Culpa e Cumplicidade: Édipo e Jocasta

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Culpa e Cumplicidade: Édipo e Jocasta
Walter Boechat

Vamos abordar mais uma dupla amorosa, Édipo e Jocasta, de acordo com nosso referencial junguiano do inconsciente coletivo e dos arquétipos, sem esquecer a cultura na qual este mito está inserido, a cultura grega clássica, politeísta; uma cultura na qual a noção de indivíduo encontra-se dissolvida na noção de grupo, principalmente na noção do grupo familiar, o guénos. De acordo com esta visão de mundo, a culpa pelos atos cometidos não é individual, dissolve-se no coletivo do guénos e do social. Precisamos partir deste ponto quando abordamos a temática da culpa em Édipo e Jocasta.
Sem dúvida, a noção de culpa individual também existiu na Grécia antiga; um dos grandes méritos do orfismo, movimento religioso de influência oriental foi o resgate da noção de responsabilidade mais individualizada: seus seguidores acreditaram na metempsicose, praticaram o vegetarianismo e a professaram a fé numa recompensa pós-mortem. Mas esta é uma situação muito particular.
A postura tradicional da Grécia homérica é a da culpa coletiva; as faltas são chamadas de hamartia. Este termo quer dizer: “uma mancha que se espalha”; contamina, portanto, tudo o que está em volta. Um dos membros do guénos comete uma falta, e todos os membros deste guénos são de uma forma ou de outra culpados e deverão expiar pela falta.
Esta e muitas outras noções que no mundo antigo foram abertamente professados, e que na sociedade atual aparentemente não o são, continuam a ter uma existência no inconsciente coletivo. Isto qualquer psicoterapeuta percebe em sua prática diária; como os complexos inconscientes não resolvidos ou elaborados pelos pais terão que ser confrontados pelos filhos e netos, de uma forma ou de outra.
Este fato psicológico foi nomeado na Grécia antiga como a maldição do guénos. A terrivel hamartia ainda se faz notar de forma concreta nos dias de hoje, no sertões do Brasil, por exemplo, quando famílias inteiras se destróem pela sede do poder; na política nordestina recente estes fatos foram bem explícitos.
O problema da culpa de Édipo se insere na chamada “maldição dos Labdácidas”, família à qual pertenceu Édipo, filho de Laio.
Junito Brandão segue a pesquisadora francesa Marie Delcourt numa interessante abordagem etimológica do nome Laio, Labdácida e Lábdaco, este último o pai de Laio.
Segundo a interpretação mais corrente, Lábdaco, pai de Laio e antigo rei de Tebas, teria seu nome derivado do “Lépein”, que quer dizer “esfolar”. Isto porque, assim como o rei Penteu, Lábdaco teria se oposto ao culto de Dioniso em Tebas e teria sido, por conta disto, despedaçado pelas bacantes.
Marie Delcourt, citada por J. Brandão, trás outra interpretação: estes nomes provêm da letra “lambda” – L – não seriam nomes, mas em vez disto alcunhas, designando já uma deformidade física, significando “manco”, “cambaio”, “com os pés para fora”, semelhante à própria letra lambda.
A deformidade física aponta já diretamente para um tema de grande importância psicológica, associado ao mitema da criança-herói e ao mito de Édipo: o tema da “exposição da criança”.
A criança exposta, ritual de fundo religioso frequentemente adotado na Grécia clássica, está intimamente ligado ao problema da culpa coletiva. A criança exposta aos elementos naturais, numa situação de quase morte, iria magicamente expiar a culpa ancestral do guénos pela sua própria morte. Estas crianças apresentavam, com freqüência, alguma deformidade física; tornavam-se “bodes-expiatórios” adequados para a expiação mágica da culpa.
Também miticamente a exposição ocorre com a criança-herói: assim como Édipo é exposto no monte Citerão, Psiqué é deixada no rochedo para ser devorada pelo monstro, Perseu é lançado ao mar com sua mãe Dânae.
A exposição da criança-herói tem um duplo sentido psicológico: por um lado significa, a nivel do indivíduo, o ponto de partida para seu processo de amadurecimento psicológico e independência psíquica, seu processo de individuação; o abandono aos elementos da natureza trazem esta noção de independência das figuras parentais de origem. Por outro lado, a psicodinâmica do “bode-expiatório” é bastante complexa, estando associada aos mecanismos de elaboração do arquétipo da Sombra individual, que de uma forma ou de outra, está sempre entranhada à Sombra familiar ou grupal.
