Futuros Para a Psicologia Analítica

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Futuros Para a Psicologia Analítica
Trabalho para o VII Simpósio da Associação Junguiana do Brasil, Nova Friburgo, outubro de 1999.
por Walter Boechat,
Médico, Diplomado pelo Instituto C.G. Jung, Zürich, Suíça, Doutor, Instituto de Medicina Social,/UERJ, Membro Fundador Associação Junguiana do Brasil- AJB, Especialista em Medicina Psicossomática (IMPSIS/RJ) Escritor, organizador de Mitos e Arquétipos do Homem Contemporâneo, Vozes, 2ª ed. Coordenador do Curso de Pós-Graduação em Psicologia Junguiana do IBMR/RJ.

Resumo
O artigo trata da inserção pioneira da psicologia analítica no paradigma emergente da pós- modernidade a partir da obra “Símbolos de Transformação” (1912), e principalmente a partir de 1920, com a formulação por Jung do conceito de sincronicidade e seus trabalhos sobre alquimia. Também são avaliados quatro caminhos férteis para o desenvolvimento do pensamento de Jung no próximo século: o conceito de sincronicidade aplicado aos estudos da vasta área da psicossomática, a surpreendente penetração da psicologia analítica no leste europeu e Rússia, a importância do engajamento social do terapeuta junguiano e a gradual aceitação do pensamento junguiano na universidade e suas conseqüências.
Unitermos
Psicologia Analítica. Paradigma Emergente. Ensino. Transdisciplinaridade. Política.
Abstract
This article deals with the pioneering insertion of analytical psychology in the new paradigm of post-modernity since the publication of the work Symbols of Transformation (1912), and mainly after 1920, with the formulation by Jung of the concept of the synchronicity, and his work on alchemy. Also are conveyed four fertile ways for the development of Jung’s thought in the next century: the concept of synchronicity applied to the studies of psychosomatics, the development of analytical psychology in Eastern Europe and Russia, the importance of the social application of analytical psychology and the acceptance of it at the university and its consequences.
Keywords
Analytical psychology. New Paradigm. Teaching. Transdisciplinarity. Politics.
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No final do milênio é importante refletirmos sobre os futuros possíveis para a psicologia analítica dentro da sociedade atual, que como está sendo debatido neste nosso evento, está em intensíssima mudança.
O futuro da psicologia analítica deve ser pensado levando – se em conta a mudança de paradigma que tem se operado na cultura ocidental nas ciências e nas artes.
A palavra paradigma, que vem se tornando uma espécie de lugar comum no pensamento contemporâneo, precisa ser bem compreendida. Vem do grego para = além de, deigma = manifestação. Esta tradução da palavra paradigma nos parece bem mais acurada que as traduções normalmente dadas de modelo ou protótipo, no sentido platônico, pois visto assim, o paradigma é algo estático, preso ao passado, enquanto que como manifestação de um valor novo, aponta dinamicamente para o futuro, e é neste sentido que os paradigmas funcionam como orientadores do corpo do pensar científico.
A mudança de paradigma é bastante mais evidente em épocas de crise, embora não sejam claras as direções para onde aponta, tal como a chamada pós – modernidade, que sucederia à modernidade. Há uma certa dificuldade em atrelar as mudanças paradigmáticas a um estatuto específico dozeitgeist contemporâneo, a uma era pós- moderna que se seguiria a uma era moderna. Se é sabido que a idade moderna teve início com a tomada de Constantinopla pelo turcos no século XIV, não devemos esquecer que este início não ocorreu nesta data precisa, mas lentamente, através de graduais câmbios históricos.
Da mesma forma, discute-se também se a idade moderna terá realmente terminado. É fato que vivemos uma grave crise dos ideais da modernidade. Em lugar dos valores da revolução francesa de liberdade, igualdade e fraternidade, temos um século de duas grandes guerras, com milhões de mortos.
A globalização, em vez de promover a fantasia arquetípica da inclusão, tem promovido, ao contrário, o benefício de uma escassa minoria e a exclusãode grandes massas. A recente guerra na Iugoslávia reafirma o direito dos mais fortes sobre os mais fracos, e antiga máxima do tribunal do vencedor: “só há um verdadeiro crime de guerra: não vencer o inimigo”.
Toda esta falência evidente dos ideais da modernidade não evidenciam de forma clara uma pós- modernidade com seus contornos nítidos. O que temos, sem dúvida, são evidentes mudanças globais em nível sociológico, antropológico e psicológico, mudanças paradigmáticas.
