A Transformação como Evento Central em Psicoterapia
Walter Boechat
”A capacidade de liderança não repousa mais sobre a força. É capaz de liderar aquele que compreende que o outro é diferente de si, e que tem valores diferentes dos seus. A liderança repousa na capacidade de dialogar com o outro.”
Mahatma Ghandi
Parece-me que o título geral deste IX Simpósio Nacional da AJB aponta para uma dualidade e ao mesmo tempo para a busca de uma síntese, Eficiência e/ou Transformação. A eficiência e transformação em psicoterapia estão ligadas a uma grande mudança cultural em ciência que Thomas Khun designou como mudança de paradigma (Khun, ) e os autores pós-khunianos vêm se ocupando com grande atenção.
Para compreendermos a dialética da eficiência e da transformação em psicoterapia e, em particular, da psicoterapia junguiana, temos que entender a intensa mudança no paradigma das ciências que se opera desde os inícios do século XX, com a teoria da relatividade de Einstein.
Para entendermos esta ampla mudança nos diversos saberes, devemos antes compreender o sentido da palavra paradigma. Filologicamente, deriva do grego para, além de, a lado, e déimos, movimento. Portanto, o paradigma não é apenas uma forma ou molde estático no sentido platônico, mas aponta para uma direção, encerra em si um dinamismo de movimento, ou podemos dizer, de transformação.
Quando Khun cunha a palavra paradigma para referir-se ao conjunto de métodos e referências que um conjunto de ciências de uma comunidade de cientistas lida com os fenômenos da natureza, explicando-os e predizendo-os, por um conjunto de hipóteses verificáveis pelas leis da repetitividade e prognóstico.
As ciências por Khun chamadas normais obedecem ao paradigma dado em certo tempo histórico. As ciências revolucionárias são aquelas que contribuem para a mudança de paradigma, quando certos fenômenos observáveis na natureza não obedecem mais às leis e hipóteses das ciências conhecidas. Desde Einstein, o paradigma vigente da modernidade foi questionado em sua eficácia absoluta pela teoria da relatividade restrita de 1905.
O aspecto dinâmico de transformação contido no próprio paradigma científico, pois mais estático de pareça ser, foge a sua aparência de ser apenas um molde, ou fôrma, pois o paradigma científico modifica-se com o transcorrer da história. Em certo momento, um conjunto de leis que têm eficiência, aparentemente absoluta para uma abordagem explicativa do real, deixa de operar em termos absolutos, e sofre transformação pelo aparecimento de uma ciência revolucionária.
Eficiência ou transformação, ciência normal eficiente ou ciência revolucionária de transformação. A ciência normal eficiente do paradigma da modernidade é a física newtoniana, o chamado núcleo duro do conhecimento científico. Também no novo paradigma emergente que Morin cunhou como paradigma da complexidade, Prigogyne de Nova Aliança, ou qualquer outra denominação que queiramos atribuir a ele, é a física que dita o ritmo de sua transformação com o aparecimento da teoria da relatividade de Einstein, e logo após ela, a mecânica quântica de Bohr e Einsenberg.
Percebemos então, na historicidade da transformação dos paradigmas, um aspecto diacrônico e processual. Mas este processo não é único, pois é acompanhado por sutis fenômenos sincrônicos, que compensam e complementam o processo diacrônico.
No turning point de 1905, quando Einstein publica a teoria da relatividade restrita, ponto de início do paradigma da complexidade, ocorrem fenômenos da maior importância em outros campos do saber que denunciam a emergência de uma transformação em ciência: Freud publica os Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade, Jung debruça-se sobre os mitologemas das produções delirantes dos psicóticos, descoberta que o levará à formulação da teoria do inconsciente coletivo, Picasso pinta a tela fundante do movimento do cubismo, Les Demoiselles D’Avignon. (Martin, 1990)
Sobre a tela de Picasso, algumas palavras são necessárias. A pintura medieval, como as telas religiosas de Giotto, carecem de profundidade; durante o renascimento Da Vinci desenvolve a perspectiva, pelo ponto de fuga e pela técnica do sfumato. O cubismo trás a múltipla perspectiva, o objeto sendo visto com simultaneidade de perspectivas, como se fosse nele desvelado o inconsciente.
O mérito de Freud de trazer a noção de inconsciente para a ciência da psicologia é muito grande, pois ele passa a operar já dentro de um novo paradigma, malgré lui. A resistência da academia a Freud não se deve tanto à proposição da sexualidade infantil, mas principalmente ao trabalho com o referencial do inconsciente, antes impossível em ciência. O inconsciente era antes de Freud mencionado apenas na área da filosofia, não na psicodinâmica da psicopatologia, e em sua operosidade em relação à consciência.