O abandono de Édipo no monte Citerão por um escravo de Laio, a mando deste, obedece ao ritual de exposição. Como é sabido, Laio consultara o oráculo de Delfos que predissera que se tivesse um filho, este o mataria. Laio, atemorizado com o nascimento de Édipo, apressa-se a ordenar a um servo seu que o expusesse no monte.
Freud concentrou-se originalmente na temática do parricídio e do incesto, temas importantes no mito de Édipo, mas não únicos. O parricídio, assassinato de Laio por Édipo no encontro no trívio- passagem divida em três, número nuclear na temática edípica, é inconsciente, assim como o incesto com a mãe Jocasta.
Ao contrário, o filicídio, a exposição de Édipo no monte Citerão por Laio, é plenamente consciente, planejado, e precede os desdobramentos ulteriores da trama. Laio segue o padrão da linhagem dos deuses masculinos que o precedem : Úrano impede seus filhos de nascerem, Crono os devora; mesmo Zeus a princípio não foge a esta compulsão, devorando Métis, sua primeira consorte. Há sempre uma ameaça oracular de sucessão pela geração seguinte, intolerável para os arquétipos masculinos.
O problema do parricídio sem dúvida é importante, mas não nos devemos esquecer do filicídio e de sua importância simbólica. Alguns autores se debruçaram sobre este tema, como o argentino Raskowski e a norte-americana Alice Miller.
Mencionamos que a criança exposta está associada a um dinamismo de expiação da hamartia do guénos e que esta problemática continua atualmente no inconsciente coletivo cultural e familiar. Os terapeutas de família sistêmicos denominam o “bode expiatório” familiar, aquele encarregado por sua psicopatologia de trazer um equilíbrio artificial ao sistema como um todo, de “elemento identificado”.
Visto sistemicamente, Édipo é este elemento identificado, encarregado de expiar a culpa ancestral. A culpa do Labdácidas vem de várias gerações: vamos investigar esta hamartia mítica assim como em análise investigamos a mitologia familiar e suas mazelas não resolvidas.
O problemática dos Labdácidas parece ter origem remota no próprio fundador de Tebas, Cadmo. Ao encontrar o local propício para fundar a cidade procurou uma fonte para se espargir. Esta era guardada por um dragão, que Cadmo prontamente matou. Dos dentes do dragão, nasceram gigantes, que batalharam entre si, sobrando apenas cinco, que juntamente com Cadmo, iriam formar o núcleo da aristocracia tebana. A morte do dragão consagrado a Ares constituiu grave hamartia.
Labdáco, pai de Laio, é neto de Cadmo, e herda a maldição familiar: segundo a tradição, assim como seu primo Penteu, foi despedaçado pelas bacantes por ter se oposto à introdução do culto de Dioniso em Tebas.
Laio, durante um período de exílio na corte de Pélops, apaixona-se por seu filho Crisipo, raptando-o. Desrespeita assim tanto a hospitalidade sagrada, cujo protetor era Zeus, e também Hera, protetora dos amores legítimos. Laio é assim considerado o introdutor mítico da pederastia na Grécia; a ira de Hera dá origem à maldição dos Labdácidas. Crisipo acabou por matar-se, envergonhado.
Percebemos assim, que o destino de Édipo, como criança exposta, já vinha sendo delineado há longo tempo. A noção de culpa familiar, na cultura antiga e em mitologia, tem assim, grande importância psicológica.
A falta de Laio, o homossexualismo, é punido por Hera, que envia a Esfinge, “a cruel cantora”, aparentada às sereias, pelo canto sedutor e aos íncubos, almas penadas produtoras de pesadelos eróticos.
A exposição de Édipo no monte Citerão e posterior salvação por um pastor de Corinto, o levam a ser educado como filho do rei da cidade Pólipo, e sua esposa Mérope.
Certa vez, em um banquete no palácio, um bêbado chama Édipo de “filho bastardo”. Este fato o perturba bastante, e o leva a viajar ao oráculo de Delfos, para dirimir qualquer dúvida quanto à sua origem. Nesta viajem, irá cruzar no “trívio” fatídico, com Laio, seu pai, e o matará, sem saber sua identidade.
