Dostoiévski e Jung: um diálogo possível em Crime e Castigo

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Dostoiévski e Jung: um diálogo possível em Crime e Castigo
Ana Cristina Abo Curi

“Obra de arte não é um sintoma, mas uma criação genuína. Uma atividade criativa só pode ser entendida a partir de si mesma” (Jung 1991: 702).
“No mundo humano, qualquer manifestação coletiva é sempre ao mesmo tempo pessoal” (Pareyson, 2001: 102).

Olhar a obra de arte como uma criação genuína e não como um sintoma é o ponto de partida desse trabalho. A causalidade pessoal não a explica, mesmo sendo incontestável o entrelaçamento com a vida pessoal do autor. Em Jung, ela é algo suprapessoal, que se projeta para fora desse entrelaçamento, apontando para além da psicologia do artista, onde a voz do autor é e não é a sua. Quando nos detemos numa obra de arte, no caso literária, é preciso atenção para não cair nos extremos do reducionismo causal que a transformaria em fruto de uma neurose e nem amplificar tanto que a obra desenraize-se do autor. Em alguns momentos, algo da biografia de Dostoiévski será considerada, não para diagnosticá-lo em sua própria obra, mas sim num esforço de aproximação do solo fértil de tais imagens.
Joseph Frank, biógrafo de Dostoiévski, que buscou compreender a gênese do processo criativo do escritor russo, afirma em seu livro “Pelo Prisma Russo” que Crime e Castigo, além de ser o primeiro dos grandes romances de Dostoiévski, é aquele em que sua genialidade pode ser sentida na sua forma mais “pura e límpida”.
Publicado em 1866, Crime e Castigo foi escrito cinco anos após Dostoiévski ter voltado do exílio siberiano (1850-1860) e logo após o fracasso do segundo de dois periódicos literário-político que editava com Mikhail, seu irmão mais velho. Afogado em dívidas, num período de intenso sofrimento, sentindo o peso de perdas e humilhação pessoal, Dostoiévski tinha a sensação de que sua vida desmoronava. Sua primeira mulher, cujo alguns traços de caráter se assemelham aos da personagem “Ekatierina Ivánovna Marmieládova”, morre de tuberculose em abril de 1864, depois de uma longa agonia, e meses depois falece seu irmão Mikhail com quem tinha uma íntima e harmoniosa parceria. Com a morte do irmão, Dostoiévski se viu as voltas com as obrigações financeiras da revista Época, fundada em parceria com Mikhail e seu endividamento foi progressivo. Em 1865, Dostoiévski tenta levantar fundos para um novo romance, precisava no mínimo três mil rublos, imediatamente, pois intencionava viajar para Europa e encontrar sua ex-amante, Apollinária Súslova, uma jovem feminista russa, com quem ainda mantinha correspondência e expectativas românticas. Em sua busca pelo adiantamento do dinheiro, recorre a F.T. Stellóvski, um editor impiedoso que aceita sua proposta. Assume o compromisso de escrever “Os Bêbados”, uma novela sobre a questão da embriaguez e todas as ramificações na família. Segundo Frank, não se sabe se “Os Bêbados” avançou mais do que algumas anotações preliminares, mas não existe dúvida entre os estudiosos, de que suas anotações foram usadas em Crime e Castigo com núcleo da família Marmieládovi.
Com o adiantamento conseguido com Stellóvski, Dostoiévski viaja para Europa depois de ter distribuído a maior parte do dinheiro a credores, a seu cunhado e a família de seu falecido irmão. O pouco que tinha sobrado perde no jogo e não podendo pagar a conta do hotel é preso em Weisbaden, na estação de águas alemã, por dois meses. Numa carta a Apollinária ele descreve seu momento: “Meus negócios estão terríveis; é impossível prosseguir. Mais além, deve haver uma outra zona de infortúnio e sordidez da qual ainda não tenho conhecimento” (Frank, 1992:138).
