Há Mundus Imaginalis na Relação Analítica?

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Há Mundus Imaginalis na Relação Analítica?
Maria Cristina Urrutigaray *

Resumo

O presente artigo dirige-se à temática da Relação Analítica, e tem como foco as imagens das emoções produzidas em função do encontro entre analista e analisando, como origem de um espaço para a recepção do mundo do imaginário. Entende-se aqui como imaginário um nível de realidade instituído pela relação terapêutica enquanto percepção, conhecimento e consciência imaginativos. Segundo a Psicologia Analítica, ao contrário da teoria Psicanalítica, a transferência de conteúdos infantis para o analista é um elemento importante na condução da análise de seu cliente. Assim também é relevante ao processo analítico a tomada de consciência do terapeuta das emoções projetadas pelos conteúdos do paciente, conhecida como contratransferência.

Afirma-se ser a prática da psicoterapia uma experiência de arte, na medida em que é um agir efetuado através de interações afetivas capazes de gerar novos meios para a organização das experiências subjetivas do cliente.
Assim sendo, incorporam-se a este trabalho às vivencias dos sentimentos expressos no setting como meios auxiliares plásticos e flexíveis à contenção da manifestação do imaginário. Deste modo considera-se a expressão imagética dos afetos das figurações projetadas por e na relação, como precedentes à verbalização dos seus sentimentos ocultos. E, como tais favorecedores da concretização dos afetos secretos, as imagens criadas pela interação também auxiliam na compreensão dos estados internos e do movimento da energia psicológica do paciente.

Palavras-chave: Relação Analítica; Imaginário; Transferência; Contratransferência; Espiritualidade.
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A escolha pelo tema do Encontro Pessoal na situação de análise tem como objetivo o interesse de determinar nas projeções efetuadas pelo cliente no seu analista o envolvimento das imagens arquetípicas, surgidas na relação terapêutica segundo a visão da Psicologia Analítica de C. G. Jung. Para tanto, consideram-se tanto as figurações determinadas pelas interações analista – analisando, quanto às projetadas em produções através do uso de técnicas expressivas. A questão que se apresenta está na formulação de se na prática da psicoterapia podemos estabelecer, com a possibilidade para a ativação do imaginal dos seus atores, um campo gravitacional propício à manifestação do “mundo da imaginação”. Entende-se aqui como manifestação às concretizações, ou personificações dos complexos arquetípicos emergentes na relação analítica.
Sabemos que em toda prática analítica, a relação estabelecida pela díade analista – analisando promove interações e estruturações afetivas próprias ao campo do “setting” analítico. Contudo como estas configurações de afeto se assemelham aos resultados de encontros pessoais comuns e rotineiros, percebe-se que na relação analítica essas interações reproduzem as maneiras como o paciente se conduz no seu cotidiano. Se concebermos o imaginário como a expressão das necessidades intrínsecas de um sujeito em compreender a relação entre sua realidade sensível – ou a percebida pelos seus órgãos sensoriais – com aquela captada por meio da fantasia, da intuição, ou através da contemplação e do silencio propícios às vivencias do seu mundo interno. Logo, pode-se inferir que pela relação analítica o confronto da díade analista – analisando dá lugar também a formação de um mundo imaginal, a partir do resultado das interações determinadas. Aqui neste ponto da discussão podemos entender o imaginário analíticocomo uma configuração, ou ponte que une o mundo visível com o invisível das ações dos atores dentro do espaço terapêutico. Esta formatação produzida – o campo imaginal da relação – integra as situações manifestadas com as possibilidades de criação de novas formas, idéias e valores, que são desdobradas em potencialidades e atualizações na alma do analista e de seu analisando.

