Diferenças Étnicas e as Barreiras entre os Povos
Walter Boechat
No momento atual de grandes mudanças planetárias, os referenciais políticos estão em grande mutação, nações alteram suas fronteiras e sua ideologia dominante; a psiqué coletiva procura novos valores para se reorganizar, tudo é novo e tudo é potencial para novas estruturas para o social e para o individual.
Entretanto, vivemos um cáos social do qual parece não haver uma solução a médio prazo. Lembramos, no entanto, a etimologia da palavra “cáos”, em grego. Dentro de um rigor etimológico que nos remete à cosmogonia de Hesíodo, Cáos significa o todo primeiro, anterior à formação de Úrano e Gaia, o ovo cósmico que se abre em duas metades, Úrano e Gaia. Na verdade, Cáos significa simplesmente, “aquilo que se abre”, segundo Kérenyi (1).
Para existir um “Cosmo” é necessário haver um Cáos. Cosmo é o todo ordenado do universo, significa também beleza (daí nossa palavra cosmético). Todas as dificuldades que o planeta como um todo atravessa leva-nos mesmo a ter fantasias de uma psicose social com uma esfacelamento da cultura e a impossibilidade da convivência criativa dos indivíduos dentro do todo social.
Entretanto, para repensarmos o momento atual faz-se necessário um retorno aos tempos da divisão bipolar do poder mundial, aos tempos da “guerra fria”. A bipolaridade, se ela leva ao impasse e ao temor constante da destruição nuclear do planeta, temor que chegou a extremos perigosos como no chamado caso dos mísseis em Cuba, ela também trás uma definição de poderes, que tem uma função estruturante a nível das nações, embora saibamos que muitas vezes esta “definição” adquiria algum contorno de artificialidade, pois a ex-União Soviética nunca atingiu um nível de poder semelhante ao dos Estados Unidos.
Historicamente, sabemos que as guerras exercem enorme influência na economia das nações. A guerra é fator significativo no desenvolvimento da tecnologia, para entendermos isto basta lembrarmos que o criador dos foguetes V-2, von Braun, que arrasaram Londres, a partir de local de lançamento na Alemanha, Peenemünde, acabou por desenvolver os foguetes de pesquisa espacial junto à NASA.
As nações vencedoras entraram em franco surto de progresso, ajudando mesmo as nações vencidas. Estas últimas, Japão e Alemanha, impedidas de participação na corrida armamentista dos dois grandes blocos, investiram em seu desenvolvimento para fins pacíficos e hoje ocupam lugar de destaque na economia mundial.
Mas estes surtos de progresso e bem-estar ocorrem sempre de forma localizada, para alguns grupos. E mesmo assim, o movimento de expansão pós-guerra chega agora ao fim, e problemas muito mais urgentes surgem, como a questão da identidade social e etnia, sem ao qual o indivíduo não encontra seu local na sociedade.
Este é um problema extremamente complexo, com vertentes sociológicas, antropológicas, econômicas, e, por último, mas não menos importante, componentes psicológicos. E, sobre este aspecto, a psicologia analítica de Jung tem muito a dizer.
Na década de ’50 Jung se preocupava com a divisão de poderes leste-oeste e a via como uma cisão psicótica da consciência coletiva. Em um de seus últimos trabalhos, “Um Mito Moderno”, escrito em 1958, faz uma abordagem interessantíssima sobre o fenômeno dos OVNIS. O livro tem o sub-título: “sobre coisas que se vêem nos céus”.
Jung faz então uma interpretação das visões de OVNIS do ponto de vista estritamente psicológico, sem entrar na questão da existência real do fenômeno. Dentro de sua posição empírica, na qual defende a Wirklichkeit der Seele o fenômeno psicológico é real na medida mesma em que existe. A crença coletiva nos OVNIS é uma realidade psicológica e como tal deve ser entendida. Estranhos objetos são vistos pelos céus por inúmeras pessoas, que associam a estas visões diversas interpretações; trata-se de um “mito moderno”. Os objetos têm forma arredondada, como um mandala, simbolicamente significando totalidade.
Os relatos de aparições tornaram-se mais freqüentes na década de ’50, no início da guerra fria. Instaurava-se então a grande polarização leste-oeste que duraria em torno de quarenta anos. Os discos voadores representariam, do ponto de vista simbólico, arquetípico, projeções coletivas em busca de uma totalidade desejada. O mandala, o rotundum (redondo) alquímico aparece nos céus, como projeções do inconsciente coletivo dos povos, em busca de uma superação de barreiras, de uma integração de opostos.
À enorme tensão do período da “guerra fria” seguiu-se, como todos sabemos, a queda do muro de Berlim e final- pelo menos neste momento no qual escrevemos- da União Soviética. Enfatizo o caráter tão pouco definido destas mudanças porque elas continuam ocorrendo a todo instante; basta uma vista d’olhos nos jornais a cada dia para constatarmos isto. Saravejo continua sitiada, o parlamento Russo é bombardeado em Moscou pelo seu presidente Yeltsin para manter o controle da situação política, um impensável acordo de paz aproxima o líder da O.L.P. Yasser Arafath com Y. Rabin de Israel, Mandela e Clerck recebem o prêmio Nobel da Paz pelo seu acordo político que preparou o fim do Apartheid na Africa do Sul. Muito provavelmente, Rabin e Arafath receberão o mesmo prêmio ano próximo se seu acordo der bons frutos…..