Quando teria a idade moderna de fato terminado? O que temos certeza é que está havendo um gradual mudança de paradigma, nas ciências, a começar pela física e nas demais. A mudança de paradigma é acompanhada por uma crise evidente e bem marcada dos valores da modernidade, alguns dos quais mencionei antes. A fantasia de bem estar social do positivismo e do marxismo caíram por terra. A indústria da guerra neste século e seu incrível número de mortos (mais de 20 milhões de pessoas, muito superior ao da peste negra na idade média) colocam e xeque os valores da modernidade.
Jung critica fortemente alguns valores da modernidade, por exemplo, seu racionalismo exacerbado, la déese raison, que deixa de lado os valores irracionais da experiência imediata, que nem sempre podem ser explicados racionalmente, mas que são dados da experiência.
A obra de Jung inicia-se sob a égide do antigo paradigma hegemônico do século passado, o dualismo cartesiano extrovertido, o positivismo de Comte com sua Lei dos três estados, segundo a qual a teologia evolui para a metafísica e esta para a ciência, que se torna assim, a rainha do conhecimento.
Os trabalhos de associação de palavras com os quais Jung definiu os complexos e sua importância para a psicopatologia, obedecem a esse paradigma. É sabido que Jung iniciou seus trabalhos com os testes de associação de palavras, podendo por eles, detectar e circunscrever experimentalmente os complexos inconscientes. Nestes trabalhos iniciais, Jung trabalhou dentro do paradigma mecanicista causal, positivista. A detecção dos complexos se dá de forma eminente experimental, com o de palavras- estímulo, medidas de tempo de reação entre palavras- estímulo e palavras- resposta, com o uso de um cronômetro regulado em quintos de segundo. O tempo de reação prolongado se torna o principal indicador de complexo.
Jung lançou mão ainda de um sofisticado (para a época) instrumental de detecção de constelações de complexos a nível fisiológico. O pneumógrafo, um medidor do fluxo de gás carbônico respirado, e o galvanômetro, um medidor de variação de potencial de corrente elétrica.
Tudo isso porque, estando o complexo ativado, reações fisiológicas ocorreriam, a sudorese nas mãos do sujeito favoreceria uma maior passagem da corrente elétrica, já que suas mãos estariam tocando os pólos elétricos. O voltímetro acusaria a maior diferença de potencial.
Quando Jung detecta os complexos através deste trabalho configurado dentro de uma psicologia estritamente experimental, atuou dentro do paradigma tradicional.
Nesta época Freud iniciava suas explorações do inconsciente, e a própria noção de inconsciente já desafiava o academicismo de então, despertando forte resistência. Suas comprovações acerca do inconsciente se baseavam em descobertas clínicas, inferindo suas teorias através de observação de pacientes histéricas.
O método experimental de Jung comprovando a existência de complexos inconscientes, era uma confirmação experimental da existência de conteúdos incompatíveis no inconsciente, o que reforçava as idéias de Freud. Esta foi uma das razões de Freud ter nomeado Jung seu “príncipe herdeiro”, e da estreita colaboração entre os dois pensadores durante vários anos.
O referencial de inconsciente, até então mencionado apenas no domínio da filosofia, com C.G. Carus e Von Hartmann, foi trazido para a psicologia pelo trabalho pioneiro de Freud. É verdade que Pierre Janet procurou fazer uso deste referencial, mas o inconsciente para Janet nunca passou de umafaçon de parler, “uma maneira de falar”, como ele próprio considerava.
Jung explorou mapeou o inconsciente a partir de seu teste de associação de palavras. Desde o princípio desenvolveu um trabalho independente do de Freud, por isso considero inexato considerar Jung um discípulo de Freud que depois discordou de vários pontos da teoria freudiana e se afastou do movimento. Jung, desde o início, trilhou um caminho próprio, embora nutrisse grande admiração por Freud e desfrutou com ele de vários anos de profícua colaboração.
Mesmo se considerarmos o período Zofíngia, o clube estudantil ao qual Jung pertenceu quando estudante universitário, ainda jovem, em 1896, e ‘97, vemos nele, em suas palestras, uma discordância do materialismo científico do século XIX, com sua ênfase econômica e comercial. Por então, em sua sensibilidade e intuição, Jung discordava não só do materialismo científico mas da modernidade como tal.
