O Diabo Fascinosum

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O Diabo Fascinosum
Lygia Aride Fuentes

Vou iniciar este trabalho com uma declaração:

“Eu faço um profissão amoral, onde todas as possibilidades humanas podem ser discutidas. Numa profissão como essa você tem que se lambuzar na alma humana! Nada que é próprio do homem pode te estarrecer ou inibir. ”
A propósito, essa declaração é da atriz Fernanda Montenegro que nos faz questionar se, como analistas, temos a mesma disponibilidade para acolher imagens tão aterradoras quanto as que se apresentaram a nós. Estou convidando vocês a experimentarem a emoção do encontro com o Diabo, ou seja, com essa imagem que surge autonomamente na psique humana.

A experiência emocional com o Diabo, esse ser monstruoso, nos faz constatar o quanto ele é, também, sagrado e divino. Nas palavras de Rudolf Otto: “O divino, sob forma do demoníaco, é para a alma objeto de terror e de horror. A imagem demoníaca é, também, numinosa por conter em si um mysterium terrible et fascinans. O mistério não é só o espantoso, é também o maravilhoso. ” Este é ao mesmo tempo terrível, porque se dá como prufundo choque, e fascinante porque, paradoxalmente, exerce uma atração irresistível.
Jung diz que, mesmo que não possuíssemos nenhuma imaginação para o mal, ele ainda assim nos possuiria. E isso nos fez compreender o que nos ocorreu, pois que nós não procuramos o Diabo, ele é que veio até nós.

Foi mais ou menos assim como nos fala um personagem de Guimarães Rosa:
“Enquanto a gente brincava, descuidoso, as coisas ruins já estavam armando a assanhação de acontecer. Elas esperavam a gente atrás das portas.”3
E foi assim que ele se apresentou num sonho de uma cliente, o primeiro de uma série. Em suas palavras:
“Encontro-me diante de uma grande porta pesada que está se fechando. Isso se dá num rítmo compassado, e conta-se assim: ’1, 2, 3, …’. No instante em que a porta vai se fechar, num milionésimo de segundo, o Diabo passa por ela, sorrateiramente, e então ela se fecha no compasso de número 4.” Lá do outro lado da porta, ela diz, “sei que é a casa de Deus. E agora sei, também, que Deus e o Diabo se encontram ali reunidos.”
A cliente fica assustada e atônita com esta constatação, pois vivencia este sonho como uma verdade irrefutável, a ponto de sentir necessidade de dividir essa experiência com todo mundo. Ou, como ela diz, “pelo menos com aquelas pessoas que se iludem sobre um Deus que está no Céu, e que o Inferno fica lá embaixo, bem separado.” Não interpretamos este sonho enquanto referido à Sombra Pessoal da cliente, mas à Sombra Arquetípica, a partir da observação de que essa imagem do inconsciente estaria tratando da transformação da visão maniqueísta de Bem e Mal, constelado na consciência dessa cliente a partir da cultura judeu-cristã, onde ela está inserida. Compreendemos essas imagens como uma experiência gnóstica.
Tanto a cliente quanto os gnósticos foram fortemente afetados por experiências íntimas dessa natureza, e essas experiências contêm uma idéia que compensa uma assimetria divina introduzida e preconizada pela Igreja Cristã, influenciada tanto pela doutrina da Privatio boni, ou seja, da idéia do mal apenas como privação do bem, tanto quanto pela idéia de Deus como Summum Bonum, isto é, totalmente bom. Idéias essas que influenciaram toda a cultura Ocidental.
Esse sonho parece compensar a cisão que se deu na divindade Cristã, resgatando uma coniunctio oppositorum, melhor dizendo, uma antinomia interna total em Deus.
A cliente, após este sonho, entrou em contato com um problema profundo, apresentado não racionalmente, que é a relação entre o homem e a Sombra de Deus. Ou seja, aqui, a questão que se coloca é a do Mal Absoluto preexistindo em Deus. Em termos psicológicos, inicia-se uma profunda relação dialética entre o Ego e a Sombra do Arquétipo do SI-Mesmo.