Cruza depois, como sabemos, com a esfinge, e decifra seus enigmas, que são na verdade dois, na tradição antiga. O menos conhecido reza assim: “são duas irmãs, a primeira gera a segunda, e esta, por sua vez, gera a primeira”. A resposta correta é : “o dia e a noite”, que Édipo fornece prontamente.
O segundo enigma, mais difundido, fala de um animal, que possuindo voz, anda pela manhã com quatro pés, ao meio-dia com dois e ao entardecer com três. A resposta correta dada por Édipo é : “o homem”. Segundo algumas versões, nem resposta verbal o herói, deu, apenas tocou a fronte, indicando com isto que ele próprio era a resposta ao enigma.
Tendo seus enigmas resolvidos, a esfinge, derrotada, lança-se ao despenhadeiro. Posteriormente Édipo, como prêmio pela sua façanha, casa-se com Jocasta, sua própria mãe, sem o saber.
O confronto com a esfinge é, em nossa opinião, o momento crucial da tragédia Édipo Rei. Isto porque, o herói se depara com sua tarefa de forma unilateral, extremamente racional. Julga decifrar o enigma da Esfinge, que psicologicamente representa o enigma simbólico do processo de individuação, simplesmente pela lógica consciente. Na realidade, o enigma só será resolvido mais tarde, com sua experiência vivencial incestuosa com Jocasta. Na experiência existencial, de nada valem a lógica e a racionalidade unilaterais.
O próprio nome “enigma”, (em grego, aínigma, “falar por meio-termos”, “dizer veladamente”), está associado arquetipicamente ao ritual do casamento, no qual o herói conquista a princesa.
Assim sendo, podemos antever por detrás do íncubo da Esfinge, a figura psicológica da Anima, que sempre se apresenta com enigmas, chaves para o processo de individuação, sendo ela a mediadora entre o ego e o self.
Como sabemos, entretanto, a Anima está freqüentemente imbricada com a arquétipo da Grande Mãe e faz parte do processo de individuação a diferenciação da Anima de suas contaminações com o princípio materno.
A Édipo, só será passível a elaboração deste processo após as penosas revelações do adivinho Tirésias sobre sua verdadeira origem. Estas revelações, o enforcamento de Jocasta e a extirpação dos olhos de Édipo constituem a “Peripathéia” da tragédia; sua “peripécia”, a inversão de todos os seus valores que a ela impõe o genial Sófocles. Édipo, antes Rei, possuidor do falso saber, e portanto do falso poder, agora é o Édipo que se cega, mergulhado em escuridão, exilado, afastado da cidade, guiado pelas mãos de Antígona.
No entanto, esta trágica “Peripathéia”, aponta para a outro processo, descrito na tragédia “Édipo em Colono”, de Sófocles. Aqui, Édipo cego vai até Colono, bosque nas cercanias de Atenas, dedicado às Eumênides, “as benfazejas”.
Esta mudança radical no trajeto edípico, polar e oposto ao primeiro, é pouco estudado. O autor junguiano Hillman dedicou a “Édipo em Colono” uma atenção especial em seu livro “Oedipus Variations”,(Spring Publications, Dallas, U.S.A.)
Hillman chama atenção para a interessante polarização presente nas duas tragédias; em “Édipo- Rei”,temos o predomínio da visão e seu deus, Apolo: o oráculo, a visão-cegueira de Édipo e Tirésias, e o poder do Rei. em “Édipo em Colono” temos o predomínio da audição: o herói está cego, ouve a voz de sua guia Antígona, os rouxinóis de colono e as vozes do coro, que representa o povo de Atenas.
Na verdade, Apolo predomina de forma excessiva na primeira tragédia, e Dioniso, em sua rara incursão, a acusação do bêbado em Corinto que chama Édipo de “bastardo”, desencadeia todo o drama.
Os dois dramas parecem retratar de forma exemplar o que a psicologia analítica chama de processo de individuação: a primeira metade da vida, uma busca de adaptação à realidade, com o perigo de deificação com a persona- o falso poder do Rei- e a “Peripatheia” da crise liminal de metade da vida, na qual o indivíduo se volta para seu interior (cegueira para o mundo externo) após crise afetiva, profissional ou existencial.
Édipo é recebido em Colono com sentimentos ambíguos a princípio, mas como verdadeiro “bode expiatório” da hamartia tebana, reveste-se também, de sacralidade. O oráculo predissera que o túmulo do herói protegeria qualquer “polis” de inimigos externos.