Os encontros com Einstein, quando Jung foi contemporâneo do cientista e ambos ensinaram na E.T.H., Escola Politécnica de Zurique, em 1905, e o encontro posterior com Wolfgang Pauli, prêmio Nobel de física e seu paciente, influenciaram enormemente Jung em sua abertura para o novo paradigma emergente, o paradigma holístico e não causal, ao qual também pertence a mecânica quântica.
A ruptura com o paradigma antigo se dá em 1912, com o livro Símbolos de Transformação, e cristaliza-se, após sua correspondência com Wilhelm em 1928, pela qual seu interesse pela alquimia chinesa foi ativado, e o início de seus trabalhos sobre alquimia e sincronicidade. As contribuições centrais de Jung na cultura atual se dão em todos os campos envolvidos pelo novo paradigma emergente: religiões, psicopatologia, ecologia, artes e humanismo.
Em Símbolos de Transformação, Jung inicia a ruptura com o paradigma tradicional com a aplicação da noção de amplificação. Estudando o material escrito de Mrs. Miller, uma paciente de Théodor Flounoy, paciente que Jung nunca encontrou pessoalmente. A partir de suas poesias e escritos, Jung elabora a questão da existência de imagens mitológicas universais, imagens primordiais, que mais tarde, em 1919, Jung chamaria de imagens arquetípicas.
Neste trabalho, feito apenas levando em conta as imagens coletivas, Jung procura chamar a atenção para uma camada impessoal, comum a toda humanidade, o inconsciente coletivo. Um corte epistemológico importante estava sendo dado: a memória individual não poderia ser negada, deveria ser tratada pelas associações pessoais como quer Freud, entretanto, um outro nível de elaboração pode ser trabalhado, o nível do inconsciente coletivo, através das amplificações.
Neste importante trabalho, Jung escreve, por exemplo, sobre a mãe dual, aquela que contém tanto os aspectos positivos quanto os destrutivos, é tanto a Grande Mãe acolhedora, quanto o dragão ameaçador. No processo de individuação, o herói deverá matar o dragão, para a construção de consciência. Nesta formulação em nível arquetípico, encontramos um paralelo ao que Melaine Klein iria desenvolver tempos depois, com relação ao seio bom e ao seio mal (Samuels, 1985). Enquanto Klein se move em nível do desenvolvimento individual, Jung elabora um referencial mitológico arquetípico.
A mitologia serviu de base para a elaboração teórica da amplificação, que tem tanto um valor heurístico para a comprovação da existência do inconsciente coletivo, quanto um aspecto clínico. Na clínica, a amplificação serve para retirar o paciente do isolamento que sua neurose o mantêm, na medida em pode perceber que sofrimento não é só dele, mas uma situação universal. Para o terapeuta, a amplificação trás a percepção mesmo de um prognóstico.
A mitologia foi descoberta por Jung como um conteúdo típico do inconsciente a partir de seus trabalhos com pacientes psicóticos, no início do século, mas o uso das imagens como conteúdos coletivos foi estendido, de forma sistemática, após seu trabalho de 1912.
O estudo de alquimia a partir de 1928 marca a entrada definitiva de Jung no terreno do novo paradigma. Como reporta Jaffé, a alquimia se tornou o pano de fundo de toda a obra de Jung, e a ela ele dedicou os últimos trinta anos de seu processo criativo. (Jaffé, 1972).
Segundo Jung, o inconsciente teria também um aspecto histórico. O material arcaico gnóstico encontrado em sonhos e fantasias de pacientes europeus modernos, deveria ter uma ponte para o presente, sem solução de continuidade. Este elo perdido, esta transição, Jung encontrou – os na alquimia.
Quanto aos aspectos simbólicos da alquimia e sua relação com o processo de individuação, ao que tudo indica pelos escritos posteriores de Jung, a explicação de que os processos do trabalho alquímico seriam “projeções” do inconsciente do alquimista, portanto encerrariam todo o simbolismo do processo de individuação parecem ser insuficientes para o entendimento de conceitos posteriores que Jung formulou a partir de seus estudos alquímicos.
Refiro- me aos conceitos de arquétipo psicóide, unus mundus e sincronicidade. Estes conceitos já pertencem inteiramente ao novo paradigma e só podem ser entendidos a partir de uma nova visão de homem e sua inserção na realidade. O arquétipo psicóide diz respeito a uma camada da psique que não se limita ao mundo mental, mas mergulha no mundo material. As explorações de Jung nesta direção abrem caminho para importantes questões atuais cujo campo experimental está aberto, como as relações entre a mente e o corpo. Poderão certos eventos chamados “psicossomáticos” serem abordados a partir do arquétipo psicóide e da sincronicidade? Esta é uma questão fascinante e creio que a psicologia analítica tem muito a dizer e contribuir junto à psicanálise e outros saberes, numa abordagem transdisciplinar.