Estas flutuações de poder e fronteiras entre povos, a afirmação de antigas etnias abrigadas em fronteiras territoriais construidas ora por diplomacia ora por guerras, nos conduzem a um futuro totalmente incerto e indeterminado.
A identidade nacional é fundamental para a afirmação dos indivíduos e para o reconhecimento destes como tal. A nacionalidade age sobre o indivíduo e este age sobre aquela, ambos são interdependentes. Enquanto a nacionalidade tem suas fronteiras em mutação, os indivíduos também perdem o referencial pessoal, e caimos em graves problemas sociais, resultantes de psicose de massa e perda de identidade.
Quando comentamos sobre os problemas do nazismo e neonazismo, levantamos a problemática do arquétipo da sombra e sua tendência aos processos de contaminação psíquica em fenômenos de psicose de massa. Queremos novamente lembrar que a sombra é um arquétipo, portanto está sempre presente em todas as pessoas por mais analisadas e maduras que sejam; simboliza o arquétipo do opositor, ou do inimigo interior. Ao nascermos, os conteúdos agradáveis são introjetados e assimilados à consciência, os não aceitos são reprimidos a nível da sombra, que se estrutura par-e-passo com o ego. Na antigüidade, os gregos já denominavam este conteúdo de sinápodos, “aquele que segue atrás”. O processo de individuação é uma constante dialética com nosso opositor interior.
As religiões tratam desta dialética de construção da individualidade de forma metafórica. A Bíblia trata da “luta de Jacó com o anjo”, episódio importante na história do povo de Israel. Jacó, voltando da terra de Laban ao se aproximar de um curso d’água chamado Jabbok tem que lutar com uma figura de anjo. A batalha é árdua, termina sem vencedor, mas Jacó é ferido junto à coxa. Esta marca é o sinal deixado por Deus após o combate. Simboliza as transformações que a consciência sofre ao integrar conteúdos da sombra, sempre muito energéticos, pois foram antes fortemente reprimidos.
Somente após este enfrentamento com o inconsciente, Jacó estará em condições de ser um patriarca condutor do povo escolhido.
Jacó sofre mesmo uma mudança de nome, após esta estranha batalha às margens do rio Jabbok; o ser numinoso desconhecido diz-lhe ser seu nome agora Israel, o que quer dizer: “aquele que se confrontou com Deus”. É importante ressaltar que a batalha se dera à noite, Jacó não reconheceu seu oponente, pois se trata de uma figura do inconsciente.
A estória bíblica de Jacó ilustra a dificuldade de elaboração do arquétipo da sombra pelo ego; trata-se na verdade de uma batalha que perdura durante toda a vida, durante o processo de individuação. O caminho mais freqüente e mais simples é o da projeção da sombra; evitamos assim o árduo caminho de sua elaboração. No campo das relações sociais e políticas o mecanismo de projeção da sombra é muitíssimo freqüente.
Via de regra a sombra coletiva que é fortemente ativada em psicoses de massa, como no neonazismo e no conflitos inter-étnicos encontra sua expressão nos indivíduos pela contaminação com a sombra individual. Sombra coletiva e sombra individual se associam com facilidade. Assim, na época de Hitler indivíduos que sofriam com dificuldades financeiras, procuravam no partido nacional-socialista uma solução de seus problemas, por uma fraqueza moral, embora originalmente não abraçassem a causa.
Em nosso país, o debacle econômico também fragiliza as pessoas. É nossa opinião que a corrupção política é a forma mais assustadora assumida pela sombra coletiva deste país, e os indivíduos se contaminam com enorme facilidade, procurando a qualquer preço resolver seus problemas pessoais, que são, em grande parte, financeiros. Vivemos, portanto uma gravíssima crise ética, expressão da sombra coletiva brasileira.
Esta crise ética é muitíssimo mais grave nas classes dominantes que de alguma forma aferem algum proveito com a crise financeira.
A crise ética encontra abrigo no arquétipo da Grande Mãe que domina o inconsciente coletivo brasileiro. Mesmo concretamente a chamada “mãe preta” desempenhou até recentemente papel muito importante no apoio afetivo e emocional da criança brasileira. Não podemos nos esquecer também que a santa padroeira do Brasil é N. Senhora Aparecida, uma virgem negra.
Entretanto, a cor negra em sí própria está arquetipicamente associada à sombra, e isto tem um importante papel na interação interétnica no Brasil. Quando dizemos, “não aceitar bem a negritude é denegrir os preceitos morais”, estamos usando a palavra “denegrir” já de forma que arquetipicamente desvaloriza a raça negra.(2)
Nossa sociedade é naturalmente “erótica”, ao contrário da calvinista americana, que poderíamos considerar mais “lógica”. Os conflitos étnicos recentes em Los Angeles demonstram uma confrontação que até agora não ocorreu em nosso país, pelo menos de forma manifesta, enquanto nos Estados Unidos são conflitos seculares que a guerra de sesseção parece não ter ainda resolvido.
