INDIVIDUAÇÃO: CRIATIVIDADE E CIDADANIA

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INDIVIDUAÇÃO: CRIATIVIDADE E CIDADANIA
Aurea Christina Torres

Psiquiatra (UERJ), Mestre em Medicina (UFRJ), Analista Junguiana, presidente do Instituto Junguiano do Rio de Janeiro (IJRJ), membro didata da Associação Junguiana do Brasil (AJB), professora do curso de pós graduação em psicologia Junguiana do IBMR e do curso de formação para analista junguiano da AJB/IJRJ. Membro da International Association for Analytical Psychology.
Resumo: Individuação, conceito teórico originariamente definido pelo, psiquiatra C.G. Jung, é atualmente aceito por várias escolas de pensamento psicológico. Esse artigo pretende refletir sobre a questão dos eventuais conflitos entre individuação e adaptação e as oportunidades e possibilidades de construção de uma cidadania plena e criativa, dentro de nossa sociedade.
Introdução

Certa vez, em uma entrevista, a atriz Fernanda Montenegro declarou, clara e categoricamente, que a elite política do país praticava a rapinagem. Homens dignos, quando em posições de poder, esqueceriam de seus ideais e passariam a defender pensamentos que anteriormente renegavam, justificando-se em discursos racionais que zombariam de nossa inteligência. Perplexos, com nossas mentes inundadas com inúmeras perguntas, ficaríamos perdidos e sem respostas convincentes. Será que o poder corrompe? Será que isso só acontece no Brasil, ou será que é no mundo todo? Ou então, serão as coisas aqui no Brasil mais graves e injustas? Será algo inerente a condição humana?
Fernanda Montenegro ficou famosa no mundo todo com o filme “Central do Brasil”, ganhador de vários prêmios nacionais e internacionais. Neste filme, uma mulher, professora aposentada, ao rever sua “atitude de rapina” frente à sociedade, teria ganho um espaço interno de solidariedade, absolutamente comovente, mudando a história de sua vida e de toda uma família. A professora seguiu a sua missão de ensinar, mas também aprendeu com seu aluno: um lado que estava escondido, corrompido e desatualizado. Desta maneira, um menino perdido, em busca do pai, conduziu essa senhora a uma viagem quase impossível, mas que, no fundo, também foi uma jornada à procura de sua própria alma, essa também, perdida para a realidade da vida. Mas que realidade seria essa? Uma realidade que afastaria as pessoas de sua humanidade? A atriz, com seu depoimento, remeteu-nos a questão de nossa responsabilidade como cidadãos. Enquanto psicoterapeutas e profissionais da área de saúde e educação, essa realidade “falaria” diretamente aos nossos corações e mentes. Qual seria o nosso papel na construção de uma cidadania?
O nosso trabalho pretende refletir sobre o conceito de individuação proposto por Jung, e sua inserção na possibilidade de construção de uma cidadania.
Realidade e Individuação
Individuação, termo usado primeiramente por Jung, e posteriormente adotado pelos gestaltistas, foi definido por Jung como o processo de:
(…) tornar-se um consigo mesmo, e ao mesmo tempo com a humanidade toda (…) é uma opção livre e de decisão individual … sem uma tal comunidade, o próprio indivíduo que se fundamenta em si mesmo e é independente, não pode progredir por muito tempo. (187, 227)
Jung pensava que os fatores externos tinham um importante papel no crescimento e expansão da personalidade, que ocorreria através da percepção e aprendizado daquilo que se é intrinsecamente. De acordo com ele, a libido seria qualquer manifestação possível da energia psíquica, não se limitando à sexualidade ou agressão, mas incluindo os anseios religiosos ou espirituais, e o impulso para buscar um entendimento profundo do significado da vida.