É esta uma das questões nas quais a psicologia analítica tem muito o que contribuir para o futuro da psicoterapia. Mas concordo com Andrew Samuels que levantou a importante questão da interdisciplinaridade. Samuels (1998) enfatiza a importância de que estudos junguianos nos limites de pesquisa nas quais outros ramos do saber são referidos, de que estes trabalhos sejam feitos de maneira interdisciplinar com especialistas destas áreas.
Julgo esta colocação extremamente coerente, pois a psicologia analítica, sendo uma obra aberta, comunicando com diversas áreas do saber permite e muitas vezes exige, o uso do conhecimento de outras áreas.
Entretanto, é interessante lembrar que o próprio Jung freqüentemente trabalhou de forma Interdisciplinar, conseguindo com isto, maior rigor em suas pesquisas: em mitologia com Karl Kerényi, em religião com Richard Wilhelm, e nas relações da mecânica quântica com psicologia com Wolfgang Pauli. Os vários pensadores de diversas áreas que participaram dos encontros anuais multiculturais de Eranos tiveram influência enorme no pensamento de Jung.
Portanto, as pesquisas futuras com relação à interação da física moderna, por exemplo, e o arquétipo psicóide, deve ser bastante criteriosa. O analista junguiano deverá ser cauteloso em comparações com áreas do saber que não lhe são familiares, buscando respaldo numa interdisciplinaridade responsável.
Muitos vêem a pós- modernidade um certo niilismo, uma negação dos valores alcançados pela modernidade.As premissas da modernidade, baseadas largamente nos valores contemporâneos da civilização industrial de produção e consumo, tem seu ponto de referência, psicologicamente falando, no ego, e suas relações objetais. A psicologia analítica oferece, ao contrário, um ponto de referência adicional para o indivíduo, o conceito de Self. O conceito do Self em princípio já relativiza o conceito monoteísta de ego, ou consciência de foco único no ego. O Self pressupõe outro tipo de consciência, que obriga ou abriga a condição mesma de um diálogo do ego com o Self.
Além do mais, há um fluxo constante de imagens a ser considerado, que não são um produto colateral do ego, mas se originam no eixo ego – Self.
O pós – modernismo faz uma revisão das relações de poder comparando o relacionamento do escritor e do leitor em forma mais igualitária. Grosso modo, podemos comparar a relação de paridade que Jung propõe entre paciente e analista. (Hauke, 1998).
Darwin e Freud tiveram importância fundamental na superação das certezas racionais do iluminismo. Na verdade, a descrição do inconsciente e a teoria da evolução extirparam a falsa noção de que o fenômeno humano era algo como que separado da natureza e do mundo observável.
Entretanto, o “elo perdido” permaneceu e só pode ser recuperado através de um paradigma totalmente novo. Julgamos que a questão da sincronicidade abordada por Jung pode ser o referencial adequado para transcender o gap homem – natureza.
Na verdade, a teoria arquetípica vai além de uma superação de uma cisão entre o individual e o coletivo. Com a questão do arquétipo, Jung toca o fundamento sobre o qual a modernidade se baseia em suas realizações, a cisão mente – matéria, como é formulada pela filosofia do iluminismo.
Lembramos que o arquétipo é o fundamento da totalidade psicofísica, no qual, a um extremo do espectro está o instinto, no outro, a mente. Esta formulação é a base das formulações sobre a sincronicidade.
Para Marx e Freud ilusão e fantasia foram conceitos chaves para entender o mal estar na civilização, com a repressão da sexualidade e sociedade capitalista com sua mais – valia resultante da exploração da classe trabalhadora.
Para Jung, é muito mais a consciência moderna que é a origem da neurose e não tanto o mal estar da civilização. Refletindo sobre a crise da cultura e da consciência moderna dentro de uma colocação “aberta”, em vários níveis, a relação entre mente e matéria, as realidades interna e o externa, a psicologia analítica se insere na pós – modernidade.
Portanto, situando a psicologia analítica neste amplo espectro de possibilidades dentro do novo paradigma, podemos, com algum otimismo, divisar muitos e importantes desdobramentos para o pensamento junguiano em futuro próximo.
Neste momento de questionamento de valores tradicionais, é importante entendermos o estado atual da psicologia analítica para pensarmos seus futuros desdobramentos.