Segundo Jung4, é bem possível que o indivíduo possa reconhecer o aspectorelativamente mau de sua natureza, isto é, confrontar-se com a Sombra Pessoal ou com a Sombra Coletiva, mas defrontar-se com o absolutamente mau, ou seja, com a Sombra Arquetípica, representa uma experiência ao mesmo tempo rara e assustadora. A O mal é uma realidade e não é possível desembaraçar-se dele por meio de eufemismo, de negação ou de projeção, por isso é necessário aprendermos a conviver com ele. E, ainda, como diz Jung: “o Diabo quer participar da vida, mesmo que até a hora atual, ainda é inconcebível como isso será possível, sem maiores danos.”5
Jung também reconhece que há algo intrínsico ao próprio Si-Mesmo que não se coaduna, não se relaciona, e que, fundamentalmente, não se submete a uma hierarquia. Considerar o Si-Mesmo apenas como o centro ordenador da psique é deixar “escapar” este aspecto sombrio do próprio Si-Mesmo, que é o diabólico, o suicida, o terrorista, etc. Ou como diz Hillmann: “atrás da escuridão reprimida e da sombra pessoal (…) existe a sombra arquetípica, o princípio do não-ser, que foi chamado e descrito como o Demônio, o Mal, o Pecado Original, a Morte, o Nada.”6
Isso nos faz pensar nas palavras de Jung quando ele diz ter esperança que o homem possa, APESAR do mal, libertar-se Deo concendente (pela Graça de Deus), ou seja, obter o impossível que só é possível por Graça. Da mesma forma que Jó, que, após ter esgotado racionalmente suas tentativas para compreender seu sofrimento, abandona-se à antinomia divina dizendo: “(…) meus olhos recorrem a Deus, desfeitos em lágrimas, para que Deus defenda o homem diante de Deus”. 7
A partir daquele primeiro sonho, outros vieram, e o Diabo não mais deixou a cliente em paz até que lhe déssemos a devida atenção, até que dialogássemos com ele, até que o acolhêssemos e o entendêssemos. Soubemos, então, que o Diabo tem seus motivos, e podemos afirmar, agora, que eles são bem legítimos.
A questão da existência ou não do Diabo, enquanto uma entidade externa, real, no sentido literal, perdeu, então, a razão de ser. Pois que se tratava, com efeito, e que efeitos!, da experiência emocional com ele. Com isso nos limitamos a confirmar a terrível presença da fenomenologia do Diabo na vida e nos sonhos dos homens; sua relaidade transcendental, enquanto realidade psíquica; a evidência de sua sacralidade, e o significado psicológico correspondente a profundos conflitos internos que ele vem representar.
Na compreensão psicológica de Jung, os enunciados religiosos, tais como Deus, Diabo, Espírito, constituem uma realidade psíquica que não se pode duvidar, pois são a expressão de afetos autônomos da alma. Falamos, então, não da existência do Diabo literalmente, mas sim de um fenômeno que tem seu quantum de energia psíquica, ou afeto, constelado num complexo, desligado da consciência, que podemos observar somente através de símbolos ou imagens organizados a partir de estruturas arquetípicas. A imagem do Diabo é sempre uma projeção da experiência emocional, vivida no momento de uma confrontação e uma tensão entre opostos, criada por uma cisão psíquica, e que tem uma função psicológica.
Percorreremos, então, a imagem do Diabo, tal como um espírito ou um daimon, cuja existência jamais poderá ser provada no mundo exterior, nem ser conhecida por via racional.
Jung recomenda que esse daimon, que foi traduzido por demônio sob a influência dos valores cristãos, não seja tomado neste sentido, mas sim, no sentido do vocábulo grego usado por Diotima, quando se dirige a Sócrates, no Symposium de Platão, correspondendo, então, a um poder determinante, sem consciência, que vem ao nosso encontro, tal como o poder da Providência e do destino. Ficando as decisões éticas, resultantes dessa confrontação, relegadas ao próprio homem.
Assim também se faz necessário explicar que o termo espírito é empregado no Oriente com uma conotação metafísica, mas que, no Ocidente, desde a Idade Média, ele perdeu esse sentido e, posteriormente, se diferenciou a partir do pensamento de Kant, filósofo este que influenciou Jung em algumas de suas idéias.
Jung diz: “A psicologia não os considera [os espíritos] como possuidores de valor absoluto, nem também lhes reconhece a capacidade de expressar uma verdade metafísica”.8
Jung nos diz, ainda, que “os enunciados religiosos são uma espécie de confissão da alma, os quais (…) têm suas raízes em processos inconscientes e (…) transcendentais.”9
Ao utilizar o termo transcendental, Jung baseia-se em Kant, referindo-se àquilo que torna possível o conhecimento da experiência e não vai mais além da experiência, diferindo do termo transcendente, que alude ao que se encontra mais além de toda experiência, é incognoscível e, portanto, inominável.
Jung, tal como Kant, nos fala da falta de meios intelectuais que nos permitam verificar a existência de algo transcendental, pois que “a imagem e o enunciado são processos psíquicos que não se confundem com o seu objeto transcendental”.10 Os processos psíquicos não produzem o objeto transcendental, simplismente o indicam. Dito isto, concluimos que menos meios teríamos, ainda, para conhecer o transcendente. Vemos, então, que Jung trabalha com conceitos tais como: o Inominável, Deus, Diabo, Espírito, Realidade, Verdade, como transcendentais, no sentido kantiano, e não num sentido absoluto. Jung constata também o quanto é reduzida a nossa capacidade de representação e as limitações e pobreza de nossa linguagem para apreendermos esses conceitos na sua realidade última.