Para que ocorra um bom Encontro Pessoal necessita-se da arte de estar diante de um outro, e desenvolver vínculo valorativo respectivo aos atributos da compreensão, compaixão, bondade. Designa-se arte a “um conjunto de preceitos para a execução de qualquer coisa” (Cunha; 1982; 72). Portanto, consideramos o conceito de arte como a capacitação para a realização de uma atividade. Esta habilitação no encontro pessoal se traduz na adequação dos posicionamentos tomados em situações de se pôr de frente, ou de confrontação pessoal, e de se assumir frente às atitudes tomadas. Pois, a possibilidade de observar os resultados destas representações em confronto e de poder integrá-los constitui-se em circunstancias necessárias ao desenvolvimento do si mesmo, ou Self enquanto totalidade psíquica. Aqui neste ponto da discussão podemos retomar a importância do imaginário criado na configuração do setting analítico como sendo a via para o alcance do sentido de vida, ou de um entendimento mais amplo da existência humana.
Sabemos também que em todo Encontro terapêutico ocorrem os mesmos resultados interativos, propícios à construção da subjetividade. Porque ambos – terapeuta e cliente – se colocam frente a frente diante das situações de conflito e tensão, trazidas pelo paciente. Logo, é através do reconhecimento desta imagem de um outro presente na relação que se consegue fazer conexão com o outro presente em cada singularidade interna.
No entanto esse mundo imaginalis – ao qual nos referimos como atualizado pelo exercício da própria prática – ou o mundo do imaginário não surge segundo Corbin (Corbin apud Mello; 2006) de imagens sensoriais, ou de memórias de experiências vividas. Também não se forma através de associações sucedidas pelo ritmo ou proporção do aprofundamento terapêutico. Ao contrário ele é formado através de uma experiência mítica, isto é, de uma vivencia sucedida por um sentido de oportunidade, ou de um momento certo e adequado, que traz- estimulada pela relação – a percepção qualitativa da representação do tempo da criação no sentido e compreensão do mito pessoal: o que se é realmente!

Em linguagem junguiana, a prática da psicoterapia conduz a um encontro com aquilo que é mais especifico e pessoal em cada um. Sendo esta realização o sentido de um processo chamado de individuação. Entende-se por individuação a possibilidade de alguém conseguir realizar –se o mais plenamente possível como indivíduo. Contudo, sem deixar de pertencer e contribuir para com a comunidade social a que pertence. Pois a individuação não consiste em um proceder individualista, ou em atitudes de isolamento e distanciamento do ambiente social. Sendo que neste movimento pessoal a condução do analista é o agente facilitador e acelerador, muito embora a individuação também seja alcançada fora da análise.
Logo o processo analítico só favorece e acelera a tomada de consciência acerca da realização de si mesmo. E ele é feito através da leitura e integração das imagens das emoções presentes nas constantes interações promovidas. Estas imagens são a revelação do imaginário. E a compreensão do sentido de sua origem (do imaginário) realiza-se pelos atores da relação analítica, que dão forma, corpo ou materialidade ao aspecto espiritual contido no material transferido do cliente para situação clínica, e através da intervenção do terapeuta possibilita-se a transformação de comportamentos reativos – filhos da instintividade humana – para outros mais espiritualizados.

Assim, o encontro com o outro é determinado pela ação de um ego, que recebeu do Self a função de revelar os seus próprios recursos pessoais, recebidos geneticamente pelos arquétipos, ou conteúdos do Self, comuns e presentes em todos os homens. Esta transformação do arquetípico em atributo pessoal é mediada pela tomada de consciência do sentido e significado de cada figuração como, por exemplo, as imagens dos sonhos. Mas elas também se apresentam através de projeções, ou transferências de material inconsciente para o analista. O Self refere-se à disposição psicológica central do aparelho psíquico, e como o centro original e ordenador de toda a atividade psicológica, ele é a totalidade do psiquismo, englobando o inconsciente e a consciência. Por ser a origem do ego, o Self se apresenta ao ego como sendo a imagem também de um outro. O ego, como núcleo da consciência, tem como atividade permitir a construção plena do sujeito, garantindo o caminhar da individuação, a partir da organização e integração das experiências e seus resultados. Esta ordenação é feita por meio da análise e impressão das representações mentais, fantasias e imaginações ocasionadas pela percepção das presentificações de um universo espiritual concreto de imagens arquetípicas. Para tanto, todo conteúdo do imaginário necessita estar contido ou limitado em um campo relacional, ou em um espaço propício a sua percepção, ou consciência subjetiva. Pois é através desta contenção no campo relacional que um determinado conteúdo arquetípico passa da condição de potencialidade para a condição de atualidade.
Contudo, como o indivíduo na condução de sua individuação para poder captar sua totalidade e reconhecer os seus vínculos afetivos, ele necessita primeiramente estar de frente com um outro. Pois, como explica Vigostky (1998) o homem aprende os valores humanos, ou se humaniza, quando convive com outros homens. Ou seja, para conseguir encontrar o caminho da individuação conscientemente, o indivíduo precisa constituir valores humanos através de estabelecer laços amorosos com outros semelhantes a ele. Não basta, pois, ter uma vida é preciso ser na vida! Jung (1994) falando acerca dos processos projetivos do inconsciente, parece dar o motivo ou a causa da afirmação de Vigostky. Jung comenta que é através da dinâmica de depositar (projetar) no meio externo, ou em outras pessoas os desafetos negados e ocultos, que o sujeito consegue entrar em contato com estes sentimentos. Quando os percebe, confronta, e integra, o sujeito se transforma espiritualmente. Pois ele adquire integridade da sabedoria arquetípica, que pulsando dentro dele lhe imprime os sentimentos de humanidade. Porém como para conseguir se ver como realmente se é precisa-se de um espelho, as projeções de afetos canalizados pela pessoa do analista vão permitir ao cliente a revisão dos seus valores pessoais e a reconstrução da subjetividade.