Como se situa a psicologia analítica hoje? Vejo os chamados pós- junguianos procurando se situar dentro do legado de Jung de forma bastante complexa.
Samuels (1985) procurou situar os pós – junguianos em três escolas: a clássica, a desenvolvimentista, a arquetípica. A clássica, como o nome diz, congrega analistas que de uma forma ou de outra se atêm às formulações mais centrais de Jung, os conceitos de Self e individuação e resistindo às influências de outras escolas de pensamento. A escola desenvolvimentista ocupa- se do desenvolvimento do ego a partir da infância, considerando a individuação no contexto das influências familiares do primeiro período da infância, enfatizando ainda as questões da transferência. A escola arquetípica de James Hillman valoriza a importância das imagens, no contexto daquilo que Hillman chama de “cultivo de alma”, expressão tomada do poeta Keats.
Em recente artigo, Samuels (1998) reviu sua tão debatida classificação de escolas ou melhor dizendo, correntes de pós – junguianos, defendendo que:
“Como vejo agora, existem quatro escolas de psicologia analítica pós – junguiana. As escolas clássica e a desenvolvimentista permaneceram mais ou menos como eram. A escola arquetípica foi ou eliminada ou integrada como uma entidade clínica – talvez um pouco de ambas as coisas. Mas existem duas novas escolas a considerar, cada uma sendo uma versão extrema de cada uma das escolas existentes até aqui, a clássica e a desenvolvimentista. Eu chamo estas duas novas escolas de fundamentalismo junguiano de um lado, e fusão junguiana com a psicanálise de outro.” (Samuels, 1998, pág. 21, minha tradução).
O desdobramento nas correntes junguianas percebido por Samuels, após quase quinze anos da publicação de seu trabalho “Jung e os Pós Junguianos” é importante e vou considerá-lo aqui porque pode nos ajudar a entender como a psicologia analítica poderá se desdobrar nos próximos anos.
O fundamentalismo junguiano existe, é certo, mesmo no Brasil. Mas é nossa opinião que esta corrente em particular tende a diminuir e a ter uma importância menor. Por sua característica introvertida, ela se move em direção oposta ao movimento cultural atual, o individual engajado, uma individuação participativa no movimento cultural, o analista preocupado com a questão social, o ensino e a problema da psicologia analítica nas universidades, entre outras questões.
Mas é nossa opinião que o fundamentalismo junguiano surge conjuntamente com a outra corrente que se situa no extremo no espectro do pensamento junguiano, o junguianismo psicanalítico. Esta corrente ainda não aparece de forma muito definida em nosso meio, mas em congressos internacionais tenho percebido uma dominância de conferências que se pretendem mais “clínicas” e não tanto “simbólicas” – como se a abordagem simbólica não levasse em consideração a transferência e os aspectos clínicos fundamentais – que usam um referencial freudiano ou kleiniano, dando pouca ou nenhuma ênfase à abordagem clínica junguiana.
Nestas palestras, que se centravam na transferência e contra- transferência, e tendo como ponto de referência a díada mãe- bebê, e não nas imagens e fantasias, pouco tinham de uma abordagem junguiana.
Nada contra a abordagem psicanalítica tradicional, mas a questão que se coloca é uma questão de identidade do analista junguiano.
Creio que podemos explicar a exacerbação de uma escola “fundamentalista “que Samuels detecta na Europa e Estados Unidos como um movimento defensivo, de permanência em raízes, contra uma possível diluição na teoria psicanalítica.
Mas creio que o movimento junguiano naturalmente inserido na política, na universidade e, acima de tudo em uma postura multidisciplinar, tende a crescer em movimento centrífugo, extrovetido, sem perder sua identidade introvertida.
Concordamos também com Papadoupolos (1998) que afirma que a identidade do analista, sua experiência pessoal e profissional é que vai determinar sua maneira de trabalhar. Temos a convicção que são inúmeros os fatores que levam um analista a trabalhar de determinada forma, além da diversidade de experiências profissionais que poderá ter, principalmente as análises por que passou e as supervisões que teve.
Para pensarmos em futuro e desdobramentos no novo século, temos que ter uma visão ampla da psicoterapia que recentemente completou seu primeiro século de existência. Hillman (1992) estendeu-se já sobre este aspecto, tendo uma visão pessimista em relação à psicoterapia e o mundo atual “que está se tornando pior”.
