Atalanta Fugiens e a Fuga

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ATALANTA FUGIENS E A FUGA
Sibely Joaquina Pereira Lima
sibely_lima@yahoo.com.br
Bacharel em Violoncelo e Licenciada em Música pela Universidade de Brasília (UnB 1986); concluiu Pós-graduação em Jung no Instituto Brasileiro de Medicina de Reabilitação (IBMR 2010). Violoncelista da Orquestra Sinfônica do Teatro Municipal do Rio de Janeiro e Estudante do oitavo período de Psicologia no IBMR.
Resumo
Jung escreveu sobre o papel da música dentro da expressão do inconsciente coletivo. Um revisitado tema de estudo é o Tratado Alquímico Atalanta Fugiens do médico alquimista Michael Maier (1568-1622) _ uma tentativa de musicoterapia para os problemas da época, no qual ele descreve inúmeras analogias entre alquimia, mitologia e música, através de textos, imagens visuais e composições musicais, tomando como base o mito grego registrado por Ovídio em Metamorfoses. O simbolismo da fuga é interpretado no mito, na alquimia e na música, como representação de fenômenos psíquicos nas manifestações culturais. As estruturas musicais são articuladas às imagens arquetípicas.
Palavras-chave: fuga, coniunction, estruturas musicais.

Abstract
Jung wrote about the role of music in the expression of the collective unconscious. A revisited topic of study is the Michael Maier´s (1568-1622) alchemical treatise Atalanta Fugiens – a try of music therapy for the problems of the era in which he describes numerous analogies between alchemy, mythology and music, through texts, visual images and musical compositions, based on the Greek myth, documented by Ovid in Metamorphoses. The symbolism of the “fugue” is interpreted in myth, alchemy and music, as a representation of psychic phenomena in the cultural manifestations. The musical structures are articulated to archetypal images.
Keywords: fugue, coniunction, musical structures.

INTRODUÇÃO
A literatura da psicologia analítica sobre a música tem início em 20.01.1950 com uma carta de Jung a Serge Moreux, editor da revista musical Polyphonie. Moreux havia pedido a Jung que escrevesse um artigo para o número especial da revista “La musique et les problèmes de l’Homme” sobre o tema “Le rôle de la musique dans l’expression de l’inconscient collectif”.
[…] É certo que a música, bem como o drama, têm a ver com o inconsciente coletivo. […] De certa forma, a música expressa o movimento dos sentimentos (ou valores emocionais) que acompanham os processos inconscientes. […] A música expressa em sons o que as fantasias e visões exprimem em imagens visuais. Não sou músico e não seria capaz de desenvolver essas ideias em detalhe […] Só posso chamar a sua atenção para o fato de que a música representa o movimento, o desenvolvimento e a transformação de motivos do inconsciente coletivo. A forma musical é expressão do caráter circular dos processos inconscientes como, por exemplo, os quatro movimentos da sonata ou na perfeição do arranjo circular na Arte da Fuga. Mais do que isto não poderia dizer-lhe sobre este tema. Somente um músico com conhecimentos psicológicos poderia escrever sobre a psicologia do contraponto e do arranjo circular.(apud RASCHE, 2008, p.350, grifo nosso).
A correspondência completa está registrada em Letters, vol.1. Desde então muitos escreveram sobre o fenômeno da música em analogia às ideias junguianas. Um tema revisitado por vários autores até hoje é o tratado alquímico de Michael Maier Atalanta Fugiens, escrito em Praga, em 1612. Segundo Jörg Rasche (2004, p.145), psicólogo, músico e pianista, esta obra é uma rica tentativa de musicoterapia para os problemas da época, pouco antes da guerra dos trinta anos, que levou a juntar alquimia e música.
No artigo Kontrapunkt und Beziehung (Contraponto e Relacionamento), da revista “Analytische Psychologie”, Zeitschrift für Psychologie und Psychoanalyse, 4/2008, Musik und Psyche, Jörg Rasche (2008) menciona as palestras conferidas em Eranos por Hildemarie Streich, psicóloga e musicóloga. A primeira delas ocorreu em 1973, e tinha como tema o tratado alquímico Atalanta Fugiens de Michael Maier (1568-1622), médico alquimista que descreveu inúmeras analogias entre matéria, psique e música, ou seja, entre alquimia, mitologia e música, através de textos, imagens visuais e composições musicais, tomando como base o mito grego registrado por Ovídio em Metamorfoses. Em 1989, Joscelyn Godwin fez a tradução do latim para o inglês e acrescentou as interpretações de Hildemarie Streich sobre a música de Maier. Essas composições musicais, fugas em estilo antigo (duas linhas musicais que se relacionam de forma específica sobre uma terceira), são interpretadas de acordo com o simbolismo antigo e medieval na música e em analogia com o significado contido nos emblemas e textos; são conteúdos de sabedoria alquímica, interpretados em articulação com as ideias centrais da psicologia junguiana.