A psicologia que leva em consideração o inconsciente, a psicologia chamada por Bleuler de psicologia profunda, é uma ciência revolucionária, no sentido khuniano, uma ciência de transformação.
O paradigma da modernidade opera pelo estabelecimento de pólos opostos e alienantes, como lembra Sousa Santos ( Sousa Santos, 2000): o homem-natureza, conhecimento científico-conhecimento teológico e conhecimento popular, ciências da natureza-ciências humanas, o sujeito-objeto, corpo-mente.
O paradigma da complexidade vem se organizando no transcorrer do último século pela dissolução das polaridades, por intercessões múltiplas, e pela simultaneidade de perspectivas.
Assim, Freud percebendo a importância da sexualidade no psiquismo humano, dilui a polarização homem-natureza. Este movimento já havia sido iniciado por Darwin quando, pela teoria evolucionista, questiona a teoria creacionista.
Jung elabora a noção de símbolo psicológico e a noção de realidade da alma, procurando uma síntese entre conhecimento teológico e conhecimento científico. Freud e Jung procuraram no folclore e tradição popular as chaves para o conhecimento do significado dos sonhos. A ciência deixa de ser, dentro da abordagem do paradigma da complexidade, um apanágio dos sábios isolados do conhecimento popular.
A tradição que remonta à Grécia, na qual as ciências se dividiram, desde Platão e Aristóteles, em ciências da natureza, como a física, a matemática, a química e biologia, Naturwissenchaften, e ciências humanas, Geistwissenchaften como a antropologia, sociologia, teologia, parte da psicologia, começa a ser questionada no paradigma da complexidade. A ciência tende a ser, dentro do novo paradigma, a busca do conhecimento pura e simplesmente, o fluxo da busca do saber como tal.
Dentro desta nova postura, a sociologia tende a ocupar um lugar de destaque, pois todas as ciências, seriam, de certa forma sociológicas. Torna-se fundamental a influência do construcionismo, corrente sociológica que tem tomado vulto e importância capital dentro do novo paradigma. Pelo construcionismo, o sujeito da observação constrói o objeto observado em qualquer experiência científica. O mesmo objeto difere segundo a experiência seja conduzida por experimentadores diferentes, em tempos diferentes. (Spink et all ).
Pela visão construcionista, objeto da natureza e observador já não estão mais polarizados; o próprio sujeito da experiência é uma construção da cultura e do tempo em que vive. Percebemos aqui uma dissolução completa da polarização redutiva da modernidade, que percebe o real como sendo interpretável por uma lógica única, um legéin que parte de um sujeito polarizado deste real imutável a ser explicado logicamente por uma ciência também imutável.
Desta dissolução da polaridade sujeito-objeto, ou homem-natureza, decorrem todas as demais dissoluções, inclusive a dissolução mente-corpo, pois a nova visão de mundo nos permite resgatar a antiga concepção da unidade corpo-mente perdida com o racionalismo grego.
A questão fundamental lembrada por Sousa Santos (op. cit.) é que os paradigmas não mudam em anos, mas em séculos, e no período de emergência de um novo paradigma há a convivência dos paradigmas por largo espaço de tempo. É o que observamos na emergência do paradigma da complexidade que teve início há um século, e nem por isto o paradigma da modernidade deixou neste tempo de ser fundamental para a ciência e para cultura; o que temos observado é a convivência necessária dos dois paradigmas.
No tocante à psicologia de profundidade, ela foi um arauto importante da transição paradigmática. O seu conceito fundante, o inconsciente, pode ser considerado um precursor das grandes mudanças que a ciência tem sofrido.
Jung anunciava a dissolução da polaridade sujeito-objeto quando defendeu já em 1920, (Jung, ) que em psicoterapia, a psique é sujeito e o observador ao mesmo tempo do processo terapêutico. Dizia também, que toda teoria psicológica “é uma confissão subjetiva”. Esta dissolução sujeito-objeto não foi só reconhecida, ocupando papel fundamental em psicoterapia dentro das concepções de campo transferencial, mas foi estendida aos outros ramos da ciência, inclusive as ciências chamadas da natureza pela posição construcionista.
A teoria da sincronicidade de Jung vai ainda mais além, pois procura explicar certos fenômenos externos ao sujeito, vinculados a eventos subjetivos, sendo além disso portadores de significado. Seu sentido finalista é enfatizado pela constelação de um arquétipo.
Percebendo a convivência e a simultaneidade do paradigma da modernidade e do paradigma da complexidade no mundo das ciências, e mesmo na psicoterapia, podemos notar que a eficiência pertence à esfera do paradigma da modernidade, e a transformação ao paradigma da complexidade. Ambos os processos são intrínsecos ao trabalho terapêutico.