Quando discutimos o futuro da psicologia analítica, não podemos dissociá- la da psicanálise, pois são abordagens que, embora guardando suas diferenças, têm como referencial o inconsciente, priorizam os conteúdos do inconsciente, e diferem bastante das psicoterapias comportamentais e reflexológicas, que priorizam o aprendizado a partir de estímulos externos, atos reflexos e condicionamento.
Além do mais, quando há uma enorme especialização no campo da medicina e das ciências da saúde, não podemos, de forma narcísica, pretendermos tratar de todos os sintomas psíquicos. As doenças psicossomáticas deverão envolver muitas vezes o médico de família, as psicoses, o uso de medicação por um psiquiatra clínico, as fobias sociais podem responder em muitos casos, a uma terapia comportamental. Distúrbios narcissísticos de personalidade requerem uma terapia analítica de longa duração. Já estados dissociativos graves, levam normalmente a atuações e não respondem a uma abordagem psicoterapêutica isolada de forma satisfatória. (T. Penna, 1999).
Gradualmente, a psicologia analítica deverá ter uma inserção política cada vez maior. O mundo interno não pode ser tomado dissociado de eventos externos, sociais, isto é, o fenômeno psicológico deve ser sempre tomado em contexto. Não se pode compreender um homem em processo de individuação solitário, pois ele deverá ser perfeitamente solidário.
Murray Stein, analista junguiano de Chicago, ex-presidente da IAAP, em sua visita à América Latina, ficou impressionado, segundo me relatou, com a enorme mobilidade e articulação da psicologia analítica em forma de novos grupos e junto às universidades. Stein julga o pensamento junguiano de certa forma mais cristalizado nos países desenvolvidos.
Estou procurando aqui raciocinar em contexto de tempo e local. Porque a psicologia analítica tem recentemente se expandido junto ao meio universitário brasileiro e mesmo uruguaio e venezuelano? Stein, em comunicação pessoal, chamou-me atenção para uma possível relação entre a queda do muro de Berlim, o desencanto com o ideário comunista como algo factível a curto prazo e a penetração maior da psicologia analítica em nível planetário.
Realmente, as atividades da IAAP (Associação Internacional) para uma maior difusão das idéias de Jung tem sido intensa nesta década. Vários analistas junguianos têm ido à Rússia, Polônia e outros países do leste europeu divulgar as idéias de Jung; as obras completas junguianas estão sendo traduzidas para o russo e outras línguas do leste europeu.
A existência de analistas junguianos pertencentes à IAAP em locais distantes como Japão, Nova Zelândia e Austrália já é fato muito conhecido por nós, temos inclusive analistas conhecidos nossos na Austrália. Mas a presença de países do leste europeu na comunidade junguiana é algo novo e merece ser olhado com atenção se quisermos propor ou divisar futuros possíveis para a psicologia analítica.
Numa visão das relações da psicologia analítica e da psicanálise com relação à política, as duas grandes correntes têm ocupado posições quase que antitéticas. A psicanálise é sempre vista pelos intelectuais de todo o mundo, como um saber mais engajado politicamente, enquanto que no imaginário coletivo a psicologia analítica tem ocupado, infelizmente, o lugar de um saber mais conservador; um reflexo talvez das projeções negativas feitas sobre um Jung, visto por alguns como um burguês suíço conservador, cujas teorias não se aplicam de forma alguma ao bem estar social.
É sobre estes pontos de vista que raciocinou Murray Stein. Sabemos, entretanto que a fantasia de que a individuação leva à alienação é uma compreensão errônea e bastante superficial das idéias de Jung. A intelectualidade do Brasil em particular e da América Latina em geral aderiu à psicanálise vendo nela uma crítica ao modelo burguês, à tradição burguesa, fazendo uma ponte entre o recalque no indivíduo e a repressão ditatorial dos regimes militares.
No Brasil, psicanalistas se tornaram símbolos da defesa de liberdades individuais, como no caso de Amilcar Lobo, denunciado por Hélio Pellegrino e outros. A psicanálise de modo geral, sempre esteve, portanto, engajada, como se diz. No entanto, a psicologia analítica também está engajada, o analista junguiano está consciente do contexto social em que vive. Após a perda de status do comunismo como solução perfeita para os males da civilização, espaços maiores são ocupados pelos junguianos junto a artistas e junto ao meio acadêmico. Pensar segundo as imagens do inconsciente coletivo não é se alienar do social, mas participar dele de forma mais criativa.