Em 2008, Walter Boechat interpreta o simbolismo da corrida em paralelo com o processo de individuação, no capítulo Desenvolvimentos e Regressões de “A Mitopoese da Psique”, e também a união do par amoroso no templo da grande mãe, em correspondência com a operação alquímica coniunctio. Ele traça paralelos entre Mitologia e Alquimia e analisa a conexão entre os personagens dessa estória com as substâncias químicas. Finalmente, Boechat levanta os aspectos psicológicos de acordo com o significado central do mito, os quais são de importância para a psicoterapia, e ressalta a relevância deste mito para o mundo contemporâneo.
Segundo Rasche (2004, pg.125), em Das Lied des grünen Löwen, Musik als Spiegel der Seele, (A canção do Leão Verde, Música como Espelho da Alma), “para quem desejar compreender ou se fazer entender sobre o que acontece na música, o que ela “diz” ou o que ela “faz” com aquele que a executa ou que a ouve, torna-se útil um tertium comparationis, um sistema análogo”. Ele diz encontrar na alquimia a melhor forma comparativa de reconhecer a expressão da psique coletiva na história e desenvolvimento das estruturas e formas musicais. Apesar da música não reproduzir as imagens do mundo exterior, os padrões de relações presentes na sua construção, associam-se por analogia aos motivos mitológicos e alquímicos. O que a música e a Alquimia têm em comum, é ilustrar as imagens (sejam padrões sonoros ou imagens visuais) em um processo. Assim como no pensamento imagético, a música corresponde a uma ordem não verbal ou pré-verbal dos nossos processos mentais; é uma ordem estruturante que corresponde a uma camada mais profunda da nossa psique. Nela não existe o conceito de tempo, mas um sentimento de tempo, que se orienta por repetições e simultaneidades (sincronismos). A camada em que somos musicais é aquela que forma a pré-condição para a aquisição da linguagem; a mesma da qual surgem todos os movimentos expressivos e a modulação da nossa voz, os quais acompanham a nossa fala; e também, a camada que nos dá a possibilidade da verdadeira experiência de transformação. Por isso a música é estreitamente ligada ao rito.
Sobre os alquimistas, Jung disse:
eles têm “nolens volens” (quer queiram quer não), um compromisso com o inconsciente, e a variedade por assim dizer ilimitada de suas imagens e paradoxos descreve uma realidade psíquica do mais alto significado. Descrevem o caráter indeterminado, ou melhor, a multiplicidade de sentidos do arquétipo, o qual representa sempre uma verdade simples, mas que só pode ser expressa por um grande número de imagens. Jung (OC v.16, §497)
Esta citação descreve a qualidade do arquétipo de se manifestar e se atualizar em imagens que se desdobram, que se transformam, adquirindo novas formas e sentidos. O emblema “o leão verde” é uma imagem entre muitas, um símbolo da força transformadora e criativa do arquétipo, que assume novas formas, as quais trazem novas possibilidades de sentido e de vida. Tais símbolos possuem dois lados: um deles refere-se ao campo da experiência concreta, e o outro, ao da esfera psíquica ou espiritual. Os alquimistas descreviam o que eles viam em imagens surpreendentes. Em parte conscientemente e em parte inconscientemente, eles tomaram do arsenal de imagens do cristianismo medieval, mas também das antigas representações sobre a natureza. Jung tinha observado tais imagens nos próprios sonhos e naquelas dos seus pacientes, e ele as comparou com os modernos diários de sonhos ou com as séries de quadros pintados a partir do inconsciente. Ele ficou admirado quando os tratados alquimistas abriram a ele um material de comparação. Ele os vivenciou como uma olhada no mundo de imagens do inconsciente coletivo, e utilizou séries de imagens alquimistas como meio de orientação para a compreensão de processos psíquicos. Os diários de sonhos, séries de quadros de imagens e tratados alquimistas, todos estes, dizem algo a respeito do Processo de Individuação, no qual a psique de uma pessoa se estrutura e se regenera, e no qual é produzido sempre e de novo um relacionamento entre o inconsciente e a consciência. Nisto está implicado uma relativização do ego, sem a qual não seria possível um acréscimo de autoconhecimento.
