Psicologia em transição
Walter Boechat
A Editora Vozes prossegue a tarefa ampla e de grande importância para o meio acadêmico e cultural brasileiro, a tradução das obras completas de C.G. Jung. É uma empreitada das mais difíceis, pela extensão e amplitude de assuntos abordados pelo fundador da psicologia analítica.
Os trabalhos publicados de Jung abrangem desde suas conferências, quando ainda estudante no século passado, no clube universitário suíço Zofingia, as chamadas conferências Zofingia, até suas últimas reflexões, pouco antes de falecer, aos oitenta e seis anos de idade, em 1961.
Estes escritos ocupam vinte grossos volumes (aí incluídos um de índice geral, outro de bibliografia) da edição anglo-americana, isto sem contar dois volumes de correspondência completa e seus diversos seminários sobre variados assuntos, sobre a filosofia de Nietzsche (os seminários “Zaratustra”) os seminários sobre sonhos, outro sobre Kundalini Yoga e outros, que agora começam também a ser editados pela primeira vez em inglês.
O aparecimento do volume X das obras completas, traduzido diretamente do original alemão é mais um passo que a Vozes dá para editar toda a obra completa de Jung. “Psicologia em Transição” (“Civilização em Transição” seria uma tradução mais acurada), ocupa um lugar de maior importância entre os escritos de Jung por tratar de assuntos polêmicos mas de importância capital: o papel do indivíduo em relação à sociedade.
Ao contrário da edição da obra de Freud que obedece o critério puramente cronológico, dentro da evolução diacrônica do pensamento do criador da psicanálise, a obra completa de Jung segue um critério temático. O volume X agora apresentado ao público brasileiro trata da psicologia dos povos pré-letrados, o papel da mulher na sociedade européia, o obscuro fantasma do nazismo e suas conseqüências para a civilização. Aborda ainda de forma original, o problema dos “discos voadores”, que são entendidos como um “mito moderno” uma projeção coletiva resultante dos conflitos do humanidade ameaçada pelo holocausto nuclear.
A problemática das duas guerras mundiais é o tema predominante dos escritos coletados neste volume. No primeiro deles, Sobre o Inconsciente, publicado em 1918, Jung aborda uma questão central de todos estes escritos, a problemática da dissociação, para o autor, central na psicopatologia dos indivíduos e das nações.
Jung, ao refletir sobre as conseqüências terríveis da primeira grande guerra para a psiqué coletiva do europeu, procura também as causas da destrutividade e do comportamento selvagem de culturas em sua aparência, ou a nível de sua persona coletiva, tão sofisticadas como a alemã, por exemplo.
Neste ensaio Jung diz textualmente: “o cristianismo dividiu o barbarismo germânico em sua metade inferior e superior e conseguiu assim- pela repressão do lado mais escuro- domesticar o lado mais claro e torná-lo apropriado à cultura. Enquanto isso, porém, a metade inferior está esperando a libertação e uma segunda domesticação. Mas até lá, continua associada aos vestígios da pré-história, ao inconsciente coletivo, o que significa uma peculiar e sempre crescente ativação do inconsciente coletivo. Quanto mais a visão cristã do mundo for perdendo sua autoridade incondicional, mais perceptivelmente a “besta loira” se agitará em sua prisão subterrânea, ameaçando sair, e assim, trazendo conseqüências catastróficas. Este fenômeno acontece no indivíduo como revolução psicológica, mas pode também manifestar-se sob a forma de fenômeno social.”(parágr.17)
Jung escreveu as palavras acima em 1918! Elas soam hoje em dia como uma lúgubre profecia, que infelizmente, cumpriu-se integralmente na segunda guerra mundial.
O problema do nacional-socialismo e da psicologia coletiva alemã é extensamente tratado em outros ensaios deste volume. Em Wotan, escrito em 1936, a psicose coletiva que já começava a se configurar em território alemão é descrita a partir da imagem arquetípica de Wotan, deus nórdico das tempestades, da inspiração e da guerra, entre outros atributos.
Procurando caracterizar dentro do referencial arquetípico a nuvem obscura que já toldava os céus europeus, Jung lembra neste texto que quando há o domínio da massa, o indivíduo cessa de comportar-se de forma adequada, regida pelos cânones que até então orientavam sua consciência. Dominam estão os arquétipos do inconsciente coletivo, com conseqüências imprevisíveis.