Encontramos no filósofo Alain Badiou idéias que corroboram as de Jung a este respeito. Sobre a Verdade Alain Badiou diz: “Que a verdade não tenha potência total significa (…) que a língua-sujeito, produção do processo de verdade, não tem poder de nomeação sobre todos os elementos da situação. Deve haver ao menos um elemento real (…) que permanece inacessível às nominações. (…) Chamaremos esse elemento de o inominável de uma verdade.”11
Mais importante ainda, para a nossa discussão, é percebermos a aproximação das idéias de Jung e desse filósofo acerca, não da existência ou não do Mal ou do Diabo no sentido absoluto, mas sobre a origem do Mal, quando Badiou diz que “toda a absolutização da potência de uma verdade organiza um mal.”12
Jung nos ensina sobre as estruturas arquetípicas, que estas são potencialidades, como o arquétipo do Si-Mesmo, e que este, apesar de constituir a potencialidade da totalidade da psique, não é possível ser apreendido enquanto tal. Sabemos com Jung, que só podemos apreender partes ou aspectos do Si-Mesmo quando estes se constelam na consciência. Se entendemos Deus como uma representação desse arquétipo total, podemos considerar o Diabo como o Todo em forma de parte, ou mesmo, a expressão daquela parte que ficou fora do Todo. Dito isto, nos parece, então, que o Diabo não é, em si, o Mal, mas um mal é criado dependendo de como nos relacionamos com qualquer das potências arquetípicas inconscientes. Quando tomamos, por exemplo, a parte pelo Todo, aí se cria um mal.Além do que, com isso, nos aproximamos do perigo da inflação, ou seja, em função da possessão pela hybris, o homem possuído por uma imagem de totalidade corre o risco de entrar num estado de inflação.
Ao pesquisarmos sobre o Diabo, estamos irremediavelmente ligados à religiosidade e à idéia de Deus, contudo, restringimo-nos à idéia de divindade formulada pela religião judeu-cristã.
Como nos diz a historiadora Karen Armstrong: “Sempre que um conceito de Deus deixou de ter sentido ou importância, foi discretamente abandonado e substituído por uma nova ideologia. (…) Apesar de sua transcendência, a religião é muitíssimo pragmática.”13
Acompanhamos as teorias de Jung, a partir de seus estudos sobre o processo da metamorfose nessa divindade judeu-cristã, e compreendemos como esta metamorfose antecipa uma transformação histórica, na consciência ocidental. Através das mudanças ocorridas em Javeh, da criação de um Deus cristão e da atualização desse Deus, na figura de Cristo, o homem acreditou vislumbrar a totalidade da divindade. Ã primeira vista, pode parecer que os homens haviam se libertado das trevas, do inconsciente, mas o que surgiu foi um monoteísmo unilateral: Deus havia se despojado de seus elementos sombrios e nefastos e se tornara o Summum bonum.
O Mal, era, inicialmente, deflagrado pela mão esquerda de Javeh, além do que, o próprio Javeh operava através de inversões tais como a exigência à Abraão para que matasse o próprio filho Isaac, desobedecendo o mandamento “não matarás”; ou como na história de Jacó, onde este, ludibria seu irmão Esaú, e também o pai. Ele luta contra um anjo durante toda a noite e é ferido na coxa. Jacó exige ao anjo que se revele, este o abençoa, então Jacó vê a sua face e vê que é Deus. Com isso, tornou-se um iniciado e recebeu um novo nome: Israel, que significa, aquele que lutou contra o Senhor.
É com esses homens que Deus fará uma aliança, os terá como “o filho eleito” e dará sua proteção. Mas não nos enganemos, pois a natureza dessa aliança com Deus significava responsabilidade, não privilégio. Ou seja, num nível psicológico, essas experiências requerem uma atitude moral do indivíduo que com elas se relacionam. Nas palavras de Jung: “o critério da ação ética não pode consistir no fato de que aquilo que é considerado bom tome o caráter de um imperativo categórico; inversamente, o que é considerado mau não deve ser evitado de modo absoluto.”14
Goethe parece ir ao âmago da questão ao confessar jamais ter ouvido falar de um crime que ele mesmo não fosse capaz de cometer.
Acompanhamos esse jogo de inversões como um exercício fundamental para que não nos esqueçamos e não nos mantenhamos rigidamente acreditando apenas em um dos lados de qualquer história.