Este trabalho visa explorar o simbolismo antigo e medieval na música, baseado no que foi estudado a partir do Tratado Atalanta Fugiens. Desta forma, na primeira seção, o simbolismo da fuga é interpretado em três diferentes contextos: a fuga no mito, na alquimia e na música.
No que diz respeito à música, é abordado o significado original da forma Fuga (sec. XIII) e sua articulação com os processos alquímicos. À medida que as transformações ocorrem na estória do mito e no vaso alquímico, o padrão de relacionamento entre as vozes da fuga também muda, passando da imitação exata para a imitação em oposição.
O Cantus Firmus é analisado no contexto da sua interferência no relacionamento entre as duas vozes da fuga, como também isoladamente, quanto à sua origem, no contexto da cultura medieval. O movimento retrógrado, que surge a partir das últimas dez fugas, indica uma mudança na direção dos acontecimentos.
As estruturas fundamentais (1°, 5°, e 8° graus) são interpretadas em paralelo ao simbolismo alquímico e aos mitos da criação.
A dissonância como o diabo na música (conforme a cultura medieval) é usada deliberadamente nas composições de Michael Maier, pois recebe um propósito psicológico.
A experiência da Totalidade na Música conclui a Primeira Seção.
Na Segunda Seção, as estruturas musicais são articuladas às imagens arquetípicas sonoras, em uma visão histórica, a partir de seus fundamentos em Pitágoras, segundo as ideias de Jörg Rasche (2004). Os intervalos fundamentais e estruturantes do sistema tonal ocidental recebem significado psicológico em paralelo aos mitos da criação. Esses mesmos intervalos e símbolos musicais ressurgiram na música medieval e também estão presentes na distância entre as vozes na fuga de Bach.
Contudo, antes de entrar no tema da fuga, é importante apresentar o contexto histórico em que viveu Michael Maier, o qual o levou a escrever o seu Tratado.
Michael Maier e o Zeitgeist
Michael Maier era um autêntico homem da Renascença, dominava diferentes áreas do conhecimento da vida; tinha doutorado em filosofia e medicina e era médico do imperador Rudolph II em Praga e, após sua morte, do conde de Moritz von Hessen. Esta era uma época de tendências contrárias – a reforma e a contrarreforma e, principalmente, o fim de um paradigma e o começo de outro – o Iluminismo, a idade da razão. O Rei Rudolf (1552-1612), reunia em torno de si cientistas, artistas e os intermediários – como os alquimistas. Ele defendia a liberdade religiosa que, no entanto, só se concretizou 100 anos depois. Ele ainda chegou a conseguir manter juntos correntes opostas do espírito da época; tratava-se da reunião dos opostos tanto no indivíduo, como na natureza e no mundo. Isto fica especialmente claro no trabalho do seu médico de confiança e secretário privado, Michael Maier. O rei, através do estudo, prática e meditação da música e alquimia, procurava purificar-se, integrar tendências opostas em si mesmo, para poder lidar com os problemas do reino da mesma forma. Um conhecido símbolo alquimista é um ninho com dois pássaros, um dos quais deseja voar e, o outro, que ainda não tem penas, retém o primeiro. Aí está refletido tanto um problema químico – conjugar uma substância fugidia e outra fixa – como também a situação espiritual daquele tempo.
A época da polifonia na história da música é a mesma dos alquimistas medievais. Michael Maier procurava ilustrar os paralelos entre os motivos mitológicos e alquímicos e também utilizou o simbolismo medieval na música para representar os mesmos processos. Para isso, ele utilizou o mito grego Atalanta Fugiens como base para seu tratado e escreveu sobre ele 50 gravuras em cobre com representações alegóricas, 50 poemas relativos a cada uma delas e ainda 50 fugas. Esta obra representa um mesmo processo em três linguagens, “uma espécie de pedra de roseta que permite traduções em diversas direções”: Os emblemas, individualmente, são ilustrações dos mitos greco-egipcios. Os textos provêm em grande parte da Tabula Smaradigma, de Hermes Trimegisto e são ricos em conteúdo de sabedoria alquímica. As fugas são 50 pequenas composições com uma mesma estrutura geral, na qual duas vozes dispostas sobre um Cantus Firmus constituem um relacionamento específico entre duas linhas musicais, intermediado por uma terceira e reproduzem o conteúdo dos emblemas e textos. Mas, no seu conjunto, nas mudanças estruturais que ocorrem de fuga para fuga, reproduzem a estória do mito.