Entretanto, não nos enganemos: em nosso país o problema racial é muito mais um problema social, de classes sociais, mas permanece. Temos plena consciência que tão logo um negro obtenha status econômico razoável, será bem possível haver casamentos mistos. Ainda assim, é relativamente raro o casamento misto puro, o mais comum são relações de tipos mestiços que constroem pouco a pouco uma grande população de tez morena.
Mas o arquétipo que polariza com a sombra é o da persona, a máscara do ator teatral, a aparência que desejamos ter perante os outros. A persona é o arquétipo da adaptação social. Do ponto de vista étnico, a persona do brasileiro de classe média-alta é a de um homem branco, apesar de mais da metade da população apresentar vários graus de coloração de pele.
A persona aparece mesmo ao nível das cidades, como no Rio de Janeiro, onde os belos prédios claros da zona sul, perfazem o contorno das praias, demonstrando pujança e progresso, enquanto as favelas, (representando a sombra) com seu policromatismo anárquico, cobrem os morros atrás.(3)
O comentário que ouvimos freqüentemente, ou o temor “o morro vai descer”, ou os repetidos acontecimentos de violência nas praias freqüentadas por pessoas de maior poder aquisitivo, representam o fracasso das defesas que a consciência coletiva erigiu a nível da persona, contra a poderosa sombra da desigualdade social e falta de oportunidades para os menos favorecidos.
Podemos dizer, sem exagero, que apesar das diferenças regionais e nacionais, uma única persona civilizatória cobre o mundo ocidental desde os tempos da colonização francesa e inglesa. A monumental persona étnica brasileira começou a ser elaborada desde a época que D. João VI chegou ao Brasil fugindo de Napoleão. Nossas roupas são de estilo europeu, nossa arquitetura também raramente leva em conta o calor tropical e úmido.
Juntamente com este processo imitativo, a persona brasileira evoluiu no sentido de distender tensões raciais através de uma máscara de afetividade calorosa. A personalidade sentimento extrovertido é a que predomina no Brasil, por isto o brasileiro já foi chamado de “o homem cordial”. Mas nem tudo que vem do coração é necessariamente positivo; o tipo sentimento pode cordialmente odiar seu inimigo, e muito freqüentemente suas manifestações de afeto são artificiais.
Nietzsche argumentou que a palavra latina “malus”, mau, teria origem nos homens de pele escura, que ele presumiu terem sido os habitantes da península itálica anterior a invasores alourados vindos do norte. Nietzsche não era racista, mas faltava a ele conhecimentos da moderna antropologia. Hoje sabemos que os invasores italiotas aos quais ele se referia, teriam muito poucas possibilidades de terem cor clara.
Portanto, o argumento de que “malus” deriva do grego “melas”, escuro, é infundado, tendo em conta os dados modernos de antropologia e história. Mas o filósofo pode estar certo no fato de que a cor loura, clara, está arquetipicamente associada ao logos dominante na cultura, enquanto que a cor escura ou morena se associa ao arquétipo do eros inconsciente.
Vendo a problemática racial do ponto de vista arquetípico é a única forma de compreendermos as barreiras étnicas que ainda persistem no mundo moderno. Trata-se de um medo à dissociação, de um medo da perda de identidade, a repressão àqueles de outra raça ou a estrangeiros. Os fenômenos de xenofobia com toda sua variação social e antropológica, não excluem a dimensão arquetípica; devemos lembrar que a xenofobia ocorre normalmente nos países europeus, onde estão povos de raça branca; os franceses e alemães sendo os mais evidentes xenófobos. “Die Fremde ist Feinde” (“o estrangeiro é inimigo”), diz o antigo provérbio alemão. O estrangeiro, como desconhecido, é fácil receptáculo para projeções da sombra, diríamos nós.
No antigo testamento, vamos encontrar no Cântico dos Cânticos de Salomão, este misterioso poema erótico-iniciático, o dizer de Shulamita: “Eu sou negra, mas formosa”. (cap.1:5). A Shulamita se tornará modelo perfeito da princesa mourisca, para quem o culto de cavaleiros de Castela e de Portugal irá dedicar o amor mais puro da tradição cortês, criando assim, segundo Gilberto Freyre, a condição social para a falta de preconceito racial entre nossos ancestrais ibéricos.(4)
Notas Bibliográficas
1. Kerényi, C.- “The Gods of the Greeks”. Ed. Thames and Hudson.
2. Meira Penna, J.O. – “Racial Problems. Persona and Shadow”. Série de conferências no Instituto
C.G. Jung de Zurique, janeiro de 1975. Meira Penna é o primeiro a aplicar o referencial junguiano
aos problemas políticos e sociais de nosso país, nestas conferências e em vários de seus livros.
3. Meira Penna, J.O.- Confs. citadas e também: “O Brasil na Idade da Razão”, Ed. Itatiaia.
4. Meira Penna, J.O.- Confs. citadas.