No momento em que Édipo chega a Colono, estava se iniciando a guerra de Tebas contra Atenas, retratada na tragédia “Sete Contra Tebas”. Creonte e Polinice, filho de Édipo, procuraram sua ajuda e foram imediatamente rechaçados. Somente a Teseu, aquele que lhe deu asilo em Atenas, irá Édipo se entregar.
Essa entrega sem medo e inteiramente diferente da competição parricida e filicida que permeia todo o mito de Édipo enquanto Rei. Temos agora uma relação madura com o poder.
O ciclo mítico de Édipo termina com sua descida suave ao seio da terra, ao de Gaia, a Grande Mãe, num processo de conhecimento profundo de si próprio que os gregos chamaram “anagnóresis”.
Édipo cumpre seu destino, deixando de ser um bode expiatório do guénos de Tebas para se tornar um “héros”, protetor, de Atenas. Da problemática inicial de parricídio, incesto com a mãe pessoal, temos o processo de individuação na segunda metade da vida e a relação com a mãe arquetípica, Gaia.
Não é por acaso que o próprio Sófocles escolheu como cenário de sua bela tragédia Colono, a cidade em que morreu, em idade madura, aos noventa anos.
Há a todos instantes exemplos práticos de vivências de filicídio. Supervisionando candidatos a analistas, vejo constantemente uma pouca consciência de sentimentos contra-transferenciais filicidas em relação aos clientes: inveja das qualidades pessoais do cliente, de seus bens materiais, de suas viagens e qualidade de vida, assim como os pais freqüentemente invejam seus filhos, pelo seu potencial de juventude, força e saúde. Não conscientizados, estes conteúdos permanecem na Sombra e se tornam bastante destrutivos.
O próprio Freud teve que se defrontar com este problema. Sendo ele tão prolífero e tão criativo, teve (e tem) uma horda inumerável de seguidores. O criador de um movimento tão importante quanto a psicanálise, e que tanta influência exerce na cultura contemporânea, teria que ter uma Sombra filicida, um complexo de Zeus.
O fato mesmo de analisar a própria filha Ana, já é uma atividade filicida, pois depriva a própria filha de espontaneidade criadora. Não é por acaso que Ana protegeu tanto a imagem do pai, selecionando o que podia ou não ser publicado na biografia de Freud feita por Ernest Jones. Esta biografia, com o mérito da proximidade dos eventos históricos ali descritos, tem o demérito de ser uma biografia “autorizada”.
No livro “Irmão animal”, de Roazen, publicado pela Imago, o lado filicida de Freud é debatido com clareza. Por muito tempo Roazen foi perseguido pelo meio psicanalítico por debater este aspecto da Sombra de Freud. Mas agora há o reconhecimento geral que mesmo os grandes gênios como Freud, Jung, Lacan, Klein, são figuras humanas, e como tal, com limitações. Idealizá-los seria o pior caminho quer seja para a psicanálise quer seja para a psicologia analítica.
“Irmão animal” era a expressão que Lou Salomé usava para chamar Tausk, com quem teve um caso amoroso. O livro mostra o comprometimento de Freud no suicídio de Tausk, seu talentoso discípulo, que sempre qui se analisar com ele.
Freud achava que Tausk não só o admirava, mas queria também apropriar-se de suas idéias. Recusou-o para análise e encaminhou-o para sua discípula Helene Deutsch. Esta, entretanto era paciente de Freud, tendo várias sessões por semana, sendo um tema freqüente destas sessões seu instigante paciente Tausk.
Estabelecido o insustentável triângulo Freud-Deutsch-Tausk, Freud acaba sugerindo que sua paciente Deutsch desse “alta” a Tausk. Não suportando a rejeição, Tausk comete um duplo suicídio, por tiro e por enforcamento. O obituário de Tausk foi o mais longo de todos os escritos por Freud, o que já é significativo.
O problema do filicídio dentro do movimento psicanalítico agora pode ser melhor detectado e elaborado não só em relação a Tausk como em relação ao próprio Jung, que não tolerando a pressão do pai simbólico, acabou por afastar-se do movimento. Houve outros afastamentos nos anos clássicos da psicanálise, devido ao mesmo problema, como o de Rank e Ferenczi, este úlltimo o mais importante, cujas ricas contribuições só posteriormente viriam a ser corretamente avaliadas.

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