É importante notar que as fugas e emblemas não são destinados exclusivamente ao entretenimento e nem tampouco são a expressão de emoções pessoais, como vem a acontecer num período posterior da história da música. Elas são um suporte para a contemplação, um foco para a atenção. Elas são manifestações sonoras de conceitos alquímicos. Portanto, elas não são completamente compreendidas, se apenas as apreendermos de forma imediata através dos sentimentos e intuição, como fazemos hoje em dia ao ouvir música. Além disso, elas devem ser observadas, vistas (lidas) e pensadas, de forma a reconhecer e compreender a imagem sonora filosófica, que nelas é manifestada. Esta atitude corresponde à prática da música de uma época, quando ainda não havia surgido o indivíduo e suas emoções na expressão musical.
Mas, sobretudo, a natureza da alquimia é viva, ela tem uma alma e vive em muitas formas. Se nós deixarmos que essas imagens atuem sobre nós, retornaremos à época anterior ao Iluminismo, ao mundo do séc. XVI. Esse mundo corresponde a uma camada que ainda vive nos nossos sonhos.
O Mito
Atalanta ao nascer foi rejeitada pelos pais por não haver nascido homem, e sofre o ritual da exposição, como todo herói. Ela foi abandonada no monte Partenion, na Arcádia. Mesmo assim sobreviveu, foi aleitada por uma ursa e consagrada à deusa Ártemis, a senhora dos bosques e da caça. Atalanta cresceu e tornou-se caçadora alta, bela e forte. Ela vivia identificada com o modelo de vida de sua mãe arquetípica e sempre se recusou a casar – ou por sua fidelidade à Ártemis, ou porque um oráculo predissera que, se o fizesse, seria metamorfoseada em animal. Ela era muito veloz e, para evitar seus pretendentes, desafiava-os para uma corrida. Caso fosse vencida, casar-se-ia com o rival, e caso contrário, perderia este a vida. Muitos morreram nas mãos da filha espiritual de Ártemis. Finalmente surgiu Hipômenes que amava Atalanta e estava disposto a arriscar sua vida. Ele orou a Afrodite e recebeu da deusa três maçãs douradas do amor, para serem usadas durante a corrida. Durante a corrida, Hipômenes atirou as maçãs, uma de cada vez aos pés de Atalanta, de forma que esta, ao decidir apanhá-las, se atrasava, propiciando a Hipômenes a dianteira e, finalmente, a vitória. Ela entregou-se a Hipômenes e os dois se amaram no templo da grande-mãe, pelo que foram transformados em dois leões vermelhos.
1 A FUGA NO MITO, NA ALQUIMIA E NA MÚSICA
No mito, o termo fuga remete, em primeiro lugar, à atitude fugidia da heroína Atalanta que, ao fugir do relacionamento amoroso, desafiava seus pretendentes a superá-la em uma corrida, coisa que fazia melhor que qualquer um. Ela só se casaria, caso fosse vencida.
Na alquimia, a fuga e perseguição nas vozes vem realçar o opus alquímico, a busca de conjugar uma substância fugidia com outra fixa, a busca da coniunctio. A coniunctio oppositorum é um símbolo da meta do processo de individuação, na qual os opostos são integrados à consciência.
É conhecido que os alquimistas queriam produzir ouro. Todavia, isto é apenas um aspecto. Como antiga ciência natural, a alquimia era química e estava na base da filosofia da natureza antiga e medieval. Ela tentava descrever a essência dos opostos e a transformação das substâncias, umas a partir de outras e também na ligação com as outras. O essencial das ligações químicas, a coniunctio, estava no centro dos interesses. Para entender as afinidades de determinadas substâncias, parecia útil pensar em opostos: úmido-seco, quente-frio, sólido-gasoso, etc. A mais importante oposição era aquela entre o Enxofre e o Mercúrio.
Hipômenes e Atalanta constituem personificações desses elementos. “A competição entre eles expressa a contínua atração entre os opostos psíquicos, entre o consciente e o inconsciente, o ego e o si-mesmo, e a necessidade de integração” (Boechat, W. 2008, p. 95).