Dostoiévski sai então novamente em busca de um editor, mas nenhum dos periódicos se mostra interessado e então recorre Mikhail Katkov que editava obras de Turguêniev e Tolstoi. Sendo aceita sua proposta, Dostoiévski lhe entrega “Relato psicológico de um crime”, que viria a ser sua primeira concepção de Crime e Castigo. Nesse rascunho Dostoiévski já indica como planeja resolver a ação da história e a confissão é imaginada como efeito da tortura psíquica de se sentir isolado e separado da humanidade após o assassinato. Nos rascunhos desta concepção inicial, encontramos no protagonista após seu crime, uma angústia desesperada, solidão intensa e um sentimento de total alienação da humanidade. Escrita na primeira pessoa, “Relato psicológico de um crime”, assume características de uma autoconfissão e como nos conta Joseph Frank, tem sua interrupção no instante em que a personagem começa a exprimir ressentimento, desconfiança e raiva, depressão e desespero, onde se tem a impressão de que “a própria personagem cresceu além dos limites da idéia inicial de Dostoiévski” (Frank, 1992:142).
O pensador italiano Luigi Pareyson (1918-1991), em seu livro “Os Problemas da Estética”, propõe que a obra só existe quando acabada, porque a arte não é somente um executar, produzir, exprimir. A arte é também invenção, revelando-se numa atividade na qual execução e invenção procedem “pari passu”, simultâneas e inseparáveis. “Nela concebe-se executando, projeta-se fazendo, encontra-se a regra operando, já que a obra existe só quando é acabada…” (Pareyson, 2001:26). Assim entendemos quando Frank comenta que Dostoiévski não teve consciência imediata da total dimensão do seu texto final. (Frank, 2003:123). Por isso, por mais que trate de uma produção intencional, como Jung coloca em 1930 em “Psicologia e Poesia”, a respeito do processo criativo psicológico, acompanhada e dirigida pelo consciente, construída com discernimento, com forma e efeito intencionados, haverá sempre algo na realização da obra que escapa ao controle deste. Por outro lado, um processo criativo com a consciência totalmente passiva seria considerar a “morte do autor”, a ausência da personalidade daquele que a escreveu. Toda obra de arte possui algo de pessoal e suprapessoal e o processo de criação acontece na oscilação entre os dois pólos descritos por Jung: psicológico e o visionário.
Na época de gestação e realização de Crime e Castigo, o período de tormenta e privação vivido por Dostoiévski fez vibrar um Raskólhnikov, que foi se revelando aos poucos para consciência de seu criador. Mesmo estando a consciência do autor, no caso, Dostoiévski, acompanhando todo o processo, algo fez surpresa a sua consciência, “dona” do processo de criação. Nesse sentido, uma estranheza marcou o processo criativo, quando a personagem em sua “autonomia” transforma o próprio curso da obra em construção, revelando uma nova direção para o autor. A personagem cresce além dos limites da idéia original, levando Dostoiévski a alargar, como dissemos acima, as “fronteiras do seu plano original”.
Dostoiévski é considerado por Bakhtin o criador do romance polifônico e “por isto sua obra não cabe em nenhum limite, não se subordina a nenhum dos esquemas histórico-literários que costumamos aplicar às manifestações do romance europeu” (Bakhtin, 1997: 5). No diálogo interior do protagonista há uma multiplicidade de vozes que participam do discurso em absoluta igualdade, não havendo uma voz dominante. O que existe é um multivocalismo onde o ser humano é absolutamente polifônico, contraditório e controverso. Luiz Felipe Pondé, em Crítica e Profecia, comenta que se um personagem de Dostoiévski se olhasse no espelho, ele não veria uma imagem refletida, mas sim uma polifonia despedaçada. Na polifonia, não há síntese nem critério de verdade. A sensação é que a unidade não existe. Curiosamente o próprio nome do personagem central de Crime e Castigo provém de raskol e raskólhnik que significa cisão e segundo Paulo Bezerra, significa ser evidente o propósito simbolista do autor. “Criando este nome, quer mostrar, através da significação do étimo, o homem cindido, atormentado pela contradição, entre as exigências que ele faz à vida, à humanidade e a si mesmo, e capacidade para realizá-las”. (Dostoiévski, 2004:7).
Em Crime e Castigo, a história acontece no tumultuado mundo interior de Raskólhnikov, cheio de conflitos, medos, contradições, paixões, onde, mundo interno e externo se encontram. Várias vozes manifestam-se na fala de Raskólhnikov e no desdobramento do romance, todas as pessoas, idéias e coisas, entram dialogando com a sua consciência. Um diálogo onde tudo está em oposição a essa consciência e nela refletido. Entretanto o que é refletido não nos diz da subjetividade. Bakhtin não inclui a subjetividade em sua análise sobre a poética em Dostoiévski. Refere-se à multiplicidade de vozes de uma época, que foram auscultadas e reveladas por ele em seus romances. A diversidade da “consciência coletiva” que traduz o “Zeigeist” da época de Dostoiévski nos permite, segundo Bakhtin, a possibilidade de encontrar e indicar certos protótipos para as idéias ali contidas. Como autor da cultura realista soviética, a preocupação de Bakhtin é dessubjetivar a compreensão da linguagem e do indivíduo.
