagra, conservado por Pausânias, atesta que as mulheres tinham por hábito purificar-se no mar, antes de se entregarem às orgias báquicas”. (Brandão,1996: 116). De acordo com J. Brandão as próprias bacantes eram muitas vezes chamadas de “mulheres do mar”o que remete à outra visão do Nelson adolescente em que as ondas se transfiguravam em mulheres se contorcendo nas convulsões do amor. As mulheres e a histeria são símbolo de uma situação coletiva.
Álbum de Família
“Ai do que vive sem horror. Pois é o espanto que nos salva. Aquele que se horroriza pode esperar ainda a ressurreição”
As tragédias, a partir de Álbum de Família, trazem um traço de atemporalidade e seus personagens atingem uma dimensão sobre-humana, agindo como marionetes de seus desejos.
A trama da peça se desenrola numa fazenda em Colgonhas, como num lugar perdido no tempo e no espaço. A única marca de tempo nos é passada através de um speaker, representante do que seria a opinião pública e de uma consciência meio débil, que narrando algumas fotos, tiradas ao longo da história, faz comentários de senso comum completamente alheios aos verdadeiros fatos. O speaker é a única relação com o mundo concreto e civilizado.
“Nelson propôs em Álbum de Família um exercício de autenticidade absoluta. As personagens decidiram abolir a censura – engodo da conveniência que lhes permite o convívio -, para vomitar a sua natureza profunda, avessa a quaisquer padrões.” (Rodrigues,1981:15).
Desse modo somos transportados para um mundo sem lei, matriarcal, como que anterior à civilização, aonde apenas existe o desejo.
A peça se inicia com os gemidos de uma menina parindo que vai ser escutado ao longo de toda a trama. Logo descobrimos que a menina está grávida de Jonas que, apesar de casado com D. Senhorinha, manda a cunhada trazer-lhe meninas novinhas, virgens, para com ele se deitarem. Todas as meninas engravidam e acabam morrendo na hora do parto pois “não têm quadris”. Essa imagem forma um pano de fundo sacrificial sobre o qual a história da família vai se desenrolar.
A figura de Jonas se assemelha a de Jesus Cristo. Ele se apresenta como o pai fecundador. Jonas teve relações sexuais com todas as mulheres da casa, exceto com a filha por quem é perdidamente apaixonado e a quem mantém num internato, protegida como uma virgem imaculada.
Vemos aqui Jonas representar o que se poderia ser chamado de imagem do pai fecundador, o princípio masculino celeste que vai fertilizar a terra. No entanto, a terra, simbolizada pelas virgens ainda não é capaz de gerar, o que vem caracterizar esse masculino abusador, descomedido, em hybris. Em nenhum momento há qualquer interdito em relação ao ato de Jonas, de modo que as virgens vão morrendo desamparadas sem que nada intervenha à seu favor, o que situa Jonas numa dimensão sobre-humana.
No caso da peça as virgens são colocadas como meninas do campo, meio selvagens, o que as liga ainda mais simbólicamente à terra, há uma terra virgem a ser iniciada pelo espírito do Logos, porém a cena é a de horror pela destruição que esse masculino causa.
Outra imagem paterna é a de um avô que surge trazendo sua neta para Jonas. Esse avô é descrito como um velho de cajado, barbas bíblicas e um pé com elefantíase. Essa figura nos remete a imagem de Édipo, em sua etimologia Oidípus, “o de pés inchados”.
A imagem de Édipo pode nos falar de um desejo regressivo que atrapalha o indivíduo a caminhar para frente. Somos então levados para um universo primitivo. O símbolo do incesto muito presente na peça assim como na tragédia de Édipo poderia refletir esse desejo regressivo de retorno às origens, à um estado urobórico, de fusão a mãe e com o inconsciente, aonde não existem limites nem leis. Mais do que o desejo sexual pela mãe em si aqui se trataria de um movimento regressivo da libido.