Zimbardo (1970), citado em Rodrigues, Assmar e Jablonski (2000, pag. 222), baseou-se no conceito junguiano de individuação e propôs o termo desindividuação, como uma teoria que postularia a mudança da consciência individual em função de uma adaptação à sociedade. Neste estado de desindividuação, haveria uma ausência de sentimento de individualidade distinta ou de autoconsciência. Essas idéias poderiam ser consideradas como uma espécie de atualização daquilo que Jung tanto escreveu por toda sua vida, que foi a questão da individuação e da adaptação. A adaptação, processo mais característico da primeira metade da vida, teria como objetivo principal, aquele de construir uma vida orientada predominantemente para as exigências da sociedade, como: trabalho, família, carreira etc. Na segunda metade, a meta prioritária seria aquela da individuação, com seus ideais de autoconsciência. Embora, atualmente, essa divisão em faixas etárias possa estar anacrônica, essas duas tendências, de individuação e adaptação, e as conseqüências da desindividuação continuam sendo questões contemporâneas. A respeito desse tema, Jung disse:
Mesmo que o indivíduo tencione adaptar-se a uma condição pré determinada qualquer, isso sempre tem que ser feito conscientemente e por opção própria e livre. (1987, 223)
Lutar ou fugir, comungar ou isolar-se, calar ou falar, seriam escolhas com significados diferentes para cada indivíduo em particular, em diferentes momentos da vida. No entanto, infelizmente, nem sempre essas escolhas poderiam ser feitas em nome da individuação, cujo caminho nem sempre seria aquele que nos adaptaria melhor à sociedade; eventualmente a individuação ficaria adiada, talvez para momentos mais propícios.
Essas reflexões recordaram-me do poeta maior: João Cabral de Melo Neto. O poeta brasileiro, sempre envolvido com a realidade do povo de sua terra, conseguiu fazer poesia com a pedra, com a concretude e a realidade dura da vida de seu personagem, Severino retirante, e sua trajetória do sertão até o mar. Severino, em busca de um mundo novo e melhor, fez sua jornada em direção ao litoral, mas ao longo do caminho, até chegar ao seu destino, acabou descobrindo que pouca coisa havia mudado, sendo a esperança a única coisa ainda guardada na “caixa de Pandora”.
Os poemas de João Cabral moldaram uma época de ideal, luta e entusiasmo por um mundo mais justo e solidário. Paradoxalmente, sua criação artística, além de estar vinculada ao sentimento de solidariedade pelo sofrimento de seu povo, também estava ligada a uma dor física: uma enxaqueca, que o acompanhou por toda sua vida. Esse era o sinal de que uma poesia queria nascer: tal qual Zeus ao dar a luz à Atená, o poeta libertava sua “alma” de sua mente e gerava poemas. Poderíamos nos perguntar que dor seria essa que João sentia? Talvez a mesma dor de tantos brasileiros oprimidos e sem futuro, que ainda não se cansaram de lutar contra um destino injusto. Se somos feitos da matéria de que são feitos os sonhos, o que será que foi feito daqueles de então? Será utopia o sonho de uma humanidade gerida pela paz e compreensão? Será possível que nunca iremos globalizar o altruísmo e a solidariedade?
Amplificando nossas reflexões, daremos um exemplo bem conhecido da literatura mundial, excelente metáfora para o assunto em questão: o livro de George Orwell, “A revolução dos bichos”, que é uma paródia sobre o poder ilimitado. À maneira das fábulas de La Fontaine, o autor narrou a vida em uma fazenda, onde os animais, insatisfeitos com a maneira como eram tratados pelo dono, rebelaram-se e fundaram uma sociedade baseada em sete mandamentos; a igualdade entre os animais seria fundamental e os homens seriam os grandes inimigos. Os animais inspirados pelo sonho do velho major, o grande ideólogo da revolução, aproveitando uma oportunidade, revoltaram-se contra uma situação opressora, iniciando uma mudança social. Na nova forma de governo, o Animalismo, a máxima seria: “Todos os animais são iguais”. Desta forma, fundaram a Granja dos Bichos e uma nova era começava. Os porcos, considerados os mais inteligentes, tornaram-se os supervisores e as novas regras eram baseadas principalmente em se evitar “os vícios dos homens”. Nenhum animal deveria morar em casa, dormir em camas ou usar roupas; também não poderiam beber álcool, fumar, tocar em dinheiro ou fazer comércio. A princípio todos os animais ficaram felizes. Trabalhavam para seu próprio sustento e sobrava mais tempo para o lazer. As discórdias também acabaram e todos ficaram muito otimistas. Mas as coisas não seriam sempre assim e surgiria a primeira discriminação: só os porcos poderiam comer maçã e leite. Os outros animais estranharam, mas acabaram aceitando. A máxima do Animalismo neste momento era: Quatro pernas bom, duas pernas ruim. Os bichos enfrentaram vários obstáculos, até mesmo uma batalha contra os homens, mas saíram vitoriosos. No entanto, a maior batalha eles perderiam: seria a luta de poder entre os seus. Napoleão, líder da revolução, resolveu assumir o poder total, e com ajuda de cães adestrados, expulsou seu rivais.