“Cada personagem entra em seu discurso interior, mas não entra como um caráter ou um tipo, como uma personagem de fábula ou enredo da sua vida (a irmã, o noivo, etc.) e sim como o símbolo de alguma diretriz de vida ou posição ideológica, como símbolo de uma determinada solução vital daqueles mesmos problemas ideológicos que o martirizam” (Bakhtin, 1997:242).
Em Jung entendemos que o coletivo não se caracteriza pelo interior ou exterior porque ele é ambos. O coletivo está tanto no papel que desempenhamos na sociedade, vemos isso no conceito de Persona, quanto nas vivências arquetípicas “interiores”. A “interioridade” e “exterioridade” são ambas coletivas para Jung e essas duas dimensões refletem-se uma na outra. A individuação é um conceito central na obra do mestre suíço, por ser nela, nesse processo que nunca termina, que o homem se singulariza e revela sua especificidade dentro da coletividade. A consciência tem papel importantíssimo nessa discriminação, não há individuação sem consciência, pois sem ela permaneceríamos inconscientes de nós mesmos enquanto ser singular. A individuação se revela no encontro com o mundo, é nele que vivemos nossas diferenças. “Individuação significa tornar-se um ser único, na medida em que por individualidade entendermos nossa singularidade mais íntima, última e incomparável” (Jung, 1981:266). O “Zeitgeist” (espírito do tempo) nos afeta em sua multiplicidade e se mostra por imagens. O conceito que formamos a respeito do mundo é a imagem daquilo que chamamos mundo e por essa imagem orientamos a nossa adaptação à realidade, para depois, em processo de Individuação, sabermos o que é o mundo e quem somos nós. É na experiência do coletivo, em contato com o mundo de relações, que a nossa singularidade se constela. Os tempos mudam e nós com eles, “tempora mutantur et nos in illis”.
“[…] só podemos aprender o mundo em uma imagem psíquica, e nem sempre é fácil decidir quando a imagem muda: se foi o mundo que mudou ou se fomos nós, ou uma coisa ou outra. A imagem do mundo pode mudar a qualquer tempo, da mesma forma como o conceito que temos de nós próprios também pode mudar. Cada nova descoberta, cada novo pensamento pode imprimir uma nova fisionomia ao mundo” (Jung, 1991:700).

Em Crime e Castigo, o momento em que o “mundo modifica sua face” é a descoberta do amor constelado na relação Raskólhnikov e Sônia. Ele, um jovem universitário, extremamente racional, orgulhoso e nada comunicativo. Seu orgulho talvez compensando a miséria em que se achava, o fazia encarar seus conhecidos com soberba, como se estivesse muito acima deles tanto em inteligência quanto pelo saber e idéias. Não tinha nenhum amigo na universidade, não participava de nada, nem das reuniões gerais, nem das discussões. Afastava-se de todos. Muito pobre, vivia em extrema miséria, com um espírito mortificado por dúvidas, num minúsculo quarto alugado, que “mais parecia um armário”, que considerava extremamente sufocante e que contribuia para o desprezo que se avolumava em seu espírito. Em sua mente planejava sofregamente, num diálogo interior atormentado, regado pela miséria de sua vida, o assassinato da velha usurária Alíona Ivânovna, tentando racionalmente se render a justificativa de que ele era extraordinário e faria com tal ato um benefício para humanidade. Por uma vida, mil vidas seriam salvas da miséria e da ruína.
