Quando o sapo vira Eros

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Quando o sapo vira Eros
Por Sabina Vanderlei

Psicóloga (CRP 05/29830), Especialista em Psicologia Junguiana IBMR, Mestranda em Filosofia UERJ. Contato: sabinavanderlei@gmail.com
Rio de Janeiro, 5 de novembro de 2007.

Esta “tentativa” de crônica-artigo foi alucinada ao som do “Requiem”, de Mozart, quando a autora deste pseudo-texto se deu conta dos seus idos vinte anos e de que com eles se foram (ou pelo menos deveriam ter ido) as ilusões da juventude ou os “famosos óculos cor-de-rosa”…
Homem ideal? Toda mulher tem, não adianta negar, mentir, fugir ou disfarçar! É biológico! Desde que o mundo é mundo, as fêmeas sempre buscaram os “melhores” machos, aqueles que, por algum motivo, mais lhe chamavam atenção. Seja o mais bonito, o mais forte, o mais inteligente, o mais rico, o mais poderoso, o “mais sarado”, o bom de cama… Não importa, todas sempre escolhemos e sempre escolheremos, seja no nível das fantasias inconscientes, seja conscientemente.

Vale tudo na hora da escolha: mapa astral, simpatias, tarô, Santo Antônio… As mais modernas chegam a apelar para agências de matrimônio, salas de bate-papo, Orkut e outras opções ainda mais escusas. Tive oportunidade de conhecer cada um desses casos e, eu juro, vi pelo menos um em cada um deles funcionar! Então, vocês perguntam: como fazer dar certo? Por que com uma dá certo e com a outra não?
Homens reclamam que mulher é um “bicho complicado” e somos mesmo! Somos feitas de uma outra substância, somos predominantemente femininas e, arquetipicamente, o feminino é regido pelo princípio do Eros, que é o princípio de ligação, o amor, aquele que gera e mantém a vida.
Existem inúmeras narrativas mitológicas que discorrem acerca do encontro entre o masculino e o feminino e, neste texto, escolherei o mito de Eros e Psique, que mostra alguns aspectos simbólicos sobre esta relação. A história é comprida e vou me deter em um ponto específico dela. No final deste texto sugiro uma pequena bibliografia para quem quiser ler a história completa, bem como outras análises já feitas acerca deste mito.

Psique, termo grego que designa “alma” ou “sopro de vida”, era o nome de uma princesa tão bela e tão graciosa que os homens deixaram de render culto à deusa Afrodite para colocarem oferendas em frente à casa de Psique. Afrodite ficou tomada de ciúmes e instruiu seu filho, Eros (Cupido) para ajudá-la na tarefa de punir tamanho atrevimento daquela simples mortal.
Aqui no início desta narrativa já conseguimos ver as raízes mitológicas da concorrência feminina pela vaidade. Qual mulher nunca chegou numa festa e não metralhou uma outra que estaria atraindo mais olhares masculinos? E qual mulher não roeu as unhas ao ver o lindo vestido novo da amiga, o sapato, o corte de cabelo… Desde sempre, mulheres acotovelam-se frente ao espelho, numa eterna disputa pela beleza e graciosidade. Antes mesmo de ir “à caça”, antes mesmo de procurar o seu par ideal, o primeiro obstáculo da mulher é o próprio feminino, ou seja, mulher sempre compete com mulher. Em termos psicológicos isso significa que a mulher deve, em primeiro lugar, se olhar, se enxergar, se amar. Ninguém nasce se amando, este é um processo gradual, uma conquista dia-a-dia. Vale lembrar aqui que Afrodite, dentre vários outros atributos, possui a beleza, do qual é tida com deusa. Existe o aspecto positivo disso, que é a auto-estima e o amor-próprio saudáveis; mas também existe o aspecto negativo, que é a inveja, vingança e competitividade doentias, por exemplo.