Em uma das passagens mais interessantes do livro O Evangelho Segundo Jesus Cristo15, o romancista português José Saramago, apresenta-nos um diálogo entre Jesus, Deus e o Diabo numa barca em alto mar. Jesus ao perguntar ao Diabo se é mesmo verdade que ele, com a finalidade de levar os homens à tentação, atormentava suas pobres vidas, obtem do Diabo a seguinte resposta: “Mais ou menos, limitei-me a tomar para mim o que Deus não quis, a carne, com a sua alegria e a sua tristeza, a juventude e a velhice, a frescura e a podridão, mas não é verdade que o medo seja uma arma minha, não me lembro de ter sido eu quem inventou o pecado e o seu castigo, e o medo que nelas há sempre.” Além do que, Saramago inverte que seja o Bem algo de Deus, e o Mal, do Diabo, quando, ao continuar o diálogo, Jesus pergunta à Deus: “Com quanto de sofrimento e de morte se pagarão as lutas que, em seu nome e no meu, os homens que em nós vão crer travarão uns contra os outros?”. E Deus desfia inúmeros feitos terríveis: atrocidades, carnificinas, torturas, perseguições, guerras, assassinatos e mortes; que, em nome Dele ou pelas suas próprias mãos, já teriam havido e continuariam ocorrendo ao longo da história da humanidade.
Percebemos nesses confrontos entre o homem e essas entidades tais como Deus, anjos, e o Diabo, a presença do numinoso, e a busca de significação que esse conflito moral impõe.
Jung diz que o problema da moralidade e da ética se apresenta psicologicamente ao homem quando, por um lado, ele tem que refletir e agir de acordo com um julgamento moral que esteja em concordância com sua própria consciência, e por outro, estar em relação com as exigências supra-ordenadas do Si-Mesmo, que é capaz de fazer as mais arbitrárias e penosas solicitações. Ele enfatiza que por trás da ação de um homem não se encontra nem a opinião pública nem o código moral, mas a personalidade da qual ele ainda é inconsciente.E é por ela, por esta personalidade inconsciente, que o homem terá que responsabilizar-se.
1Tema Livre apresentado no V Simpósio da Associação Junguiana do Brasil, realizado em setembro de 1997, em Belo Horizonte, M.G., baseado na Dissertação O Diabo Fascinosum apresentada ao Instituto Junguiano do Rio de Janeiro como requisito para obtenção do título de analista no mesmo ano.
2OTTO, Rudolf. O Sagrado. Ed. Edições 70. Série Perspectivas do Homem. RJ. 1992. Pg 49.
3APUD, Guimarães ROSA, in O Sertão Místico de Rosa. Caderno Mais do Jornal Folha de São Paulo. SP.30/06/96.
4JUNG, Carl Gustav. Aion. Vol.IX/2 das Obras Completas. Ed. Vozes. RJ. 1986. Pg 08.
5JUNG, Carl Gustav. Memórias, Sonhos e Reflexões. Ed. Nova Fronteira. 6a Edição. RJ. 1984. Pg 284.
6APUD James HILLMANN, in Ao Encontro da Sombra, Connie ZWEIG e Jeremiah ABRAMS (Org.). Ed. Cultrix. SP.1991. Pg 150.
7JUNG, Carl Gustav. Resposta à Jó. Vol. XI/4 das Obras Completas. Ed. Vozes. RJ. 1979. Pg 10.
8JUNG, Carl Gustav. Psicologia da Religião Ocidental e Oriental. Vol. XI das Obras Completas. Ed. Vozes. 1983. Pg 481.[O grifo é nosso].
9JUNG, Carl Gustav. Resposta a Jó. Vol. XI/4 das Obras Completas. Ed. Vozes. RJ. 1979. Pg 02. [O grifo é nosso].
10JUNG, Carl Gustav. Resposta a Jó. Vol. XI/4 das Obras Completas. Ed. Vozes. RJ. 1979. Pg 05.
11BADIOU, Alain. Ética – Um Ensaio sobre a Consciência do Mal. Ed. Relume-Dumará. RJ. 1995. Pg 94.
12BADIOU, Alain. Ética – Um Ensaio sobre a Consciência do Mal. Ed. Relume-Dumará. RJ. 1995. Pg 93. [O grifo é nosso].
13ARMSTRONG, Karen. Uma História de Deus: Quatro Milênios de Busca do Judaísmo, Cristianismo e Islamismo. Ed. Companhia das Letras. SP. 1994. Pg 10.
14JUNG, Carl Gustav. Memórias,Sonhos e Reflexões. Ed. Nova Fronteira. 6a Edição. RJ. 1984. Pg 284.
15SARAMAGO, José. O Evangelho Segundo Jesus Cristo. Ed. Companhia das Letras. SP. 1992. Pgs 380 e 386.

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