Para Raskólhnikov as pessoas estavam divididas entre “ordinárias” e “extraordinárias”: As primeiras deveriam viver na obediência e não tinham o direito de transgredir as leis, ao passo que as extraordinárias tinham o direito não declarado de cometer crimes e de violar leis, desde que suas intenções fossem úteis à humanidade. Uma teoria que nos lembra Maquiavel quando acredita que o príncipe deve ser extremamente competente no uso da violência, isto é, pode matar milhares de pessoas num determinado momento, pois o que vai determinar a avaliação de seu ato é o resultado do mesmo em termos de manutenção do Estado e não um código moral. Em Crime e Castigo, Napoleão é o príncipe de Maquiavel aos olhos de Raskólhnikov. Ele (Napoleão) é o homem extraordinário, aquele que possui virtù. O protagonista de Dostoiévski julga ser uma dessas pessoas extraordinárias e comete o um duplo assassinato: a velha usurária e sua irmã Lisavieta, uma alma boa que soube mais tarde ter costurado sua roupa pregando os botões de uma camisa sua. Assim seu plano “falha” e vive atormentado pela angústia do duplo homicídio.
Segundo Joseph Frank, Napoleão era um símbolo muito forte no imaginário russo, que o tinha como a encarnação do poder absoluto, implacável e despótico. Uma encarnação da vontade de poder não controlada por considerações morais de qualquer tipo. Associado a isso, não é difícil constatar em Crime e Castigo a preocupação de Dostoiévski em dramatizar os perigos morais do niilismo russo, que ameaçavam os jovens de sua época. A grande questão da história é que Raskólhnikov não consegue se convencer de que é um homem extraordinário e acaba rendendo-se ao fato de que não tem virtù, de que não é um “Napoleão” e que está irremediavelmente imerso na condição humana de homem ordinário.
Sônia, uma jovem amorosa, honesta, inicia uma vida de prostituição pressionada pela madrasta Ekatierina Ivânovna . Explorada por todos, com esse dinheiro ajuda a sustentar a madrasta, os meio-irmãos e seu pai Marmieládov, cuja situação financeira e existencial é a pior possível. Sônia é uma personagem com grande valor na trama. É a ela que Raskólhnikov recorre e confessa seu crime. Frank nos diz em “Os anos milagrosos 1865-1871”, que o protagonista de Dostoiévski recorre a Sônia porque até onde lhe era dado perceber, ela aceitaria a verdade sem choque e horror por ela ser uma flagrante pecadora, um pária da sociedade. Ele, que ainda não tinha conseguido ultrapassar a consciência moral, mesmo com suas teorias e depois de seu ato criminoso, não entendia como aquela jovem pária, apesar de toda degradação não estava dilacerada internamente. Sônia era uma jovem sofrida, mas permanecia sensível, delicada, generosa, íntegra, apesar de viver em “pecado”. Como nos diz Joseph Frank em relação ao par Sônia e Raskólhnikov:
“Temos de um lado, a ética do ágape cristão, o sacrifício total, imediato e incondicional do eu que é a lei da existência de Sônia (e o valor mais alto do próprio Dostoiévski); e de outro, a ética utilitarista racional de Raskólhnikov, que justifica o sacrifício dos outros em nome do bem social comum” (Frank, 2003:186).

Caminhando pela filosofia da religião na obra de Dostoiévski vemos que o escritor russo está longe de ser um ateu. Como nos conta Pondé em seu livro sobre Dostoiévski, sabe-se por carta que ele era freqüentador do mosteiro de Optimo, nos arredores de Moscou, que foi o centro espiritual da Rússia no século XIX e onde nasceu a primeira teologia propriamente russa. Até então, até o sec. XIX, a Igreja russa vivia com as traduções do grego e do latim. Além de rezar diante de ícones, Dostoiévski dialogava com monges, os startsi (plural de starets), em especial com Ambrósio que se tornou referência para o personagem Zózima de “Os irmãos Karamazov”. A religiosidade de Dostoiévski aparece em Crime e Castigo através de Sônia, que como nos disse Frank é a personagem que possui o valor mais alto pra o romancista, a ética do ágape cristão. Um termo que em teologia cristã designa o amor ilimitado, espontâneo, incondicional e abnegado.
Na mística ortodoxa russa o que faz um místico ser místico é a experiência de Deus, da energia divina na qual o ser humano pode estabelecer a relação com Ele, não diretamente, mas naquilo que Ele manifesta. Essa energia incriada (Espírito Santo) permanece o tempo todo em atuação no mundo e os místicos são aqueles que experimentam isso com certa constância. Assim o tão esperado “Reino de Deus” não acontecerá em algum momento futuro, no final dos tempos, mas o seu advento ocorre no aqui e agora. O que faz um místico ser místico é a experiência de Deus. Na mística ortodoxa haverá sempre o combate ao racionalismo, porque o contato com Deus está na experiência. O que se denomina metanóia é uma dinâmica disparada no indivíduo pela presença continuada de Deus e para a ortodoxia russa é fundamental a imagem de um Cristo extenuado pelo sofrimento. Raskólhnikov inicia seu processo de redenção no exato instante que se reconhece pecador confessando seu crime. Sobre o processo de transformação de seu protagonista Dostoiévski diz no fim de seu romance: “Mas aqui começa já uma nova história, a história da gradual renovação de um homem, a história do seu trânsito progressivo dum mundo para outro, do seu contato com outra realidade nova, completamente ignorada até ali” (Dostoiévski, 2004:589).