Segundo a interpretação mitológica, a transformação dos dois amantes em leões é vista como uma punição. Mas,
[…] Os alquimistas falam do templo como seu vaso de trabalho, onde as substâncias interagem.[…] a coniunctio é a operação final, a mais importante e significativa de todo o opus da Alquimia. Psicologicamente falando, está relacionada com os fenômenos de aproximação e conjugação das polaridades psíquicas, que dissociadas promovem unilateralidade e patologias e, conjugadas, a criatividade. As pessoas que têm o ego dissociado da sombra e da anima tornam-se neuróticas, aqueles que se conjugam com a sombra (integração do recalcado) e conseguem estabelecer pontes simbólicas com a anima (descoberta do destino pessoal) tornam-se solidários e criativos. Ainda dentro da abordagem alquímico-psicológica, tomamos em conta que o leão não é apenas um símbolo de instinto, no caso, o rei dos instintos, mas que, em alquimia, o leão vermelho representa a Tintura Real Vermelha, uma equivalência ao ouro filosófico, ao arquétipo do si-mesmo. (Boechat,W. 2008, p. 96,98)
Para a Psicoterapia, segundo Walter Boechat (2008), os elementos que formam a trindade alquímica representam elementos psicológicos fundamentais. Os elementos alquímicos correspondem a substâncias psíquicas. O enxofre ígneo e corrosivo é o desejo e também o pragmatismo, o que a psicanálise chamou de investimento libidinal. A personalidade sulfurosa é aquela ligada ao desejo sexual e ao de poder. Em nossa tradição judaico cristã é comum dizer que o diabo tem cheiro de enxofre. No mito, esse elemento é personificado em Hipômenes. Mercúrio é a substância fundamental na fantasia alquímica, o servus fugitivo, aquele que não pode ser retido facilmente, essencial para a realização do opus, devido ao seu caráter transformador. Mercúrio corresponde ao personagem de Atalanta no mito. As maçãs de Afrodite são associadas por Maier ao sal alquímico, o princípio do amor divino, o grande preservador de substâncias. Sem a intervenção de Afrodite e suas maçãs douradas, o coniunctio oppositorum, a finalidade da obra alquímica não teria sido possível.
1.1 A fuga na música
Em suas fugas, Michael Maier tomou emprestado uma forma estrutural do sec. XIII, que atendia a seus propósitos. Nela, encontram-se padrões de movimento e de relacionamento entre as vozes. Na ilustração abaixo, o relacionamento entre as vozes de Atalanta e Hipômenes (trecho da primeira fuga, sem a voz das maçãs de ouro). A voz de Hipômenes corre atrás da voz de Atalanta:

A Fuga na música é um tipo de relação entre duas ou mais vozes, um determinado padrão de relacionamento, de interdependência entre elas. A palavra é de origem latina, foi o primeiro nome dado ao que mais tarde na história da música veio a se chamar Canon, uma peça ou técnica musical medieval, originária do século XIII, em que uma linha musical imita e segue a outra como se a estivesse perseguindo. Os mais antigos exemplos traziam cenas de caça no texto, simbolizando a fuga e a perseguição no relacionamento entre as vozes. A técnica de composição, assim como a peça, pode ser chamada fuga (Zahar, 1985). Entre as duas vozes desenvolve-se uma luta intensa, que move para frente o acontecimento musical até sua união final, ao fim da fuga. Assim diz o texto de uma fuga do séc. XVI: “Ninguém pode escapar do amor”.
Nas fugas de Maier, a voz de Atalanta é fugidia, é sempre diferente. É ela que introduz o tema da fuga, que é sempre diferente de fuga para fuga. Embora ela entre após a voz das maçãs, é ela que lidera, pois tem o motivo condutor da fuga, e que é seguido por Hipômenes. A voz de Hipômenes é uma cópia de Atalanta, e segue atrás. Hipômenes responde ao tema da Atalanta em exata imitação. O padrão de movimento da voz de Hipômenes é igual ao de Atalanta.
1.2 O Cantus Firmus, a Voz das Maçãs de Ouro
A característica da forma fugal escolhida por Maier, é que essas duas vozes que correm ativamente, têm seu fundamento estabilizante no Cantus Firmus sempre constante, em uma terceira voz, a voz das maçãs de ouro:

A voz das maçãs é fundadora, está em baixo e inicia o acontecimento musical. As outras duas começam depois dela e correm sobre ela. Há três aspectos importantes na voz das maçãs: Primeiro, ela está presente ao início de cada fuga e nunca entra após uma outra voz. É o princípio do Uno divino e suas polaridades. Ela corresponde ao princípio básico imutável e estabilizante que mantém juntas forças opostas, e que é ao mesmo tempo o iniciador de cada novo processo dinâmico musical. Segundo, ela apresenta um padrão de movimento, que é constante. A voz das maçãs é uma imagem sonora de um princípio que permanece constante em si mesmo e é atemporal. Em linguagem musical, as maçãs são representadas por um Cantus Firmus, isto é, a voz fixa. Ela tem na sua melodia, um padrão de movimento que é constante, pois se mantém em todas as fugas, o que difere das outras duas, que apresentam a cada fuga um novo motivo musical. Terceiro, a melodia das maçãs se movimenta do 5º grau da escala (dominante) para o 1° (fundamental), é um movimento descendente. Segundo a tradição pitagórica, o quinto grau representa o Sol; o oitavo grau representa o céu estrelado; e o fundamental, a terra. Visto à luz deste simbolismo antigo, a melodia das maçãs se movimenta da região do sol na direção da terra.