Sendo assim, as imagens valorativas e afetivas que emergem no Encontro Analítico são representações dos padrões arquetípicos, portanto de caráter coletivo e presente na espécie humana. E estão presentes tanto no analista quanto no seu analisando. Portanto, a compreensão do terapeuta dos sentimentos contidos nas projeções originárias do Mundus Imaginalis, causadas pelas imagens arquetípicas presentes em ambos atores, podem ajudar na condução da individuação do cliente pelo terapeuta se este estiver consciente destes sentimentos. Pois apenas a informação teórica e técnica aprendidas na formação de analistas não são suficientes ao exercício da prática analítica. Porque somente ter a informação de seu existir, não é suficiente nem basta para captar a dimensão do depósito deste Imaginal, para tanto ele precisa ser testemunhado. Desta forma pode-se dizer que a individuação do analisando é facilitada pelo encontro frente a frente com outro homem: o analista. Assim sendo, a intervenção do analista frente à apresentação do imaginário que se mostra neste estar frente a frente, suscita a aparição de transferências do cliente projetadas na pessoa do terapeuta, como também podem proporcionar contratransferências, ou reações do analista frente à carga afetiva nele depositada pela força de atração do campo relacional, tomando-a para si por se sentir atingido, mexido, ou afetado. O material transferido pelo cliente é apresentado para desvendar fantasias, reviver emoções ocultas, testemunhar questões inconscientes, e conseguir alcançar o sentido e significado delas na vida do cliente.
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O problema aqui formulado traz a discussão à linguagem simbólica destes materiais imagéticos, desencadeados pela prática da psicoterapia, e realizados em diferentes níveis de comunicação estabelecidos entre os envolvidos. Estas vias de linguagem se estabelecem nas seguintes interações possíveis: entre consciência de um e consciência do outro; consciência de cada um com o inconsciente respectivo; o inconsciente de um associado ao inconsciente do outro; e a consciência de cada um ligada ao inconsciente do outro. Portanto, é relevante a consideração e a determinação dos simbolismos e significações vindos dos canais receptivos dos atores da ação analítica. Pois esta leitura constitui-se na arte do trabalho de resgate e ajuda ao desenvolvimento da personalidade total do analisando. Já que os símbolos referem-se às representações dos diferentes estágios de desenvolvimento interno do cliente, e são os únicos elementos possíveis para dizer algo que não possui outro canal de expressão para serem apreendidos e interpretados em sintonia com o sentido da oportunidade e a urgência do momento, inclusive àquelas que tocam mais intimamente ao terapeuta.

Assim sendo, o trabalho com as práticas expressivas, ou o recurso da arteterapia, cujo objetivo é facilitar e habilitar a comunicação das experiências do cliente em situação analítica. Assim sendo, a introdução da arteterapia na relação analítica flexibiliza a entrada do cliente em situação de análise. Já que ela favorece as projeções das experiências de vida, das suas necessidades e possibilidades virtuais. As configurações produzidas realizam a conexão entre o mundo interno e externo do cliente. Porque elas estabelecem pontes simbólicas, que permitem o acesso ao Mundo do Imaginário , o inconsciente, pela ação da imaginação ativa, ou modo de criação que se renova a todo instante. Deste modo, a arteterapia ajuda a reorganizar a vida psíquica do paciente, e ganha uma função ordenadora por possibilitar o poder de ter conhecimento sobre si mesmo. Como também disponibiliza e mobiliza através de cada produção a aquisição de novas identidades.
O símbolo é a expressão do inconsciente, e revela-se por meio de imagens, como as fantasias, ideais, sonhos, e atividades espontâneas. Ele é o portador dos mistérios, do sagrado, ou das determinações espirituais que necessitam encontrar receptividade para fecundar a consciência do analisando. No entanto, sem a presença de um fator deflagrador de afetos, como a situação da análise e o estar frente a frente com o outro, a consciência do cliente não consegue conceber nem aceitar estas determinações espirituais, porque a ela (a consciência) lhe falta o encontro com o amor, a compreensão, a solidariedade, e a unidade favorecidas pelo Encontro Analítico (Jacoby: 1987).
Portanto devem ser considerados os simbolismos presentes nas repercussões no psiquismo do analista, vindas através dos processos de transferência do analisando, como instrumentos para a contemplação das impressões conscientes do terapeuta a cerca de seu paciente. Contudo, o analista deve ter os devidos cuidados para não se deixar contaminar com o material inconsciente do analisando, mas saber usar estas impressões como contribuições às expressões de seus clientes.