Sônia é uma personagem divinizada por Dostoiévski. É com ela que Raskólhnikov retorna a “Deus”. Ela é a guia que o acompanha em seu processo de transformação. Dentro do monarquismo cristão temos a imagem do “pai espiritual” que é uma pessoa que passa por experiências místicas constantes e por ter mais experiência orienta a construção do processo de metanóia de seu “filho espiritual”. Sônia é a pessoa que desempenha essa função junto a Raskólhnikov. Não é a lógica de Porfiri que converte Raskólhnikov, mas o amor de Sônia. Um amor ágape, como ressaltou Frank. O momento da confissão é o momento onde se abre uma nova etapa para o protagonista. Raskólhnikov “abandona” a mãe e a irmã e vai para casa de Sônia com a intenção de que ela fuja com ele, mas ela o convence a não fugir. Chegando lá, perto do canal, encontra um velho prédio pintado de verde, de três andares e sobe para o segundo andar. A três passos de distância abre-se uma porta da casa de Sônia.
O número três é recorrente marcação de tempo e distância em Crime e Castigo. O prazo do empréstimo que Raskólhnikov fez com a velha já tinha acabado há três dias, os “irmãozinhos” de Sônia não comiam há três dias, depois de quase três anos a mãe e a irmã reencontram Raskólhnikov; Razumíkhin o espera por três horas e em muitos outros momentos o número três aparece. Em “A interpretação dos contos de fada”, Von Franz comenta a recorrência do número três em diversos contos, o que se explica num consenso universal (arquetípico) que relaciona o elemento três com tempo e movimento e por essa razão os contos de fada se dividem geralmente em três etapas, sendo a quarta etapa o desfecho da história. “O um, o dois e o três levam ao verdadeiro desfecho que é representado pelo quatro” (Von Franz, 2008:104). Para Jung, trindade e quaternidade são projeções de processos psíquicos. A imagem arquetípica da trindade cristã expressa o desenvolvimento da consciência em três fases: o estágio do pai, do filho e do Espírito Santo. O primeiro estágio é no mundo do Pai, onde não há diferenciação entre Pai e filho, Self e Ego, caracterizado por uma unidade original, uma inconsciência que caracterizaria um estado infantil em que não há julgamento crítico e qualquer conflito moral. O sacrifício da dependência infantil seria exigido para se atingir o segundo estágio, que é o mundo Filho, da dualidade, de conflito. Esse estágio pode trazer a exacerbação das polaridades, particularmente o contraste moral. O estágio do Espírito Santo é o momento do reconexão com o Self, uma articulação do Ego com a totalidade superior, que se atinge pela renuncia do Ego a autonomia exclusiva. É preciso que o Ego admita um poder superior a ele, o reconhecimento das forças do Inconsciente, uma instância transcendente. “O ritmo é um andamento ternário, mas o símbolo resultante é uma quaternidade”, disse Jung em Interpretação Psicológica do Dogma da Trindade. Então esse processo de desenvolvimento se desenrola no tempo trinitário, mas o alvo é quaternário, a totalidade. Para Jung, quaternidade exprime a totalidade psíquica em seu sentido eterno e a trindade é a experiência psicológica em seu aspecto de desenvolvimento temporal, uma representação incompleta da divindade. Consiste numa da forma de configurar Deus, mas a configuração da totalidade não é pelo símbolo trinitário. O mal está excluído do conceito cristão de Deus e junto com o ele excluiu-se também o princípio feminino, pois a trindade é masculina.
“O quarto de Sônia parecia, de certa maneira, um alpendre; tinha a forma dum triângulo irregular, o que o tornava muito feio. A parede, com três janelas que davam para o canal, cortava o quarto a viés, e por isso um dos ângulos, terrivelmente agudo, sumia-se lá no fundo, de tal maneira que, quando havia pouca luz, não se lhe via bem o fim…” (Dostoiévski, 2004:342).