Na peça esse desejo é expresso pela fala de Edmundo, o filho apaixonado pela mãe D. Senhorinha: “Eu acho que o homem não devia sair nunca do útero materno. Devia ficar lá, toda a vida, encolhidinho, de cabeça para baixo, ou para cima, de nádega, não sei”.
D. Senhorinha vai representar então essa Grande Mãe sedutora cujos filhos são apaixonados. O filho mais novo Nonô tendo realmente se fusionado com a mãe e realizado o desejo incestuoso, regrediu à um estado animal e ao longo da peça fica uivando nú ao redor da casa.
D. Senhorinha é apresentada como essa mãe extremamente sedutora, de uma beleza quase divina que ninguém pode resistir, “até a própria mãe gostava de admirar-lhe o corpo enquanto a assistia se banhar”. Segundo a fala de Tia Rute, sua irmã feia: “… Ser bonita assim é até imoralidade porque nenhum homem se aproxima de você sem pensar em voçê PARA OUTRAS COISAS”. E D. Senhorinha é a imagem da mãe que corresponde ao amor dos filhos e só consegue se sentir atraída por eles. Essa imagem da deusa Afrodite, uma Grande Mãe que se atrai por adolescentes que sempre terminam tragicamente, metamorfoseados em flor ou morrendo precocemente.
Afrodite, é uma imagem do poder atrativo do inconsciente mas também está relacionada ao desejo perverso com tudo o que tem de despedaçador enquanto irreconciliável com a consciência. Um dos castigos infringidos por Afrodite aos que ofendiam a deusa era justamente o desejo incestuoso, tal como ocorre com Mirra e Fedra.
D. Senhorinha é uma imagem da Grande Mãe devoradora que concebe a vida mas também a destrói por não aceitar que estes se separem dela: “Não botei meus filhos no mundo para dar a outra mulher!” Assim como Afrodite quando a descobre a paixão de Eros por Psiqué “Porventura desejas impor-me uma rival como Nora? Julgas realmente devasso, asqueroso, sedutor intolerável, que somente tu podes ter filho e que eu, por causa da minha idade, não poderia conceber?” (Brandão, 1996:215).
Desse modo em Álbum de Família Nelson propõe um mergulho nesse mundo matriarcal, instintivo, caótico aonde a razão não pode penetrar. A peça termina com a morte de todos e com a fuga da mãe e seu filho amado para viverem juntos. Ao fundo se ouve uma marcha fúnebre. A morte traz a questão sacrificial, uma possivel redenção, transformação do desejo e um princípio de consciência.
Conclusão
“É preciso ir ao fundo do ser humano. Ele tem uma face linda e outra hedionda. O ser humano só se salvará se, ao passar a mão no rosto, reconhecer a própria hediondez”
(Castro, org.,1997: 152).
Através da análise da vida e obra de Nelson Rodrigues encontramos a figura do deus grego Dioniso.
A sexualidade na época de Nelson Rodrigues se encontrava dissociada e reprimida por uma moral e princípios cristãos que refletiam uma cisão mente-corpo. Essa moral repressora, causa das grandes histerias do século XIX, sobrevive ainda na mentalidade do brasileiro da primeira metade do séc.XX e remete à um drama arcaico que se relaciona à imagem do deus grego Dioniso, o de um lado instintivo que não pode ser conciliado com a cultura. No entanto, através da interação criativa com o deus proposta pelo teatro se encontra a possibilidade de uma renovação da vida a medida que Dioniso é também um deus da fertilidade. No caso, a fertilização da consciência pelo inconsciente, por tudo aquilo que não se tem contato devido às interdições ou falta de referência externa indo repousar na sombra.
A concretização através dos personagens desse lado primitivo que o homem civilizado sequer pode reconhecer como pertencente a si adquire uma função purificatória. No encontro com o sombrio, grotesco e desagradável existem possibilidades de vida e criação pois a moralidade rígida atende mais à um ideal de perfeição do que de totalidade. A totalidade de anjo pornográfico, capaz de interagir com diferentes aspectos do ser.
