A questão da sexualidade entre religiosos: culpa e responsabilidade

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A questão da sexualidade entre religiosos: culpa e responsabilidade
ENTREVISTA PARA O JORNAL DO IBMR
WALTER BOECHAT
QUE PODE UMA CRIATURA

Que pode uma criatura senão,
entre outras criaturas, amar?
amar e esquecer,
amar e malamar,
amar, desamar, amar?
sempre, e até de olhos vidrados, amar?
Carlos Drummond de Andrade.

A denúncia de um envolvimento sexual e paternidade do presidente do Paraguai Fernando Lugo causou grande surpresa e reprovação. Foi o Fruto de um relacionamento amoroso ocorrido quando ainda era bispo da igreja católica no departamento de S. Pedro. Logo depois Lugo reconheceu o envolvimento e a paternidade de um menino de dois anos. Posteriormente houve pedido de paternidade para diversas outras crianças, não reconhecidas pelo governante.
A espinhosa questão despertou reações mistas na opinião pública e autoridades, de um lado reprovação enérgica, de outro lado, compreensão e mesmo elogios à sinceridade do ex-bispo na admissão de fatos tão difíceis para ele, a principal figura pública do país. Lugo viu-se frente a uma perda de prestígio inesperada. Em sua recente visita ao Brasil comentou-se que o visitante necessitava de uma vitória significativa nas questões da hidrelétrica de Itaipu para melhorar sua imagem pública fragilizada.
A posição de representante religioso do atual presidente paraguaio deve ser melhor detalhada por ser atualmente objeto de muitas confusões. Não é demais repetir que Fernando Lugo, logo após tomar posse, tornou-se oficialmente um ex-bispo católico. Foi ordenado sacerdote em agosto de 1977, tendo passado a bispo em abril de 1979 tornando-se próximo do brasileiro Frei Betto, admirador de Leonardo Boff e da Teologia da Libertação. Foi designado membro da Equipe de Reflexão Teológica da Conferência Episcopal Latino-americana – Celam. Em 2004, sem divulgar as razões para tal, a Igreja o aposentou do cargo provavelmente devido à sua proximidade com a Teologia da Libertação e à sua militância política. Em dezembro de 2006 Lugo apresentou sua renúncia à batina para melhor desempenhar seu papel de líder de oposição e já pensando em concorrer à presidência. O Vaticano se pronunciou apenas para aconselhar a Lugo que “refletisse melhor” e abandonasse a pretensão de entrar na política. O fato de ter renunciado á vida religiosa sem consultar à autoridade eclesiástica e, além disso, manter vida política fez com que recebesse do Papa Bento XVI uma suspensão a divinis, isto é, estaria proibido de exercer atividade de sacerdote, embora continuasse sendo considerado um bispo da Igreja. Posteriormente, quando Lugo foi eleito presidente, o Vaticano aceitou oficialmente seu pedido de desvinculação. Essa a posição real do presidente paraguaio frente à autoridade religiosa e aos seus cargos anteriores.
Procurou-se em certos relatos tentar inserir a surpreendente revelação do envolvimento de Fernando Lugo em um contexto da cultura paraguaia. Presidentes anteriores do país teriam em diversas ocasiões duas ou mais esposas, escapando de uma estrutura familiar tradicional. Não seria esta questão muito comum na psique cultural latino-americana em geral, inclusive no nosso Brasil? É bastante sabido- mas não muito comentado- que um conhecido político brasileiro de grande poder no passado e ainda hoje, tem duas esposas, duas famílias mesmo. Como costuma acontecer nesses casos, uma esposa é mais oficial, de classe social mais elevada, assumida publicamente, a outra aparecendo menos.
Parece também, sem afastar a gravidade da situação de Fernando Lugo, que sua posição de progressista e questionador das forças dominantes pode favorecer uma exploração política de sua situação transitoriamente frágil.
A questão da experiência religiosa frente à sexualidade acompanha a raça humana desde tempos antigos, nas mais diversas culturas. Até mesmo em culturas diferentes do ocidente cristão o problema se coloca. Na antiga Índia de tradição védica há a idéia de que ciclo de vida humana tem a fase mundana, do casamento, filhos, realização material e só na fase tardia, o sanyasi (asceta) se retira para a floresta para meditar e procurar Deus. A história do povo de Israel revela com freqüência mulheres eróticas perturbando e seduzindo reis-heróis israelitas, como a filha do faraó e José, Betsabá e Davi, Dalila e Sansão. Essa freqüente ambigüidade da atração erótica e do perigo para profetas espirituais é uma constante na história humana. É como se o instinto sexual devesse ser contido ou transformado de alguma forma para haver uma genuína experiência religiosa.
Diversas ordens religiosas (mas não todas) proíbem aos seus membros serem casados. O protestantismo permite e aconselha mesmo o casamento entre seus pastores. O matrimônio é visto mesmo como uma instituição ordenadora da libido, mantendo o instinto dentro de limites socialmente organizados.
Essa organização parece realmente ser benéfica para os crentes e para os sacerdotes. As questões sexuais repetidas envolvendo autoridades conhecidas da igreja com sexualidade nos levam a refletir. (Penso nesse momento nos diversos casos de envolvimento sexual de padres com crianças, entre os quais os da comunidade de Boston).
Na verdade Eros é um Daimon poderoso, como sentenciou Diotima no diálogo O Banquete, de Platão. Platão sugere que o Eros instintivo se transforme em phylia (o amor para a comunidade) e esse chegue à filo-sofia, o amor ao conhecimento. Serão essas metamorfoses possíveis ou mesmo desejáveis? No mesmo diálogo é relatado o mito do nascimento de Eros: Ele é filho de Pobreza (Pénya) e Recurso (Póros). Quando Eros nasce em nós, descobrimos que estamos pobres de algo mais que nos complete e encontramos sempre um recurso para alcançar vivências dessa completude. Será lícito enjaular ou encapsular a necessidade fundamental expressa pela sexualidade humana em uma instituição religiosa, por mais nobre que seja?

Artigo para o Jornal do Uni-IBMR, do Centro Universitário Hermínio da Silveira, Rio de Janeiro, No 104, Julho 2009.
Walter BOECHAT
Médico, Diplomado pelo Instituto C.G.Jung Zurich, Suíça, Doutor em saúde coletiva pelo Instituto de Medicina Social / UERJ, Membro-Fundador e Ex-Presidente da Associação Junguiana do Brasil- AJB. Autor de: Mitopoese da Psique. Mito e Individuação. Vozes, 2008.
CONTATO: walter.boechat@Gmail.com

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