Segundo a Tabula Smaradigma, o sol é o pai da criança divina. Sua força é completada quando ela desce para a terra. Desta forma, a melodia das maçãs expressa nas 50 fugas, em suas formas sempre repetidas, o sempre repetido processo, passo a passo, da encarnação do Filius Filosoforum na esfera terrestre.
Segundo Hildemarie Streich (Rasche, J. 2008), a melodia da maçã é baseada em um antigo Cantus Firmus cristão, o Christe Eleison do Kyrie do Cunctipotens genitor deus. Na voz mitológica das maçãs de ouro do amor está inserido um hino a Jesus Cristo, o sol da vida, que deseja encarnar em cada homem. No simbolismo antigo, Cristo é considerado como o Sol da vida, como o princípio de vida e amor em geral, como o verdadeiro Sol espiritual. Tanto seu nascimento quanto sua ressurreição são celebrados como a vitória da luz e forças da vida sobre a escuridão e morte.
“Psicologicamente, a voz das maçãs douradas representa o que Jung denominou como a Função Transcendente do si-mesmo, um movimento psicológico de unir opostos por manifestações simbólicas, buscando a integração das partes no todo” (Boechat, W. 2008, p. 95).
1.3 Estrutura Geral das Fugas e os Processos Alquímicos
Do ponto de vista da estrutura geral das fugas, as vozes estão dispostas em três linhas: uma acima, outra ao meio e outra abaixo. Mas elas modificam os seus níveis, de fuga para fuga. A voz das maçãs translada e, ora está embaixo, ora ao meio e ora em cima. Consequentemente, ela interfere no relacionamento das duas outras. A contínua alternância entre um nível mais baixo e um mais alto, aparenta semelhanças com os processos de mudança no vaso alquímico, como a descida e solidificação das substâncias leves, e a liquefação, vaporização e subida das substâncias pesadas. Segundo a Tabula Smaradigma: “Ele ascende da terra para o céu e desce novamente para a terra, e recebe a força das coisas superiores e inferiores”. Isto tem correspondência aos processos psíquicos aos quais Jung se refere como a materialização do espírito e a espiritualização da matéria, respectivamente, a realização de desejo no espaço e no tempo, e a atribuição de significado.
1.4 As Primeiras Fugas e o Início do Opus Alquímico.
Individualmente, as fugas procuram reproduzir o significado de cada emblema e texto. Mas no seu conjunto, nas mudanças estruturais que ocorrem de uma a outra fuga, elas vão reproduzir os acontecimentos marcantes na estória do mito. Segundo o princípio alquímico de que o Um é o Todo e o Todo é o Uno, a primeira fuga é de importância capital.
1.4.1 Do 5º grau para o 1°. A criança divina e o nascimento da heroína:
O primeiro emblema traz juntamente o significado da voz das maçãs. A criança divina nasce do vento, é o filho do sol que, como a voz das maçãs de ouro, desce do 5º grau para o 1º, da região do sol para a da terra. Esta fuga refere-se também ao nascimento da heroína Atalanta, que foi rejeitada por não ter nascido homem, e ainda assim sobreviveu. O herói/heroína é sempre o/a filho/a de um deus, de um princípio celestial, como o vento.
O segundo emblema mostra a terra como ama, Atalanta é nutrida pela mãe natureza: a criança divina precisa de um ser amoroso e nutridor para poder crescer. Isto vale para cada processo criativo. Vemos nos dois primeiros quadros, a presença dos pais primordiais, o céu e a terra.
1.4.2 O Simbolismo da Dissonância (o diabo na música) e a integração da sombra
Michael Maier utilizou diferentes intervalos na distância entre as vozes e não apenas as quintas e oitavas (intervalos perfeitos), como recomendavam as regras da época. Isso abre muitas possibilidades de dissonância entre as vozes. Na Idade Média, os intervalos perfeitos serviam à representação de Deus como Perfeição. Havia uma dissonância que era considerada como o diabo na música – o trítono; Maier usou-a na expectativa de integrar o diabo na música.