A psicologia como ciência tem um fundamento nas ciências da natureza, a psicologia experimental ou comportamental, sendo de base eminentemente mensurável dentro dos cânones da modernidade, e todo um setor da psicologia de profundidade que toma o inconsciente como referencial, sendo portanto, uma ciência revolucionária, obedecendo aos cânones do paradigma da complexidade.
A psicoterapia com predomínio dos referenciais da modernidade aparentemente é mais eficaz, a psicoterapia comportamental e a psicoterapia breve, por exemplo, têm uma eficácia visível, mensurável. A transformação é elemento inerente ao processo simbólico, à atividade do Self que se expressa pela função transcendente formadora de símbolos.
Naturalmente, a eficácia simbólica na psicoterapia está também presente nos processos de psicoterapia breve, apenas esta transformação envolve apenas camadas mais superficiais da personalidade ou um complexo determinado, quando a psicoterapia é dirigida a um sintoma específico.
A transformação é elemento central da psicoterapia junguiana. Esta importância nuclear da transformação fica bastante clara quanto lembramos que a alquimia é a metáfora essencial do processo terapêutico junguiano, e que na alquimia o opus, trabalho, é o objetivo mesmo do processo, e a pedra filosofal, nunca é na realidade alcançada. O dito alquímico medieval é bem claro: a vida é breve, a arte é longa. Qual a eficiência de um processo simbolicamente mais longo que a própria vida?
No extremo oposto de processos terapêuticos transformativos, situam-se as terapias breves voltadas para sintomas específicos. Há o curioso relato de um sucesso terapêutico alcançado por Freud em terapia breve, relato naturalmente não confirmado. O pai da psicanálise foi procurado pelo compositor Gustav Mahler, com queixas de impotência sexual. Freud e Mahler passearam longamente pelos bosques que circundavam a residência do psicanalista. Ao fim do passeio, Mahler estava curado de sua impotência. Estava fundada a terapia breve: um máximo de eficiência em um mínimo de tempo, uma seção terapêutica…..
A polarização da modernidade deu a ela uma maior eficácia, devido aos campos de especialização. Entretanto, temos assistido a um desgaste desta polarização excessiva, que se manifesta inclusive no plano das culturas, onde uma excessiva tecnologia marginaliza grupos humanos.
Na verdade, observamos que a globalização levou à crescente marginalidade de grupos humanos inteiros, levando à falência dos ideais arquetípicos de liberdade, igualdade e fraternidade, centrais ao projeto da modernidade.
Esta marginalização é devida ao caráter eminentemente hierárquico das polarizações da modernidade: o homem melhor que a natureza, o espírito superior ao corpo, o conhecimento científico superior ao conhecimento popular. Esta hierarquização leva em seu bojo a cultura sexista ( homem superior à mulher) e colonialista (colonizador superior ao colonizado) de nossa cultura. O questionamento das polarizações da modernidade também nos permitem a proposta de uma sociedade solidária e menos excludente.
Na verdade, só podemos compreender o indivíduo, partindo do global, dos processos coletivos do inconsciente coletivo que se manifestam em plano individual. A mitologização do processo terapêutico apontado por Jung é o único caminho para se compreender os processos transformativos que operam a partir do Self e se expressam na transferência, nos sonhos e nas técnicas expressivas, isto é, onde quer que o símbolo seja operativo.
Os mitologemas da transformação estão presentes em nível social mesmo quando aparentemente a atitude é fruto da racionalidade. Eliade (1984) procurou demonstrar que o nazismo seria movido pelo mito nórdico do Götterdamerung, “o crepúsculo dos deuses”, a auto-destruição final. E mesmo o marxismo, aparentemente materialista, teria em si o mito judaico-cristão. Assim, a utopia da sociedade sem classes, seria análoga à idéia mitológica da Jerusalém celestial. Também o meio para se obter a utopia teria raízes míticas: o operariado sofredor, teria a qualidade do ungido, do Christós, que trás a redenção.
A capacidade de diálogo transformador entre as pessoas é expressão do diálogo entre as diversas culturas, porque cada indivíduo está inserido em determinada cultura, em determinado tempo. Os conflitos individuais estão inseridos nos conflitos históricos, coletivos. Somente com a compreensão do mito do outro é que o conflito coletivo poderá ser evitado.
BIBLIOGRAFIA
ELIADE, M.-Mitos, sueños y misterios. Buenos Aires: Compañia General Fabril, 1966.
JUNG,C.G.-(1921) Tipos psicológicos. Ob. Comp. Vol. VI. Petrópolis: Vozes, 1978.
KHUN, T.-A estrutura das revoluções científicas. S. Paulo: Perspectiva, 1998.
MARTIN, S.-Meaning in art. In: C.G. Jung and the humanities. New Jersey: Princeton University Press, 1990.
SOUSA SANTOS, B.-A crítica da razão indolente. S. Paulo: Cortez, 2000.