Esse quarto triangular era o de Sônia, que estava lá dentro. Temos então a imagem de um elemento feminino num triângulo e isso remete a quaternidade tão presente na obra de Jung. O elemento feminino, o quarto elemento que falta no símbolo cristão da trindade, na trajetória de Raskólhnikov, é personificado por Sônia. Ela é o quarto elemento que faltava na trindade de Raskólhnikov. Ocupa, simbolicamente na história, o feminino pária, maltratado de nosso protagonista, mas também divino. Sônia como anima possui o conhecimento secreto do inconsciente e serve de ponte entre o Ego e o inconsciente de Raskólhnikov. Arquetipicamente a anima representa o eterno feminino que não é representação da mãe pessoal é bem maior que isso. Como feminilidade arquetípica, ela é o elemento Yin, a “mulher eterna”. No cristianismo a confissão é um ato de religação, de retorno a Deus. Raskólhnikov confessa a Sônia e com ela sua religação se inicia. Comumente a anima é conhecida como o feminino da psique masculina, mas ela é o “arquétipo da vida”, e sua desconexão com o Ego reflete numa vida sem sentido. Sônia como personificação da anima é agente da ressurreição de Raskólhnikov na medida em que, na função de anima, restabelece o diálogo entre o Ego e o Self, entre Raskólhnikov e “Deus”. Um momento de religação com o divino interior é representado na leitura da ressurreição de Lázaro. Curiosamente o prédio em que mora Sônia é verde, o que reforça a personificação de um conteúdo divino. Como nos conta Edinger citando Jung, a cor verde para a psicologia cristã, é a cor do Espírito Santo, da vida, da procriação e da ressurreição. Na alquimia, o verde é a personificação feminina da prima matéria negra e rejeitada que diz: “Eu estou sozinha entre os ocultos; não obstante, tenho o júbilo no meu coração, pois posso viver secretamente, e refrescar-me em mim mesma… sob minha escuridão, tenho escondido o fantástico verde” (Edinger, 1996:283).
Caminhando pela mitologia grega em busca de paralelos mitológicos, fui percebendo Crime e Castigo como um “universo” de Deuses. Semelhante a um sonho, em que todos os personagens personificam aspectos da psique do protagonista. Como os temas são muitos, selecionei os mais relevantes.
Pouco se sabe sobre a Titanomaquia, o poema épico sobre a guerra entre Zeus e os Titãs, que se perdeu ao longo da história junto com dois terços da trilogia de Ésquilo sobre Prometeu. Entretanto sabe-se por estudiosos da mitologia como Kerényi e Nilsson, citados constantemente por Pedraza em seu artigo, “A loucura lunar – Amor Titânico” (1997: 11-33), que os titãs desde os tempos mais remotos eram deuses muito violentos, selvagens e não sujeitos a lei alguma. Não tinham ritos nem cultos, ficando a margem da vida cultural grega. Na Teogonia, Zeus lança os Titãs para o Tártaro, que é na morada de Hades o mais profundo dos planos, o que não tem chão, para onde os piores criminosos são enviados. É a permanência no caos, caracterizando psicologicamente o sofrimento psíquico caótico e sombrio de Raskólhnikov após o assassinato.
A civilização ocidental, segundo Pedraza, está se tornando cada vez mais titânica e se fosse possível atribuir ao titanismo uma configuração arquetípica essa seria o arquétipo do excesso. Mas Pedraza considera isso delicado, visto que ao lado do excesso titânico está sua vacuidade, o vazio sem formas, a ausência de significado, a carência de imagens da retórica titânica. “Eu matei, simplesmente; matei só para mim…” diz Raskólhnikov a Sônia. O titanismo que inundava a psique de Raskólhnikov é apresentado por Dostoiévski logo no início da trama, no primeiro sonho de Raskólhnikov, momentos antes de o protagonista decidir levar adiante seu plano criminoso. O sonho aponta uma invasão do ego por conteúdos titânicos, pela violência e selvageria do cocheiro com sua frágil égua, violência desmedida e excesso, que marcou toda cena e que se configura no momento do assassinato da velha por Raskólhnikov. O cocheiro do sonho após matar de forma bárbara a égua, justifica-se com os olhos injetados de sangue e apenas diz: “Era minha!”.