A explicação que o autor procura para a efervescência social é inteiramente original, mas de uma clareza absoluta. Quando percebemos que Wotan é o deus germânico da possessão, e que possui os guerreiros “berserk”, homens-fera que combatem em estado alterado de consciência, começamos a entender a abordagem de Jung, feita a partir de uma imagem arquetípica do inconsciente coletivo.
Wotan é um deus de possessão, que possui seus adeptos guerreiros, assim como seu primo Dioniso possui as Mênades. Haverá forma mais adequada para descrever a tormenta que se desencadeava no inconsciente coletivo alemão?
O fenômeno da psicose de massa é o extremo da anulação do poder decisório do indivíduo, que passa a se comportar como um cifra, um fator numérico qualquer na multidão que segue o primeiro “ismo” de algum um movimento coletivista, seja o capitalismo radical, seja o comunismo, ambos questionados por Jung.
Daí ser o processo de individuação o eixo central do constructo teórico de Jung, pois é o processo pelo qual o indivíduo procura realizar seu potencial pessoal latente a nível do arquétipo central, ou o Sí-mesmo. Em individuação, o indivíduo não é necessariamente solitário, mas perfeitamente solidário.
Em seu ensaio Depois da Catástrofe (1945) Jung prossegue em sua avaliação diagnóstica da psicologia coletiva alemã, que tão bem antecipara desde 1918 em Sobre o Inconsciente, Wotan e diversos outros trabalhos, a maioria reunidos neste volume X das obras completas.
O problema central agora tratado é o da culpa coletiva. O psicólogo suíço considera que todo o alemão é culpado, perante a Europa, assim como todo o europeu, numa perspectiva mais ampla, é culpado perante a humanidade, diante da enormidade da catástrofe que se abateu sobre a Europa.
Como lembra Jung, “Platão já sabia que a visão do feio provoca o feio na alma”. A culpa coletiva é uma “fatalidade trágica”, atingindo a todos, justos e injustos, todos aqueles que de alguma forma se achavam nas proximidades do crime.
O que Jung aqui refere nos parece semelhante à noção grega arcaica da Hamartia, a falta ou erro, que nunca é atribuida ao indivíduo isolado, mas como Míasma, (“mancha que se espalha”) contamina todo o grupo familiar ou Guénos. Esta psicologia arcaica na qual a noção de responsabilidade individual é extremamente tênue, fez com que Génos inteiros se destruíssem, crimes vingando crimes de parentes do mesmo Génos, assim como até hoje acontece em certas regiões do interior nordestino. (Junito Brandão, Mitologia Grega, vol. I).
Na cultura atual, a sofisticada noção de códigos legais e de ética é sugada pela psicose de massa, que tudo anula, transformando os indivíduos em serviçais de alguma força arquetípica do inconsciente coletivo, seja o mito da raça superior, ou do herói, cuja figura arquetípica foi projetada no Führer ou no Duce Benito Mussolini.
Quando toda a nação está desagregada social e economicamente, como a Alemanha após a primeira grande guerra, ela se torna especialmente suscetível a todo tipo de projeção arquetípica do tipo messiânico e soteriológico. Como escreve Jung: “Não foi fácil contemplar como toda a Alemanha respirou aliviada quando um psicopata megalomaníaco disse: ’Eu assumo a responsabilidade’ “.
Na verdade este é o diagnóstico dado a Hitler, além de ter o líder nazista acentuados traços de pseudologia fantástica, isto é, uma marcante mitomania, com crença absoluta em suas próprias mentiras. Entretanto, se esta é a personalidade capaz de comover e liderar toda uma nação, é porque ela encarnou forças do inconsciente coletivo deste povo, pelo menos em dado momento histórico.
Na psicopatia, assim como na histeria, Jung nos lembra, ocorre uma enorme dissociação da Sombra, uma cisão que leva fatalmente a constantes e perigosas atuações (“acting out”). “E quando não é mais possível negar o mal, surge o ’super-homem e o herói’ que se enobrece pela envergadura de suas metas”.