Conforme afirmamos no início deste trabalho, a própria Relação Analítica constitui-se como um campo de atração do imaginário do cliente e do analista. Assim, ela se configura como um ponto de articulação, intermediação, e ligação entre a díade envolvida. Logo esta interação analista – analisando pode transformar os imaginários de cada um em um novo elemento: um novo Mundus Imaginalispossível ao acesso do pluralismo das dimensões arquetípicas, e de suas infinitas possibilidades de identidades.
Para finalizar este trabalho, cabe ressaltar a consideração das condições do homem contemporâneo, e a função da psicoterapia e da espiritualidade dentro deste contexto. A limitação da vida voltada para o imediatismo, à preocupação para com as expectativas externas, as atitudes devoradoras da ideologia consumista, é fator de privilégio apenas do vivido, consumido, conhecido, explorado no imediato, em franca oposição ao desconhecido, o incomum, o diferente, o irracional. Esta situação por si mesma produz intensas sensações no homem atual de esvaziamento interno, de aniquilamento, de não reconhecimento de si, devido à ausência de representações ou sentimentos do mundo do imaginal. A omissão correspondente às manifestações da sensibilidade e de poder sentir, provar, testemunhar o inominável, o indefinido, o incerto, o inseguro, presente e constante na ambigüidade do drama humano, favorece a perda pelo sentido da vida. Pois o mundo das imagens reduz-se a reprodução de ícones sociais. A continua repetição do já estabelecido transforma as ações pessoais em programações predeterminadas, e termina por abafar a possibilidade da criação, e com ela o acesso ao Mundo do Imaginário.

A análise das imagens das emoções é a possibilidade do sujeito conectar-se consigo mesmo. O fato de considerar e analisar os afetos da transferência e da contratransferência, como intermediação das representações do imaginário, também contribui para ruptura individualista baseada em esquemas pré-ordenados, ou scripts moldados; como permite a apresentação de movimentos criativos para manifestações de novas identidades, como modos de agir e de se adaptar. As amplificações feitas a partir das associações do analisando, juntamente com as impressões de seu analista vão dando nova configuração ao imaginário do cliente, que são sentidas nas mudanças da afetividade na relação. Assim, ao utilizar instrumentos como o material de arteterapia, as emoções podem ser reveladas, e elas também devem ser trabalhadas junto com as impressões observadas pelo analista.
A questão levantada que a própria situação da Relação Analítica forma um Mundo do Imaginário que unifica o imaginário de seus participantes, as impressões do analista (não suas interpretações) acerca das imagens criadas por seu cliente possibilita mais facilmente a assimilação da formação, expressão e manifestação das potencialidades atualizadas.
Portanto, o espaço terapêutico, e todas as implicações afetivas deflagradas e decorrentes da Relação Analista – Analisando é um fator ativador e atualizador do Mundo Imaginalis, ou inconsciente coletivo e seus arquétipos, fonte para o caminho da espiritualização, e presentes em ambos.
Referências Bibliográficas:

1. CUNHA, A.G. Dicionário Etimológico, Nova Fronteira da Língua Portuguesa. RJ: Nova Fronteira, 1982.
2. MELLO, Maria F. – Reflexões acerca do Mundus Imaginalis, disponível no site: www.redebrasileiradetransdiciplinaridade.com.br; visitado em 07/nov/2006.
3. JACOBY, M. O Encontro Analítico. SP: Cultrix, 1987.
4. JUNG, C.G. O Eu e o Inconsciente. Petrópolis: 10ªedição, Vozes, 1994 (B).
5. VIGOSTSKY, L. Pensamento e Linguagem. SP: Martins Fontes, 1998.
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* Psicóloga Analista Junguiana pelo Instituto Junguiano do Rio de Janeiro, Membro da AJB e IAAP. Mestre em Psicopedagogia pela Universidade de Havana; professora da Pós-graduação em Psicologia Analítica do IBMR/IJRJ; Arteterapeuta; professora da UCAM de cursos de pós-graduação; da UNESA na disciplina Terapia Junguiana, e supervisora de atendimento clínico de acadêmicos em Psicologia, em Psicoterapia Junguiana e Arteterapia. [voltar]

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