O puer é o arquétipo da juventude eterna que aparece em vários mitos gregos. Lembro agora do mito de Adônis, nascido da relação entre Mirra e seu pai, o rei Téias. Afrodite se apaixona pela criança e pede a Perséfone que cuide do menino em segredo. Assim o faz, mas se recusa a devolvê-lo. Com a ajuda de Zeus fica resolvido que ele passaria 1/3 com Perséfone, 1/3 com Afrodite e apenas 1/3 livre para si mesmo.
Raskólhnikov é um jovem de feições delicadas “um bonito rapaz, com uns magníficos olhos escuros, o cabelo castanho, de estatura acima da mediana, magro, de muito boa figura”. Sua mãe, Pulkhiéria Raskólhnikova o idolatrava, sendo ele a razão de sua vida. Uma ligação tão forte entre os dois que a simples menção a ela lhe causava forte impacto. Em determinado momento, Raskólhnikov recebe uma carta de sua mãe pelas mãos de Anastácia, imediatamente quer ficar sozinho e pede que a moça o deixe só. Não se sentia bem, estava trêmulo e levando a carta aos lábios, beija-a. Fica um tempo contemplando o endereço numa espécie de adoração e receio. São as palavras de sua mãe: “Tu bem sabes como eu te quero; tu és o nosso filho único, para mim, e para Dúnia (irmã); tu és tudo para nós, toda a nossa ilusão, toda a nossa esperança… Adeus, ou melhor… Até a vista! Um abraço apertado, muito apertado, e muitos beijos; a tua até a morte, Pulkhiéria Raskólhnikova” (Dostoiévski, 2004:41). Na dinâmica psíquica mãe-filho, Rodka (como sua mãe o chama) personifica uma imagem arquetípica do puer como o “eterno jovem” preso ao mundo materno.
Demeter é uma das representações da Grande Mãe na mitologia grega. Filha de Cronos e Réia é a deusa da agricultura, da terra cultivada, das colheitas e das estações do ano. Tem sua filha Core raptada por Hades. Desesperada sai do Olimpo e começa a vagar por nove dias e nove noites sem comer, beber ou se banhar, tamanho o seu sofrimento. No décimo dia encontra Hécate que personifica o lado sombrio de Deméter. O mito continua, mas o que importa nesse momento é perceber a bipolaridade do arquétipo materno. Hécate é uma deusa ctônica, está vinculada às trevas, ao lado escuro, as qualidades maternas inconscientes, ao feminino que habita nas profundezas. Quando Demeter se associa a Hécate encontra sua face subterrânea, seu outro lado, onde a mãe amorosa, zelosa, nutridora, se torna mãe enraivecida e destrutiva, uma deusa da morte, uma bruxa. Como a mãe devoradora que impede o filho (semente) de crescer, Alíona Ivânovna, velha agiota, personifica esse lado terrível da grande mãe na polarização psíquica de Raskólhnikov e ele acaba atuando projetivamente matando-a, numa tentativa inconsciente de separação do mundo materno. Ela tinha a posse do relógio do pai de Raskólhnikov, o que aponta um masculino aprisionado no reino das mães.
Percebo em Crime e Castigo uma luta pelo direito de existir e seu sentido. Desde que sua noiva faleceu, falecimento comemorado por sua mãe (Demeter não quer o casamento), Raskólhnikov entra em um estado caótico. Sua tentativa de emancipação fracassou e ele tenta se libertar da mãe, projetivamente, numa atuação criminosa. Quanto mais afastado da consciência mais a imagem assume uma forma mitológica. Alíona torna-se uma “bruxa” aos olhos do protagonista. Assim os conteúdos negativos foram depositados na velha que assumiu aos olhos do rapaz ares demoníacos e sombrios. Exterminando a velha ele estaria liberto. Entretanto não foi assim que aconteceu. O matricídio conclama a presença das Eríneas ou Fúrias como nos diz a mitologia grega. Em Ésquilo são em número três: Alecto, eternamente encolerizada, persegue os criminosos com tochas acesas, Megera, que não deixa o criminoso esquecer os seus crimes cometidos gritando-os em seus ouvidos e Tisífone, que açoita os culpados e enlouquece-os. O ataque das Eríneas representa uma alteração psicológica ligada ao horror do crime. “Há muito sangue ainda fresco em sua tuas mãos; vem dele as alucinações de tua mente”, disse o Coro para Orestes, o que poderia ser dito a Raskólhnikov.

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