Nunca é desnecessário ressaltar que estas reflexões de Jung sobre as projeções do herói messiânico numa sociedade dilacerada política e economicamente se aplicam perfeitamente à história recente do Brasil, que assistiu inclusive ao processo de impedimento de um presidente.
Jung procura entender todos estes fenômenos que afetam o homem civilizado ocidental, usando mesmo o parâmetro transcultural, a partir da convivência que teve com povos assim chamados primitivos. Na verdade, os atos colonialistas de agressão que o homem branco chamado civilizado cometeu contra os povos pré-letrados são inumeráveis.
Um chefe pueblo amigo de Jung, certa vez lhe disse que todos os brancos eram loucos. Jung considera que esta constatação não é de se surpreender, pois o homem civilizado ocidental, desde o iluminismo, reabsorveu todas as projeções psíquicas, que em forma de deuses, habitavam a natureza. Retiradas estas projeções, houve uma gradual inflação psíquica, bastante visível a partir do século XVI.
Posteriormente ocorreu, não sem dificuldades, a gradual descoberta do inconsciente, mas com a fantasia de que os fantasmas e demônios haviam terminado. Mas os deuses não morreram, e negados e reprimidos no inconsciente coletivo Europeu, retornaram de forma patológica, tanto no indivíduo quanto na cultura.
A conferência que Jung proferiu em Londres em 1946, A Luta com a Sombra, forma junto com os artigos Wotan e Depois da Catástrofe uma trilogia central neste volume, pois disseca as implicações da invasão de arquétipos do inconsciente na consciência de todo um povo.
Neste trabalho, Jung se reporta à sua pesquisa com sonhos, onde detectou motivos mitológicos repetidos, as imagens arquetípicas. Analisando pacientes alemães após a primeira grande guerra, percebeu nos sonhos individuais símbolos coletivos e mitológicos não assimilados, e que se repetiam em grande número de pacientes. Não integrados, estes símbolos atrairam outros semelhantes, em atração magnética. A derrota e a calamidade social reforçaram também o instinto gregário na Alemanha, favorecendo a massificação e a psicose social.
A problemática da Sombra ocupa papel central nas guerras e na psicose social, pois nestes casos, é o indivíduo que se torna incapaz de confrontar sua própria Sombra, num processo subjetivo, preferindo o meio mais fácil e confortável da projeção e o da identificação com a massa.
Hitler personificou a Sombra de todo alemão, seu lado menos diferenciado, como personalidade psicopática e incapaz que era. Isto favoreceu mais ainda o processo de envolvimento da coletividade.
Para Jung, a grande esperança futura reside nas democracias ocidentais, onde o teatro político é o local social adequado para o confronto com a Sombra dentro de um processo dialético criativo.
A ênfase de Jung para tentar explicar como o homem chamado civilizado se torna presa das forças transpessoais do inconsciente coletivo baseia-se na questão da dissociação com perda de raízes, e no problema da identificação inconsciente do indivíduo massificado com valores coletivos pouco recomendáveis. O problema da perda de raízes é abordado na conferência Alma e Terra, de 1927, a identificação inconsciente, dentro de uma abordagem transcultural, é tratada em O Homem Arcaico, de 1930.
Em Alma e Terra, Jung defende a idéia de que a psiqué é “um sistema de adaptação determinado pelas condições ambientais da terra.” As viagens que fez aos Estados Unidos, bem como o fato de ter tratado analiticamente vários americanos, o levaram a constatar a enorme influência cultural do negro e do índio no americano branco, independentemente de qualquer miscigenação.
O tipo Yankee é por Jung considerado tão semelhante ao índio, que chegou a pensar em uma de suas viagens, ao observar um grupo grande, que nele haviam vários descendentes de índios. Foi informado posteriormente que não era o caso, tratava-se puramente de uma influência cultural, psicológica.
A influência negra é considerada também marcante: “o modo de rir inimitável de Roosevelt”, o peculiar modo de andar gingando as ancas, típico da mulher americana, o prazer no “bate-papo”, o temperamento vivaz, dificilmente teriam origem nos ancestrais europeus.
Existe, portanto, no americano uma tensão entre um nível de cultura na consciência e um primitivismo inconsciente, que quando bem aproveitado dota-o de um entusiasmo e um espírito de iniciativa dificilmente encontráveis num europeu.