Diversos autores junguianos têm se inquietado com a questão social de diversas formas. Hillman, escrevendo de forma mais abstrata, usa de imagens alquímicas para falar de uma premência que sente de uma crítica mais rigorosa da questão social, do mundo “lá fora”. Fala em passar do “albedo” (mundo subjetivo) para o citrinitas, fase amarela do opus, como o mundo externo a ser questionado e transformado. Samuels publicou A psiqué Política (1998) e mais recentemente, A política no divã (2003) onde usa mais a função sensação extrovertida para situar Jung e a psicologia analítica em contexto social e político.
A teoria arquetípica pode e deve ser levada ao contexto social brasileiro. Anos atrás o Instituto Junguiano do Rio de Janeiro organizou uma série de conferências e debates com o título “Manifestações do Inconsciente coletivo Brasileiro”. Da mesma forma, os Congressos Latino- Americanos de Psicologia Analítica já realizados com peridiocidade de três anos no Rio, Punta del Este e Salvador tem servido para que reflitamos junto com os colegas junguianos da América Latina sobre nossa identidade cultural, nossos problemas comuns e possíveis soluções.
Sem dúvida, o futuro da psicologia analítica no contexto da América Latina nos parece promissor, principalmente tendo em conta a ênfase que é dada no pensamento junguiano ao mundo das imagens, a imagem é priorizada em relação à palavra. A questão da fantasia, da imagem psíquica e do símbolo, como fator psíquico fundamental é enfatizada.
A cultura latino americana é uma cultura de imagens. A tradição multirracial facilita a presença contínua de imagens como meio fundamental de identidade cultural, muito antes do que a tradição européia, centrada no falar e na palavra.
Uma das primeiras questões que se coloca na clínica de psicoterapia é a financeira. Em país terceiromundista como o nosso, o problema da clínica voltada para o social é imperativo. Em janeiro deste ano em visita ao Instituto C.G. Jung de San Francisco pude observar um sofisticado programa de treinamento de analistas junguianos. Entre as atividades do Instituto, está uma clínica de baixo custo, onde os candidatos atendem a pessoas de baixa renda. Se no estado da Califórnia existe tal disponibilidade, tanto mais num país como o nosso esta inserção na realidade social se faz necessária. O curso de especialização que o Instituto oferece junto ao IBMR no Rio de Janeiro, há uma clínica de baixo custo, onde os candidatos atendem com supervisão. Também o Instituto Junguiano tem seu atendimento social próprio, procurando dar acesso facilitado à psicoterapia sob supervisão para a população de baixa renda.
Quero também fazer algumas observações sobre a presença da psicologia analítica na universidade. Consideramos este tema importantíssimo e de grande atualidade, pois é nossa impressão que as psicologias do inconsciente, junguianas, freudianas e em suas diversas ramificações tendem a encaminhar para a universidade, o locus da transmissão do saber por excelência, e as instituições formadoras de analistas deverão, em futuro próximo, ter conexões mais íntimas com o saber universitário, sem perder, naturalmente sua autonomia.
As razões deste caminhar, deste encontro que deverá ser muito frutífero, entre o saber acadêmico universitário e o saber de um programa de formação de analistas são múltiplas. As universidades estão cada vez mais abertas, de uma maneira geral, pois têm gradualmente se libertado de noções pré – concebidas do que deve ser sabido, ou do como deve ser sabido.
Ao mesmo tempo, concordo com Andrew Samuels, que sugere diversas maneiras de sobrevivência da psicologia analítica ao final do século, sendo a universidade uma das principais (Samuels, 1998).
Segundo Samuels, há muitas possibilidades pedagógicas para a psicologia analítica na universidade. A primeira se refere à questão da eficácia clínica em psicoterapias de longa duração. É notório que a literatura a este respeito é escassa.
Outro possibilidade seria a investigação do próprio processo terapêutico, no que concerne, por exemplo, a como cada terapeuta trabalha, dependendo de sua orientação teórica, ou como reage quando confrontado com situações clínicas determinadas. Pesquisas também podem ser feitas quanto à identidade sexual, etnia e conduta terapêutica, tanto referidos ao terapeuta quanto ao cliente.
Samuels sugere outra investigação interessante: até quanto seria ou desejável uma intervenção de cunho pedagógico em psicoterapia? Isto é, seria válido, em certas circunstâncias, o terapeuta explicar ao cliente o tipo de processo a que ele está se submetendo, sua provável evolução e objetivos? Uma dos ganhos da pesquisa seria informar não só aos pacientes, mas ao público em geral, sobre os objetivos reais da análise, evitando as noções distorcidas e superficiais que vêm à público.
