A COVID-19 e seu significado: uma reflexão.

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Nota 07/2020 – A COVID-19 e seu significado para a humanidade atual: uma reflexão.
por Walter Boechat, médico, analista junguiano, autor de diversas publicações no Brasil e no exterior, membro fundador da Associação Junguiana do Brasil (AJB).

O novo vírus do grupo dos coronavírus, o SARS-CoV-2, causador da Covid-19, é uma realidade planetária nova e surpreendente que toma a humanidade de surpresa.

A doença, enquanto permanecia confinada em território chinês, era vista como mais uma epidemia que seria controlada após certo tempo pelos virologistas e autoridades de saúde. Assim foi com o Ebola, que embora tendo uma letalidade bem maior que o SARS-CoV-2, tem uma transmissibilidade menor e foi contido após grandes esforços da OMS, ficando regionalmente contido.

A presença intensa do novo coronavírus em praticamente todos os países nos cinco continentes parece marcar o novo milênio de forma definitiva. Podemos afirmar com segurança que a futura humanidade não será mais a mesma depois da COVID-19. As ruas das cidades quase desertas, seus moradores em isolamento em suas casas (pelo menos aqueles que têm um teto ou condições sociais para um isolamento razoável), tudo isso, parece configurar um cenário apocalíptico, distópico, por vezes encontrável somente na literatura de ficção científica.

No momento em que escrevo, a Europa já deixou de ser o epicentro da pandemia. As populações de Itália, Espanha e outros países europeus passaram por semanas de intenso sofrimento. E os Estados Unidos, pela arrogância de seu atual presidente, se tornam o país com maior número de infectados no mundo, mesmo levando em conta que há várias situações de subnotificação em diversos países, incluindo o Brasil. A onda de infecções começa a aumentar de intensidade no Brasil e em diversos países da América Latina de forma assustadora.

Qual o significado disso? Podemos imaginar que a humanidade esteja apresentando uma grande doença, uma doença histórico-cultural cuja pandemia atual seja seu sintoma agudo e ao mesmo tempo a oportunidade de uma possível saída? Creio que isso é possível.
O problema das relações abusivas do homem com a natureza emerge claramente nas pandemias. A perspectiva do paradigma da modernidade apoia-se em polaridades perversas, estáticas e unilaterais, um polo dominante sobre o outro: colonizador-colonizado, espírito-matéria, mente-corpo, consciente-inconsciente, homem-mulher, hemisfério norte-hemisfério sul, conhecimento popular-conhecimento científico. Todas essas polaridades derivando da polaridade original homem-natureza. O homem da civilização moderna industrial não conseguiu sair dessa armadilha, permanecendo preso a essas polaridades dicotômicas perversas [1].

Os saberes da pós-modernidade como novo paradigma emergente procuram apontar saídas para essas polaridades aprisionadoras, mas essas saídas ainda estão em estruturação.

Como sugere Amnéris Maroni, a psicanálise e a sociologia ficaram presas na modernidade e suas armadilhas; e talvez a nova antropologia aponte um caminho de saída pela perspectiva junguiana. Esse caminho seria a superação da dicotomia homem-natureza, uma cisão que nossas sociedades tradicionais desconhecem. No contrário, nossas lideranças indígenas, cada vez mais presentes como referência no momento de crise ecológica planetária, são cada vez mais ouvidas como porta-vozes de uma saída para a hecatombe.

C. G. Jung sempre percebeu a modernidade com muitas reservas. Viu com agudeza os graves problemas que ela trazia para a humanidade e em 1928 escreveu:

“O homem moderno perdeu todas as certezas metafísicas da idade média, trocando-as pelo ideal de segurança material, do bem-estar geral e do humanitarismo” [2]

Nessa crítica rigorosa à modernidade, Jung faz um recuo à Idade Média, um reculer pour mieux sauter (recuar para saltar melhor) procurando na alquimia, gnose e tradições medievais, valores de referência para superar os terríveis becos sem saída da modernidade com sua techné exacerbada, seu heroísmo exagerado do qual falou Luigi Zoja em seu livro A história da Arrogância [3]. O heroísmo, necessário no passado para a construção da consciência e bases da civilização, produz a revolução industrial, com as três grandes ameaças de destruição do Sapiens: o holocausto nuclear, a crise ecológica e a exacerbação da inteligência artificial, pela qual as máquinas inteligentes poderão destruir a humanidade.
Jung também ficou atento às sociedades tribais e tirou vários ensinamentos dessas culturas em suas viagens, como ao monte Elgon, na África, e entre os índios Pueblos, do Novo México [4]. As sociedades tribais parecem apontar uma saída para o impasse moderno. A nova antropologia, com pensadores como Eduardo Viveiros de Castro e o conceito revolucionário de perspectivismo [5], pode nos ajudar bastante nessa busca. O perspectivismo como mergulho na cosmologia ameríndia, inteiramente particular e distinta da ocidental, traz uma modalidade de estar-no-mundo de maneira radicalmente integrada.