Na verdade, o americano partilha a sorte de todo usurpador de um solo estrangeiro. Alguns aborígenes australianos, lembra Jung, crêem que não se pode conquistar uma terra estrangeira, porque nela habitam estranhos espíritos ancestrais que reencarnariam nos recém-nascidos. Jung considera que há grande verdade psicológica nesta afirmação, pois a terra estranha assimila o conquistador. Este fenômeno psicológico também aconteceu, sem dúvida, com os conquistadores da América Latina, nossos antepassados. Alienar-se do inconsciente bem como de seu condicionamento histórico é sinal de falta de raízes, condição inicial para a neurose do homem ocidental moderno.
O ensaio O Homem Arcaico é um brilhante exercício de demonstração de como o homem assim chamado primitivo está presente no homem da sociedade complexa. Este trabalho se reveste de um interesse especial, pois é todo baseado em experiências pessoais do autor em suas viagens à África, entre os nativos do monte Elgonyi ou entre os índios norte americanos, os Pueblo.
Jung cita com frequência o antropólogo francês Lévy-Bruhl, que viveu no século passado. Sabemos que as idéias de Lévy-Bruhl estão inteiramente ultrapassadas, assim como todos aqueles antropólogos que se filiaram à chamada corrente do evolucionismo cultural, como Tylor e Fraser. Assim como Freud, que foi influenciado por idéias hoje superadas de R. Smith que escreveu “A Religião dos Semitas” detendo-se sobre o significado da assimilação ritual do totem, também Lévy-Bruhl teve alguma influência sobre Jung.
Entretanto, lendo O Homem Arcaico, percebemos que Jung procura enfatizar idéias exatamente opostas às de Lévy-Bruhl. A tônica do texto é a defesa da idéia de que o chamado homem primitivo está vivo no homem dito moderno, em suas crenças, superstições e pensamento mágico. Ao contrário do antropólogo, Jung lembra com muita propriedade que o pensamento do homem pré-letrado não é “pré-lógico”, como aparentemente parece ser, mas apenas seus pressupostos são diferentes dos nossos. Partindo de pressupostos diferentes, suas conclusões são naturalmente diferentes das do homem dito civilizado.
A noção de “participation mystique”, uma identidade íntima que o pré-letrado experimenta com a natureza, não é um atributo único seu, mas também nosso, em certas circunstâncias. Basta lembrar as psicoses coletivas que mencionamos acima para perceber nelas, situações de intensa “participation mystique” ou participação inconsciente de todo um grupo social.
Portanto os termos cunhados por Lévy-Bruhl “participation mystique”, “pre-logique” perdem seu sentido nesta abordagem de Jung.
O fascinante no ensaio O Homem Arcaico é que estas considerações vêm sempre acompanhadas de exemplos vivos da interação de Jung em suas viagens, seja com os nativos africanos do monte Elgonyi, seja por seus diálogos com seu amigo, o chefe indígena pueblo “Lago da Montanha”.
Seria praticamente impossível nesta resenha nos determos sobre todos os vinte e quatro trabalhos de Jung em Psicologia em Transição, alguns deles de grande fôlego. Entretanto, gostaria de lembrar uma importante reflexão de Jung, no ensaio O Que a Índia nos Pode Ensinar, a partir de viagens que fez àquele país:
“Com o tempo, os deuses viraram conceitos filosóficos. Buda, um pioneiro espiritual do mundo todo, disse e tentou mostrar sua veracidade: que o homem iluminado é o professor e redentor até mesmo de seus deuses (não seu estúpido negador como pretende o ’iluminismo’ ocidental)….. O fato de Buda conseguir tal compreensão sem perder-se numa completa inflação mental beira o miraculoso (mas todo gênio é um milagre).” (par. 1003)
Não terá sido este processo que Jung sempre procurou realizar com sua psicologia analítica? Isto é, não negar os deuses, como fez o iluminismo no ocidente, mas percebê-los como potencialidades do inconsciente coletivo, os arquétipos, com os quais o sujeito pode interagir dentro de um processo dialético, a individuação?
* texto escrito em agosto de 1994 e publicado na Revista de Cultura Vozes.