Um aspecto importante da obra de Jung é que ela foi publicada em sua edição completa não seguindo uma ordem cronológica como a edição standardda obra de Freud, mas por temas, daí ser obra junguiana ser chamada Trabalhos Coligidos (Collected Works). Isto muito embora a obra de Jung tenha sofrido constantes revisões, durante o curso de sua vida criativa. Certas pesquisas sobre conceitos de psicologia analítica como o de arquétipo, por exemplo, tornam-se difíceis. Na universidade, o estudo aprofundado da obra junguiana em seu contexto histórico em suas variáveis poderia ser assinalado, em oposição ao contexto clínico, que trabalha mais com conceitos em sua forma operacional atual.
Samuels chama a atenção ainda para as inúmeras contribuições que a psicologia analítica pode trazer em colaboração, na universidade, com aeducação e a sociologia, estudos sobre liderança, política e cidadania sobre o ponto de vista da teoria junguiana; ainda o estudo da crítica literária, das artes e estudo sobre o gênero. É importante assinalar a observação de Samuels de que nas diversas universidades onde esteve, foi nos locais de estudo das religiões comparadas que ele encontrou talvez as mais cuidadosas e criteriosas leituras de textos junguianos. Além das possibilidades de colaboração com antropologia e filosofia, Samuels cita ainda o interesse que na própria psicologia, a psicologia analítica desperta interesse, com os trabalhos de Jung com o teste de associação de palavras, a teoria dos tipos psicológicos, a influência de Jung na evolução do T. A. T. e nos testes projetivos em geral.
Em minha vivência universitária concordo de modo geral com as observações de Samuels, embora elas tratem mais de possibilidades do que de realidades fatuais, mas creio que muito do proposto pode ser alcançado em nível pedagógico para a psicologia analítica.
Talvez seja esta a contribuição mais sadia que a universidade possa trazer para aqueles que participam de instituições formadoras de analistas; uma saudável relativização das teorias, uma retirada de um isolamento teórico que a instituição formadora forçosamente leva, pela própria necessidade que tem de aprofundar seus métodos teóricos.
Outra experiência que temos em nível universitário e o curso de pós-graduação “lato- sensu” em psicologia junguiana junto ao IBMR, no Rio de Janeiro. O curso dura dois anos e em 2005 iniciou-se a 11ª turma. O aluno para terminar o curso, deve ter sua monografia aprovada por um orientador. O curso obedece às regulamentações do conselho federal de educação, e tem doze matérias teóricas referentes à psicologia analítica. Naturalmente o curso em nível de pós-graduação tem nível de aprofundamento bem superior ao da graduação e é obrigatório para aqueles (psicólogos ou médicos) que eventualmente busquem uma formação em psicologia analítica.
As interações de pesquisa com outras áreas do saber, que Samuels sugere, temos encontrado na pós-graduação, onde, por exemplo, a psicóloga Helena Saldanha fez importante trabalho de campo, de cunho antropológico sobre o tráfico de drogas no Rio de Janeiro relacionando-o com o arquétipo do Herói.
Os caminhos para uma pedagogia criativa são múltiplos e devem ser analisados em cada contexto. Procuramos trazer aqui nossa experiência pessoal de ensino vivenciada em três níveis, na graduação, pós- graduação e em instituições formadoras de analistas onde estivemos sempre confrontando o desafio arquetípico e ético que permeia toda a transmissão do saber: abandonar a busca do saber a qualquer preço, pela produção do desejo do saber. A admissão da falibilidade do professor, quando diz perante ao aluno: “tal tema foge ao meu conhecimento pleno, mas vou investigar, na próxima vez o trabalharemos juntos”. Tal colocação é cada vez mais rara de ser feita perante o aluno, embora seja extremamente sadia, por ser mais realista, desfazendo idealizações, afastando a imagem arquetípica do mestre para o nível do símbolo e evitando a concretização que isola mais que aproxima professor e aluno na busca do saber.
Mas é sempre importante ter em mente a ênfase que Jung sempre deu à educação através do exemplo pessoal, de como a personalidade dos pais e também de professores é fator decisivo em qualquer pedagogia. (Jung, 1988).
É proposital a escolha do título de minha palestra “futuros da psicologia analítica “. Os desdobramentos da pensamento junguiano serão múltiplos, sem dúvida, e antevejo um grande crescimento da psicologia analítica dentro do novo paradigma emergente do qual Jung é, sem dúvida, um dos mais importantes precursores.
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Bibliografia
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