Fazendo essas reflexões veio-me às mãos um interessante artigo encaminhado pela amiga Sílvia Rocha, psicóloga junguiana interessada nas sociedades tradicionais brasileiras, em especial os Huni-Kuin, etnia que vive na floresta amazônica do território do Acre e parte ocidental da Venezuela amazônica. O artigo, de autoria da antropóloga Els Lagrou [6], tem o instigante título: Nisun e a vingança dos povo-morcego e o que ele pode nos ensinar sobre o novo coronavirus. Procura de forma originalíssima utilizar a nova antropologia e os saberes das etnias ameríndias para uma abordagem da pandemia atual.

Nisun, como nos explica Lagrou, é um conceito Huni-Kuin para a etiologia das doenças. As pessoas adoeceriam por consumirem carne de animais, peixes e mesmo plantas para se alimentarem. Os espíritos dos seres consumidos voltariam e fariam a pessoa que os consumiu adoecer. Cumpriria ao xamã Huni Kuin soprar o doente e, por meio de outros processos terapêuticos xamanísticos, afastar o espírito do animal morto. Portanto, nessa teoria para a etiologia das doenças emerge a tradicional unidade homem-natureza das cosmologias ameríndias.
Para a sua sobrevivência, o homem assimila seres vivos da natureza provocando o desequilíbrio na totalidade. O seu corpo, parte do todo, reflete imediatamente esse desequilíbrio, adoecendo, vítima do espírito do animal ou planta consumidos. A referência ao povo morcego no título do artigo é uma menção à denominação que algumas etnias inimigas do Huni Kuin dão à esses povos, chamando-os de maneira depreciativa de Kaxinawa: povo morcego.

Na atual pandemia pelo SARS-CoV-2, a China realizou em tempo relativamente curto o sequenciamento do genoma do vírus, compartilhando-o com o Ocidente. Isso permitiu a pesquisa intensa em diversos países chegando-se ao sequenciamento genético completo e a pesquisa de seus métodos de disseminação, bem como de eventuais mutações atuais e vindouras. Também foi possível pesquisar a origem do novo coronavírus. Seu genoma seria muito semelhante ao de vírus presente em morcegos normalmente ingeridos na China como fonte alimentar. Ainda, se aventou a hipótese de uma passagem do morcego para o pangolim, uma espécie de tatu pequeno do interior da China e África do Norte.

Como lembra a autora (Lagrou), esse zoonotic spillover de viroses de espécies animais para o homem, produzindo cepas destruidoras para a espécie humana, aconteceu em pandemias anteriores: no vírus da AIDS (proximidade de humanos com macacos africanos), na malária e na febre amarela, entre outras. Não é, portanto, um fenômeno novo.

Percebemos, então, nessas pandemias emergindo na franja de contato civilização-natureza, em cujo processo de intensa devastação da natureza, queimada das florestas, atividades extrativistas diversas, que a Grande Mãe Gaia encontra-se desde muito ameaçada. Aliás esse desequilíbrio é bem anterior ao que geralmente se supõe. Como demonstrou Harari em seus livros blockbusters ‘Sapiens’ e ‘Homo Deus’ que o desequilíbrio natural imposto pelo Sapiens começa já com a emergência da consciência reflexiva em 70 mil A.C. Como exemplo disso, Harari cita a própria migração do Sapiens pelo estreito de Behring, para a ocupação das Américas. Essa passagem do Alasca à Patagônia se dá em tempo recorde! Enquanto outras espécies demorariam séculos se adaptando aos diversos biomas, o Sapiens modificou os biomas em sua rápida passagem. Espécies inteiras foram dizimadas, tais como preguiças gigantes, tigres dentes de sabre e outras espécies animais e vegetais. Às vezes se atribui esses câmbios da natureza, a mudanças climáticas súbitas, erupções de vulcões etc. Mas Harari demonstra com riqueza de exemplos: “nós somos os culpados” [7].

Se esse processo é tão antigo, com a emergência da modernidade, ele se tornou agudo e gravíssimo. A humanidade está em perigo de auto extinção! Nesse momento, a sabedoria dos povos tradicionais mais uma vez nos mostra o caminho. A percepção intuitiva dos Huni Kuin sobre o Nisun demonstra que pagamos um alto preço por consumir outras espécies vivas para nossa sobrevivência. Adoecemos. Só o xamã Huni Kuin, aquele que transita entre os diversos níveis, (‘só o xamã transita entre várias perspectivas’- Viveiros de Castro); o único capaz do êxtase, (‘o xamanismo é uma técnica de êxtase’- Mircea Eliade); é também o restaurador da harmonia perdida homem-natureza. É inevitável que os humanos se alimentem de plantas e animais para continuarem vivos. Assim rezam as leis da sobrevivência na natureza e da cadeia alimentar que envolve todas as espécies. Mas, é preciso estar atento a que os outros seres viventes também compartilham do todo da Mãe Natureza e, tal como a espécie humana, têm sua alma e sua própria cultura de acordo com a cosmovisão ameríndia (Viveiros de Castro).