O uso deliberado da dissonância já no 2o compasso encontra-se no início do opus. A díade, a tensão dos opostos representada pela dissonância entre as vozes de Hipômenes e Atalanta significa psicologicamente o conflito, o confronto com a sombra. A dissonância expressa, logo ao início da obra, o alvo do opus – o trabalho de integração do outro lado, da integração da sombra, a retirada das projeções. Abaixo, o trítono (em vermelho), o conflito no relacionamento entre as vozes de Hipômenes e Atalanta.

Por um lado, Jung caracteriza a individuação como um processo interno e subjetivo de integração, no qual o indivíduo conhece outros lados em si mesmo, entra em contato com eles, e liga-os à imagem de si próprio mediante a retirada das projeções.
1.5 As Fugas Finais
1.5.1 O movimento Retrógrado. A mudança de Direção.
Na 41a fuga o movimento retrógrado aparece pela primeira vez na voz das maçãs indicando a queda da primeira maçã e também a situação, que começa a se inverter. No emblema, Adonis ressurge para uma nova vida após três dias. Ele é considerado o criador da semente, cujo desdobramento em uma nova forma é alcançado através da sua morte.

1.5.2 O Canon espelho “O sol e sua sombra aperfeiçoam a obra”.
Na 45ª fuga, o emblema mostra o globo terrestre. O contraste do sol e sombra é análogo à polaridade sol e lua, como os princípios ativo e receptivo que complementam um ao outro. A forma composicional de contraponto assumida pelas vozes da fuga é a do Canon invertido, ou Canon-espelho (A voz que responde, o faz de forma invertida: se a condutora sobe, a que responde desce, no mesmo padrão). Contraponto significa ponto contraponto, nota sobre nota, ou seja, o relacionamento entre linhas musicais. O relacionamento das vozes de Hipômenes e Atalanta vai se modificando nas fugas finais. A imitação não é mais exata, mas em oposição. Os dois polos complementando e completando um ao outro estão começando a reconhecer e refletir um ao outro. Trata-se do começo da tomada da consciência dos opostos. No emblema correspondente, o globo terrestre redondo é um símbolo da totalidade, o círculo é um símbolo do si-mesmo. Os paralelos entre a música e a astrologia, são resultados da projeção cósmica do si-mesmo.

1.5.2.1 A experiência da Totalidade na Música
Seja no homem redondo de Platão ou na sensação oceânica de Freud, que segundo suas próprias palavras lhe faltava, ou ainda, na tão procurada coniunctio de Jung, a totalidade é um estado ideal paradisíaco de ao mesmo tempo conter e estar contido. Nosso desejo e fantasia de completude colocamos preferivelmente no passado, o mais que possível para trás, na ligação urobórica do bebê com a mãe, ou nos povos primitivos que viviam integrados, não separados da natureza. Nós também estivemos uma vez no paraíso. É uma fantasia ou uma reconstrução. Sempre e de novo, no mito de criação de todas as culturas, está uma visão de inteireza no começo e também no final da história pessoal ou coletiva. Totalidade é algo a que nós nos inclinamos.
Totalidade também significa sair do tempo, ouvindo música nós podemos experimentar a eternidade em um momento.
2 ESTRUTURAS MUSICAIS E IMAGENS ARQUETÍPICAS
Os mais antigos tratados sobre estrutura psíquica e música, remontam a Pitágoras. Ele via nas ordenações da nossa percepção, sentimento e pensamento estruturas análogas àquelas do mundo exterior cósmico e arquetípico. O elemento de ligação entre o macrocosmos e o microcosmos para ele e seus discípulos, e idade média adentro, era o número, com a expressão numérica das proporções.
Uma visível herança desta filosofia nós temos ainda hoje no nosso sistema tonal com os princípios da tônica (som fundamental), do intervalo de Oitava, intervalo de Quinta, e os doze meio-tons. As teclas brancas e pretas do piano, em certa medida, nos enviam de volta a Pitágoras. Entre elas domina um relacionamento, que reproduz tanto a ordem do cosmos quanto a da psique.