A partir desse momento, uma nova era começaria: após o “golpe”, começava um tempo de muito trabalho e escassez. Simultaneamente, seriam quebradas as principais leis do Animalismo. Os porcos passaram a morar na casa da fazenda, a dormir em camas, e Napoleão resolveu fazer comércio com os homens. Ao mesmo tempo, seriam feitos alterações na constituição. Alguns animais tentaram reagir, mas foram todos acusados de traição, calados e sacrificados.
Finalmente, as últimas mudanças na constituição do Animalismo foram feitas: os porcos passaram a vestir roupas e a andar somente nas patas traseiras. A partir daí os mandamentos mudariam totalmente, e foram sintetizados em:
“Quatro pernas bom, duas pernas melhor”
“Todos os animais são iguais, mas só que uns são mais iguais do que os outros”
Com o passar do tempo, os animais ficariam perplexos ao verificar que porcos e homens estavam semelhantes entre si, de tal modo que, se tornara difícil distinguir quem era porco e quem era homem.
Nessa fábula, os ideais fundamentais e os pilares de sustentação da nova sociedade, foram sendo paulatinamente deformados, até serem totalmente substituídos por outros, que privilegiavam uma minoria no poder. Alguns animais rebelaram-se e denunciaram o fato: foram exterminados. Outros aceitaram as mudanças, quer fosse por submissão, ingenuidade, alienação ou pessimismo. Da mesma maneira, Severino, retirante, no poema de João Cabral, tentou mudar sua vida, mas diante de tantas impossibilidades, pensou em suicidar-se, jogando-se no rio, mas desistiu quando percebeu o valor da vida, mesmo que fosse aquela, severina…
Na perspectiva de tantos obstáculos e evidências, como permanecer fiel a si mesmo, no caminho de uma individualidade e coerência com seus ideais, sem morrer ou se submeter, e assim mesmo, resistir de alguma maneira ? Nas palavras de Jung:
(…) o processo de individuação natural produz uma consciência do que seja a comunidade humana, porque traz justamente à consciência o inconsciente, que é o que une todos os homens e é comum a todos os homens. (1987, 227)
Os ecologistas há muito vem denunciando que o planeta Terra estaria entrando no terceiro milênio, dominando a natureza com sua tecnologia avançada, sem ter aprendido a respeitá-la. Na verdade, os avanços tecnológicos, não impediram que o mundo entrasse no século XXI com as mesmas mazelas da Idade Média: guerras, violência, ganância, miséria, fome, epidemias, governos totalitários, impunidade, abuso de poder, corrupção, desigualdade socioeconômico e cultural, sonhos e ideais destruídos. Evidentemente que esse quadro não é muito agradável de se ver. Mas qual seria a contribuição possível de cada um de nós, na mudança desse quadro? Provavelmente pequena, mas nem por isso sem importância. As palavras de Jung, de um texto de 1941, parecem proféticas, e talvez possam responder, em parte, a essas dúvidas e, ao mesmo tempo, ser um incentivo e esperança:
Tudo quando começa sempre começa pequeno (…) Se conseguirmos apenas que, pelo menos, uma árvore dê frutos, ainda que mil outras permaneçam estéreis, já teremos prestado um serviço no sentido da vida. Quem tiver a pretensão da fazer prosperar até o último grau tudo que deseja crescer, vai verificar que as ervas daninhas, que sempre vingam melhor, logo crescerão por cima da cabeça. (1987, 229)
Então, afinal, talvez nem tudo esteja perdido: o trabalho é progressivo, exige persistência e precisaria ser reinventado é sempre atualizado, levando-se em conta a realidade tanto pessoal como coletiva. Como poderíamos trabalhar e aplicar aquilo que sabemos fazer? Conhecer, sem fazer, afinal de contas, ainda não é saber.