Quando no mercado de alimentos da cidade de Wuhan os morcegos, serpentes e outros animais silvestres vivos ou mortos dividem o espaço com animais domésticos para serem sacrificados – e servirem de alimento -, uma intimidade desrespeitosa com o sagrado natural se repete. Outra pandemia, desta vez mais grave, se estabelece. Quando aprenderemos com os ameríndios uma forma de reverência com a totalidade sagrada da Grande Mãe da qual obtemos nossa subsistência?

Como lembra Els Lagrou, o zoonotic spillover que acontece agora já aconteceu antes e provavelmente deverá acontecer no futuro. Pensamos que, enquanto o homem moderno estiver dominado pelo arquétipo do herói exacerbado, provocando a destruição ambiental, novos desequilíbrios deverão acontecer. A pandemia atual empurra o orgulhoso Sapiens para seu espaço doméstico, onde se refugia, temeroso de uma infecção por um agente invisível.

É verdade que o Sapiens possui armas que não teria há vinte anos: pode manter seu trabalho em home office, comunicar-se a distância com indivíduos e grupos. Pelo menos aqueles que têm uma casa podem ficar em casa. Aqui, aparece o aspecto social cruel da pandemia, pois embora se diga que o SARS-CoV-2 não escolhe ninguém, que é um vírus democrático, ao qual todos são expostos, há na verdade uma exposição muito maior dos desfavorecidos. Nos Estados Unidos as comunidades afro-americanas e latinas são muito mais atingidas em Nova York e Chicago, por uma questão econômica. E os sem-teto no Brasil e em toda América Latina estarão particularmente expostos a uma verdadeira devastação.

Podemos observar nas diversas crises da humanidade como os indivíduos são invadidos por imagens do inconsciente cultural e símbolos coletivos emergem na fantasia individual. Esses símbolos expressam a necessidade de uma transformação urgente na cultura, têm em geral uma função soteriológica.
Uma paciente, após muito ler o noticiário sobre a COVID-19, sonhou que o vírus lhe aparecia, mas, de maneira pouco usual. Manifestava-se duplicado: uma forma, mais definida, seria o vírus SARS-CoV-2 em seus aspectos agora conhecidos da virologia e da epidemiologia; outra forma, esmaecida, duplicada, acompanhava a primeira. A imagem simbólica parece indicar que o SARS-CoV-2 é muito mais do que um vírus, esse ser diminuto, desprovido inclusive de DNA em sua forma original, nos limites entre o vivo e o não vivo, que é capaz de desestabilizar todo o sistema financeiro internacional e a ordem mundial das nações, instaurando hábitos sociais radicalmente novos.
Para compreendê-lo, e suas consequências, temos que, além de lançar mão da medicina e da epidemiologia, também ter o recurso de uma abordagem multidisciplinar do pensamento complexo. Nesse pequeno texto, lancei mão da psicologia complexa de Jung e da nova antropologia. Essas são apenas algumas perspectivas possíveis.

Walter Boechat, Rio de Janeiro, maio de 2020.

[1] vide Boaventura de Sousa Santos, A crítica da razão indolente, S. Paulo: Cortez, 2000.
[2] C. G. Jung: O problema psíquico do homem moderno.(1928) O.C. Vol. 10/3. Ed. Vozes, 2011.
[3] Luigi Zoja, A História da Arrogância. S. Paulo: Axis Mundi, 2.000.
[4] Para exemplos notáveis das experiências de Jung no Monte Elgon vide : O fundamento psicológico na crença dos espíritos (1920), OC Vol. 8/2, Ed. Vozes, 2011.
[5] Eduardo Viveiros de Castro: A inconstância da alma selvagem, Cosac Naif,
[6] Profa. Titular de antropologia da UFRJ. Para um estudo mais aprofundado da etnia Huni Kuin vide: Lagrou: A fluidez da forma: arte, alteridade e agência em uma sociedade amazônica. Rio de Janeiro, TopBooks, 2007.
[7] vide sobre a culpabilidade do Sapiens na destruição planetária em Harari, Yuval: Sapiens, Porto Alegre: LPM, 2016, 18ª ed., cap. 4, p. 73.

Publicado em: https://www.facebook.com/ObservatorioPsicologiaAnalitica/posts/823478524844491

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