OUTONO INVERNO, UMA VIAGEM NAS SOMBRAS

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OUTONO INVERNO, UMA VIAGEM NAS SOMBRAS[1] Walter Boechat[2]

“Mas onde há perigo, cresce
O que salva também”.
Hölderlin

A peça Outono Inverno de Lars Norén é uma viagem invernal pelas sombras do inconsciente coletivo. A trama da peça descreve os obscuros recônditos de uma família a partir de um diálogo à mesa de jantar. Os pais e as duas filhas conversam a princípio de forma trivial, depois aprofundando gradativamente em seus conteúdos recalcados do inconsciente familiar em um diálogo fortemente temperado a álcool, elemento mediador de antigos conteúdos esquecidos.
A mãe Margareta fálica, dominadora, controla as ações e as falas de forma absoluta a princípio. O pai médico Erick, melancólico, verga-se sob o peso de um corpo obeso, culposo e excessivamente passivo. A filha mais nova Ewa mostra o dinamismo aparente das pessoas realizadas, mulher inserida na modernidade segundo a cartilha da tecnologia burguesa: múltiplos afazeres, sucesso profissional, inteligente. Suas graves questões emocionais somente emergirão com o decorrer da peça. A filha mais velha Ann é o personagem chave da trama pois encarna os núcleos não-resolvidos de toda a família e suas falas movimentam e trazem dinamismo a todo o grupo.
Do ponto de vista da psicologia de profundidade, a peça tem enorme interesse, pois fala do efeito catártico que a figura chamada bode expiatório tem no contexto de uma família ou de qualquer grupo. Toda família tem sempre um elemento que depositário daquilo que Jung chamou de sombra do grupo, dos conteúdos não aceitos e recalcados. Ann personifica o bode expiatório, ou como Laing denominou, o elo mais fraco do grupo.
Preferimos o termo bode expiatório[3] por ele ter fortes referências históricas e culturais; o que se passa na família descrita por Lars Norén são acontecimentos vividos pela humanidade desde que o homem se agrupa em sociedades tribais. A vivência do bode expiatório, le boucle émissaire, a necessidade de depositar as culpas da coletividade em um indivíduo para que elas sejam expiadas, tem origem tanto hebraica quanto grega.
Primeiramente, a origem hebraica: nas tribos judaicas no deserto, as culpas coletivas eram em tempos antigos depositados em dois bodes: um era queimado em sacrifício, outro enviado para o deserto, o bode expiatório, para ser oferecido ao demônio Azazel, o inimigo de Jeová. Assim eram purgadas as culpas da comunidade.
Na Grécia arcaica, era comum o ritual da exposição da criança, crianças indesejáveis ou defeituosas. A exposição está ligada ao nascimento mágico, no mito dos heróis. Tal foi o caso de Édipo, exposto no monte Citerão[4], Perseu lançado ao mar logo ao nascer e Atalanta, amamentada por uma ursa na montanha-e mesmo o menino-Jesus na manjedoura em Belém. Tais representações mitológicas, mostram a criança como Bode expiatório e como Phármakos, verdadeiro remédio expiador de culpas coletivas.
O que pretendo dizer como estas amplificações histórico-culturais é que o mecanismo psicológico da escolha de um bode expiatório em um grupo é uma defesa psicológica arquetípica, profundamente entranhada no inconsciente coletivo. As famílias se organizam já com este arquétipo estruturado, descrito de forma tão dramática na peça de Norén.[5] Percebemos a importância do bode expiatório na figura da filha mais velha Ann. É tachada de louca, desajustada, atacada por falar o que pensa à medida que confronta os outros com questões cada vez mais chocantes: a princípio suas dificuldades financeiras bem maiores que seus pais ou irmã podiam supor, pois ainda não tinham tido tempo ou condições afetivas para olhar um pouco para fora de si. Depois suas questões sexuais, sua solidão, seu abandono, seu sofrimento, seu passado esquecida pelos pais… Aos poucos a vida de Margareta e Erick é envolvida no turbilhão de memórias e suposições sofridas de Ann.