Conclusão
O psicoterapeuta sabe que, na prática clínica, não pode pretender ser o artífice responsável pela individuação de todas as pessoas que o procuram ou, então, daqueles que o rodeiam. Nem sempre seu papel será aquele de parceiro em um verdadeiro processo de individuação, mas, ainda assim, continuaremos a ser psicoterapeutas, atentos à demanda do outro, ao mesmo tempo que, atentos à nossa própria individuação. A individuação ocorre na vida, dentro ou fora de nossos consultórios, sendo uma espécie de chamado da natureza. Ela não é necessária para a adaptação de um indivíduo à sociedade, mas, paradoxalmente, Jung nos disse que, se o mundo quiser se transformar, terá que se individuar de uma maneira global. No entanto, Jung, nos adverte, que, se isso for alcançado algum dia, só o será, depois de séculos de sofrimento e equívocos:
(…) o destino para a consciência, a liberdade moral e a cultura, inerente à natureza do ser humano, provou ser mais forte do que a surda coação das projeções que mantêm o indivíduo constantemente preso à escuridão da inconsciência, oprimindo-o, até anulá-lo. Contudo, esse caminho lhe coloca uma cruz nas costas, isto é, o tormento da consciência, o conflito moral e a insegurança do próprio pensamento. Esta missão é tão tremendamente difícil, que se algum dia conseguirmos levá-la a cabo, isto só será conseguido em etapas seculares, às custas de infinitos sofrimentos e esforços na luta contra todos os poderes, que constantemente nos querem persuadir a seguir pelo caminho mais fácil da inconsciência. (1987, 223)
Finalmente, se “(…) a alma é a matriz de toda ação, e, conseqüentemente, do todos os acontecimentos determinados pela vontade dos homens” (Jung, 1987, 212), estamos livres para sonhar e imaginar um mundo melhor, ampliando esse pensamento para o coletivo. Individuação poderia ser pensada como a junção única e particular do pessoal com o coletivo: ela acontece como um destino transpessoal, “daimônico”, mas se realiza segundo nosso livre arbítrio. Por que não imaginar que tudo isso poderia ser feito por toda a humanidade, de tal forma que alcançaríamos um self universal? E aí, então, tal qual a poesia de Chico Buarque, sonhar, e mais uma vez…:
Sonhar quando um sonho é impossível
Lutar quando é fácil ceder
Vencer o inimigo invencível…
Negar quando a regra é vender
Sofrer a tortura implacável
Romper a inegável prisão
Voar num limite improvável
Tocar o inacessível chão
E assim, seja lá como for
Vai ter fim a infinita aflição
E o mundo vai ver uma flor
Brotar do impossível
Referências Bibliográficas
JUNG,C.G. A Prática da Psicoterapia, vol. XVI das Obras Completas. Petrópolis: Ed. Vozes, 1987.
MELLO NETO, JOÃO CABRAL. Poesias Completas. Rio de Janeiro: José Olympio, 1975.
ORWELL, GEORGE. A Revolução dos Bichos. São Paulo: Ed. Globo, 1998.
RODRIGUES, A.; ASSMAR, E. E JABLONSKI,B. Psicologia Social. Petrópolis: Vozes, 2000.

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