2.1 O experimento de Pitágoras e a fuga de Bach.
A doutrina de Pitágoras não era pura matemática, porém uma observação viva e experimentada da natureza, do mundo dos deuses e dos homens. Ele observou o fenômeno vibratório das cordas. Uma corda, ao vibrar, divide-se espontaneamente ao meio, depois em três partes, em quatro e assim sucessivamente, este é um fenômeno natural. A cada divisão corresponde um som relacionado ao fundamental, que forma um intervalo em relação a ele. A divisão da corda, precisamente no meio, resulta no intervalo de oitava sobre o som fundamental (1:2). Uma outra, que divide a corda em três partes, resulta no intervalo de quinta (2:3), e a divisão em quatro (3:4) resulta no intervalo quarta. Ele representou numericamente as proporções da natureza.
A percepção acústica do intervalo de quinta andava em paralelo com a visão do Sol, e tudo aquilo que estava associado a ele: calor, força, luz pureza, vida, como também o perigo da derrota por essa pura força. Mas a quinta tinha dois lados, pois ela podia ser superada pela oitava. Enquanto a oitava representava o céu, a grande ordem, a quinta tinha o papel de conectar a ele. Mais tarde ela foi associada a Jesus, o igualmente solar filho do Deus pai, que conectava os homens na terra (Tônica, o som fundamental) ao grande Pai do céu (a oitava).
Essa estrutura vale ainda para J. S. Bach e está presente na distância entre as vozes. Cada fuga conduz o seu tema até o 5º grau acima, sobre o qual a segunda voz responde. Isto não é uma invenção qualquer de um compositor, mas uma afirmação teológica, que se baseia segundo as leis naturais na consonância da quinta, que Pitágoras foi o primeiro a descrever. A forma da fuga mostra uma forma elementar de relacionamento entre estruturas tanto físicas quanto psíquicas. A primeira voz apresenta um tema, o seu tema; ela é respondida por uma segunda oponente. Das duas primeiras vozes surge um diálogo e, ao mesmo tempo, a segunda voz permite a introdução de uma terceira e depois, de uma quarta num intervalo de oitava. Jesus é intermediário para o Deus pai. Abaixo, a Fuga em Mi maior, da segunda parte do Cravo bem-temperado, de Bach:

A consonância da quinta justa é uma lei natural, ela vale para todos os seres viventes, também quando supostamente não se pensa sobre isso, mas a sua introdução na percepção consciente e no pensamento requer um longo processo cultural. Desde Pitágoras a quinta é uma ideia permanente, uma imagem para uma conexão arquetípica. O arquétipo é vivenciado, mas sua manifestação faz necessário uma representação no nosso espírito. Só então podemos falar de uma “imagem arquetípica”, ou um “som arquetípico”.
Aos símbolos arquetípicos pertencem também padrões de movimento como a linguagem corporal, os movimentos expressivos espontâneos na fala, e os padrões básicos abstratos da nossa percepção, como as cores, determinadas formas como o círculo, a linha, o quadrado, a cruz, o triângulo. As imagens arquetípicas são padrões nos quais a nossa percepção se orienta, e eles não podem ser questionados. Também os sons, determinados intervalos, ritmos, movimentos e relacionamentos de linhas musicais têm essa qualidade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Jung viu nas manifestações culturais representações de fenômenos psíquicos. A comparação feita entre alquimia, mitologia e música, permite perceber padrões arquetípicos comuns em diferentes manifestações e fomentar a hipótese de que as estruturas e formas musicais, sendo produtos da psique coletiva, refletem estruturas e processos psíquicos.
Os temas abordados apresentam um caráter de atualidade. O mito da heroína Atalanta, apresenta um padrão de relacionamento homem-mulher, que se configura nos tempos atuais de forma positiva. Encontramos no modelo da heroína, um padrão de relacionamento que difere do modelo heroico masculino, pois não se configura pela anulação e destruição do outro, mas pela interação e aprendizado.
Também podemos reconhecer as ideias correntes da Renascença no mundo contemporâneo. Elas reaparecem hoje em dia, e consolidam-se por meio do movimento ecológico, na noção de interpretar o cosmos como um organismo, e os seres humanos como parte desse organismo, em que ocorrem as mais diversas interações.
É conhecido a importância do símbolo na psicoterapia junguiana, num mundo desencantado, ou despsiquificado. O processo terapêutico, compreendido como processo de individuação, consiste no fato de o inconsciente e a consciência, no âmbito dos conteúdos vividos, ligarem-se no símbolo. Por meio das formações de símbolos, torna-se possível o desenvolvimento criativo da subjetividade.
Isto adquire especial importância para o homem contemporâneo, que atingiu um desenvolvimento tecnológico e conhecimento do mundo exterior extraordinários, mas desproporcional ao conhecimento do próprio homem em sua subjetividade.
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