Ouvir a mensagem do bode expiatório é um desafio para todos porque ele é um emissário da sombra recalcada no inconsciente. Sua voz não é sua voz pessoal, mas a voz de um espírito familiar esquecido que pede justiça. Percebemos aos poucos – e nisso parece-me residir a vitalidade da peça de Norén – que o elemento familiar que mais parece doente é na verdade o mais sadio. Pois nele reside, na verdade, a única possibilidade de salvação, de renovação, pois ele estando no sofrimento, ele trás as graves questões para serem confrontadas e elaboradas.
Lembramos como nunca os versos de Hölderlin:
“Mas onde há perigo, cresce
O que salva também”.
O grupo será capaz de elaborar as graves questões que o bode expiatório trás para o confronto? Isso já é outro problema. Norén deixa a questão em aberto. Como sempre acontece nestas situações, após longos anos de recalque e apatia o grupo usa das mais variadas defesas para manter sua organização, principalmente a negação. Após tudo isso, o bode expiatório não tolerando mais sua condição de portador da sombra familiar, faz um acting out da sombra, expressando verdades que durante anos foi um portador solitário, pelo menos mais consciente. A família, temendo uma desestruturação, pode usar uma defesa radical como expulsão do membro indesejável para nunca mais vê-lo, por não tolerar a sombra que é chamada a confrontar. Ou então procurando confrontar ou entender os conteúdos novos que o bode expiatório trás subitamente para a consciência do grupo, a família pode se esfacelar, se fragmentar, por não tolerar os conteúdos que advém ao confronto de todos.[6] Na peça em questão em sua descida máxima ao reino das sombras, Ann chega mesmo a evocar um incesto com Erick. Este admite que ele por sua vez tinha uma relação idílica, idealizada com sua própria mãe e vivia sempre procurando-a em Ann, sua filha. Essa evocação de memórias antigas trás alívio a Ann, quando Erick admite essas questões além de trazer uma dinâmica nova ao grupo. Margareta reage de forma surpreendente, saindo de sua aparente e rígida segurança, falando de sua solidão. Queixa-se da incapacidade de amar de Erick, de seu ensimesmamento e excesso de trabalho. Revela, para a surpresa de todos, a vivência de um amor secreto que a revitalizou.
Logo após ocorrem as revelações finais de Ewa, ela própria não tão eficaz e perfeita em sua persona tão bi-dimensional e adaptada. Pelo contrário, a rígida persona é, como sempre vestimenta para encobrir uma sombra devastadora, no caso de Ewa, um casamento em frangalhos e uma incapacidade biológica de ter filhos que a faz rejeitar ferozmente seu corpo.
Compreendemos porque o vinda do bode expiatório nem sempre é bem aceita, porque ele é tão rejeitado: suas verdades são dolorosas e quase impossíveis de ser integradas em certas situações. A família no caso chega ao limite da desestruturação porque se organizou com o passar dos anos com um grande núcleo cindido, não integrado aos valores conscientes. Os valores coletivos aceitos, são na maioria dos casos, construídos de forma unilateral, à custa de muita repressão de valores. O bode expiatório personifica esses valores.
Tenho observado que a maioria das pessoas que me procuram em consultório para uma análise com vistas a um processo de auto-conhecimento, dentro daquilo que Jung chamou de processo de individuação, i.é., a realização da totalidade da personalidade, de suas potencialidades genuínas, estas pessoas são, de uma forma ou de outra, bodes expiatórios em suas famílias, vivem em seu microcosmo o drama de Ann em sua forma particular. Porque aqueles que estão identificados com os valores da coletividade, que desejam realizar o que se espera deles não procuram a individuação porque não sofrem, serão eternos fils a papa. Já outros têm a demanda do que realmente querem, o seu daimon[7] interior, estão sós, são os pharmakói, procuram se transformar, e assim transformar o seu grupo.