Referências bibliográficas
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RODRIGUES, N. (1981). Teatro Completo de Nelson Rodrigues, vol.2. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
Anexo – Obra completa:
Peças:
Peças psicológicas
• A mulher sem pecado
• Vestido de noiva
• Valsa n° 6
• Viúva, porém honesta
• Anti-Nelson Rodrigues
Peças míticas
• Álbum de família
• Anjo negro
• Dorotéia
• Senhora dos afogados
Tragédias cariocas
• A falecida
• Perdoa-ma por me traíres
• Os sete gatinhos
• Boca de ouro
• O beijo no asfalto
• Otto Lara Resende ou Bonitinha, mas ordinária
• Toda nudez será castigada
• A serpente
Livros:
Romances
• Meu destino é pecar,“O Jornal” – 1944 / “Edições O Cruzeiro” – 1944 (como “Suzana Flag”)
• Escravas do amor, “O Jornal” – 1944 / “Edições O Cruzeiro” – 1946 (como “Suzana Flag”)
• Minha vida, “O Jornal” – 1946 / “Edições O Cruzeiro” – 1946 (como “Suzana Flag”)
• Núpcias de fogo, “O Jornal” – 1948. Inédito em livro. (como “Suzana Flag”)
• A mulher que amou demais, “Diário da Noite” – 1949. Inédito em livro. (Como Myrna)
• O homem proibido, “Última Hora” – 1951. “Editora Nova Fronteira”, Rio, 1981 (como Suzana Flag).
• A mentira, “Flan” – 1953. Inédito.. (Como Suzana Flag).
• Asfalto selvagem, “Ultima Hora” – 1959-60. J.Ozon Editor, Rio, 1960. Dois volumes. (Como Nelson Rodrigues)
• O casamento, Editora Guanabara, Rio, 1966 (como Nelson Rodrigues).
• Asfalto selvagem – Engraçadinha: seus amores e pecados, “Companhia das Letras”, São Paulo.
• Núpcias de fogo, “Companhia das Letras”, São Paulo. (como Suzana Flag).
Contos
• Cem contos escolhidos – A vida como ela é…, J. Ozon Editor, Rio, 1961. Dois volumes.
• Elas gostam de apanhar, “Bloch Editores”, Rio, 1974.
• A vida como ela é – O homem fiel e outros contos, “Companhia das Letras”, São Paulo, 1992. Seleção: Ruy Castro.
• A dama do lotação e outros contos e crônicas, “Companhia das Letras”, São Paulo.
• A coroa de orquídeas, “Companhia das Letras”, São Paulo.
Crônicas
• Memórias de Nelson Rodrigues, “Correio da Manhã” / “Edições Correio da Manhã”, Rio, 1967.
• O óbvio ululante, “O Globo” / “Editora Eldorado”, Rio, 1968.
• A cabra vadia, “O Globo” / “Editora Eldorado”, Rio, 1970.
• O reacionário, “Correio da Manhã” e “O Globo” / “Editora Record”, Rio, 1977.
• O óbvio ululante – Primeiras confissões, “Companhia das Letras”, São Paulo, 1993. Seleção: Ruy Castro.
• O remador de Ben-Hur – Confissões culturais, “Companhia das Letras”, São Paulo.
• A cabra vadia – Novas confissões, “Companhia das Letras”, São Paulo.
• O reacionário – Memórias e Confissões, “Companhia das Letras”, São Paulo.
• A pátria sem chuteiras – Novas crônicas de futebol, “Companhia das Letras”, São Paulo.
• A menina sem estrela – Memórias, “Companhia das Letras”, São Paulo.
• À sombra das chuteiras imortais – Crônicas de Futebol, “Companhia das Letras”, São Paulo.
• A mulher do próximo, “Companhia das Letras”, São Paulo.