Será que Ann se transformou, entrou em processo de individuação, como chamou Jung? Parece-me que Norén retrata as tentativas de um aprendizado de uma caminhada. Quando uma pessoa como Ann começa a caminhar, seu grupo sofre as influências de suas tentativas. Mas a família de Ann é extremamente doente e cindida em seus valores conscientes. O sistema familiar reage a estas mudanças como um todo. Ann, como elemento identificado da família iniciou seus primeiros passos em sua individuação, o sistema familiar, em seu todo energético consciente e inconsciente tenta se re-organizar para manter a homeostase. Quem vai ocupar o lugar de Ann como bode expiatório já que ela não aceita mais este papel e está se movendo em direção à sua individualidade? As agudas queixas de Ewa- a filha mais nova- talvez nos dêem uma pista, Ewa talvez seja o elemento do sistema a manter o todo em equilíbrio, já que Ann iniciou seus passos rumo a individuação.
À pergunta que me é feita se num próximo encontro, no mês seguinte, essa família será a mesma só posso responder que não, graças aos efeitos de transformação que o bode expiatório leva toda a família a sofrer pela reflexão. Mesmos os elementos mais petrificados, os pais, interrogam-se em diferentes momentos, já para o final da peça, como se não se reconhecessem mais, numa ameaça de despersonalização. Este desafio lançado por Ann é bom, de certa forma, mas Norén termina seu drama de forma aberta e bastante pessimista, em meu entender.
O final melancólico de luz crepuscular sobre os personagens idosos afasta perspectivas muito otimistas para a família. A vida luta contra a estagnação, Ann demonstra a qualidade da procura da vida, o pai Erick demonstra os perigos da petrificação. Não por acaso a peça termina sobre ele, representante não da lei, do logos, da estrutura do pai, mas da submissão lamentável ao destino.
Rio de Janeiro, 20 de junho de 2006.
Walter Boechat.
Notas
1. O trabalho é base de material apresentado no programa de Sérgio Britto na TV Educativa Arte com Sérgio Britto, no qual foi debatida a peça Outono Inverno, De Lars Norén, Direção de Eduardo Tolentino de Araújo. Em Cartaz no CCBB-Rio de Janeiro, de Junho a agosto de 2006. [voltar] 2. Walter BOECHAT. Médico, diplomado Instituto C.G. Jung Zurich, Suíça, Doutor, Instituto de Medicina Social / UERJ, Membro-Fundador Associação Junguiana do Brasil- AJB, Especialista em Medicina Psicossomática (IMPSIS/RJ), Coordenador do Curso de Pós-Graduação em Psicologia Junguiana do IBMR/RJ. Contato: walter.boechat@gmail.com.br [voltar] 3. Sylvia Brinton Perera, O complexo de bode expiatório. S.Paulo, cultrix, 1990. [voltar] 4. Daí seu nome Oidipós, “o de pés inchados”, por ter sido dependurado pelos pés perfurados em uma árvore. [voltar] 5. Os terapeutas familiares sistêmicos da escola de Palo Alto preocuparam-se também com essa estrutura pela qual um elemento da família se torna o elo mais fraco e o chamam de elemento identificado. [voltar] 6. No conhecido filme “Segredos e mentiras” do diretor inglês Mike Leigh acontece uma perigosa solução de confronto na qual uma mãe branca traz uma filha negra ilegítima desconhecida até então para um almoço de aniversário de uma outra filha branca. A macro-família consegue se reestruturar graças a atuação de um membro sadio catalisador. [voltar] 7. Emprego Daimon no sentido socrático, o Spiritus Rector, a voz interior que nos indica o caminho a seguir. Penso que Ann está possuída pelo seu Daimon, por mais neurótica e descontrolada que esta possessão possa parecer. [voltar]

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