Voltando ao mito, o pai de Psique, angustiado com as constantes recusas de sua filha em escolher um homem para se casar, decidiu consultar um oráculo. Afrodite, furiosa, aproveitou a oportunidade e interferiu na profecia, usando o oráculo em sua vingança. Por intercessão da deusa, o oráculo ordenou ao pai de Psique que a conduzisse até um rochedo, onde um monstro horrível a tomaria como esposa. O plano de Afrodite não pararia por aí: Eros flecharia Psique para que ela se apaixonasse pelo terrível monstro, completando, assim, a terrível vingança divina.
Eros, porém, ao ver Psique, ficouabobalhado com tamanha beleza e se feriu, por descuido, com uma de suas flechas, apaixonando-se perdidamente pela princesa. Suas flechas eram usadas com o propósito de fazer as pessoas por elas atingidas se apaixonarem subitamente, nem mesmo os deuses imortais escapavam do seu veneno. Foi assim que Eros se apaixonou pela moça a quem deveria destruir por ordem da sua própria mãe. O deus-cupido, tomado de paixão, salva Psique antes que ela seja desposada pelo monstro e também sem que sua mãe saiba. Ele leva Psique, desfalecida, para um suntuoso castelo e a deixa sob os cuidados de inúmeros criados, cercada de luxo. Suas instruções foram claras: ele a visitaria todas as noites e iria embora ao amanhecer, mas ninguém jamais poderia saber a verdadeira identidade dele, ninguém jamais faria perguntas. Psique aceita, resignada, pois qualquer vida seria melhor do que ser desposada por um monstro. Apesar de não saber quem era seu misterioso marido, ela era muito bem tratada e assim permaneceu feliz e satisfeita, vivendo no seu “faz-de-contas”, sem nada questionar.
Percebemos aqui o aspecto infantil do feminino, que tanto espera por um lindo amor, tanto sonha, tanto idealiza e nunca o encontra. E justamente é este ponto do mito que eu gostaria de salientar. Por que a princesinha nunca encontra o seu amor ou, quando o encontra, por que ele não dá certo? Porque se trata de um amor idealizado por um psiquismo ainda imaturo, ainda inexperiente, que ainda precisa passar por algumas experiências para, então, vivenciar esta relação de forma plena e real. A condição de amor idealizado do início da trama mítica é temporária, pois ela abre uma possibilidade para que aconteçam algumas experiências indispensáveis para que o verdadeiro amor aconteça, mas os egos infantis não querem esperar (crianças nunca esperam mesmo), por isso sofrem.
Psique representa, inicialmente, esse feminino imaturo, ainda inconsciente, qua ainda não desabrochou, que precisará se confrontar com o masculino (Animus) para amadurecer, ou melhor, para individuar-se. Mesmo após as núpcias, ela continuou adormecida, pois, ao olhar pro outro lado da cama, só via a escuridão. Não reconhecia o homem com quem se deitava, porque também não se conhecia enquanto mulher. Conhecer o sexo não implica em maturidade psicológica. Corpo e mente nem sempre estão em acordo.
Conta o mito que Psique viveu feliz por muito tempo daquela maneira, com todo o conforto e luxo que qualquer mortal poderia desejar, porém, inconsciente de si e da identidade do seu parceiro. Ela sentia saudades dele, que só lhe aparecia ao cair da escuridão da noite, mas ela ainda estava disposta a aceitar tudo sem reclamar. Este estado de inconsciência é comum, é o estado no qual todos nós estamos ao nascer e a grande meta da nossa vida é, segundo a Psicologia Analítica de Jung, despertar para nosso verdadeiro Eu. Para saber a melhor escolha para nossas vidas é preciso, antes, saber quem somos nós!

Jung dizia que todo corpo emite uma sombra e, em termos psicológicos, isso significa que todos nós temos nosso lado obscuro, povoado de sentimentos e pensamentos que negligenciamos na nossa vida consciente, mas que constituem a nossa personalidade global. Neste mito, a sombra aparece personificada nas figuras das invejosas irmãs de Psique, que cobiçavam a boa vida dela por ter tido muita sorte em ter escapado da terrível profecia oracular. As duas irmãs começaram a lançar suspeitas e a fazer intrigas para Psique, sugerindo que o marido misterioso poderia ser um monstro disfarçado.

Psique cedeu às intrigas, se deixou contaminar por estes elementos sombrios e decidiu que iria espiar o marido à noite para tentar descobrir sua verdadeira identidade. Esperou que ele adormecesse, levantou-se da cama, acendeu uma lâmpada de óleo e encarou seu rosto. Ao invés de um monstro, Psique viu o homem mais bonito do mundo. Impressionada com tanta beleza, sem querer ela se espetou numa das flechas de Eros, jogadas aos pés da cama e, na confusão, deixou cair-lhe na face um pingo de óleo fervente. Psique, então, apaixonou-se perdidamente pelo jovem deus e este, ao despertar com a dor da queimadura, recriminou-a por sua desobediência e ingratidão, voou para longe, enfurecido, deixando-a inconsolável.
Considero este o ponto crucial da narrativa. A luz da lâmapada é a luz da consciência, é quando a princesa enxerga pela primeira vez o seu marido, o seu aposento matrimonial e, principalmente, enxerga a si própria! Esse “eu” que ela enxerga não é aquela queridinha-do-papai e a donzela mais cobiçada do reino. O que ela vê agora é a mulher casada, Senhora do seu lar. Porém, nenhuma tomada de consciência é totalmente pacífica e Psique chora, porque Eros, magoado com a traição, vai embora e ela se vê sozinha.
Antes ela vivia a solidão da inconsciência de si e agora vive a solidão da consciência. O mito prossegue: Psique tenta se entender com a sogra, Afrodite, que lhe impõe quatro tarefas sob a condição de não ser perdoada. Uma delas, a última, é a descida ao Hades, o Mundo dos Mortos, o Inferno. Não é à toa que o imaginário popular atribui à sogra qualidades sempre tão negativas! Após realizar as quatro tarefas, Psique se entende com a sua sogra, se reconcilia com Eros, adquire a imortalidade e volta a viver com seu marido, como a Rainha do seu lar e de sua própria vida.
Quando Psique acende a lâmapada para conhecer seu marido, há vários símbolos atuantes aí. Em primeiro lugar, a sombra teve um importante papel nessa tomada de consciência. Muitas vezes, é necessário que algo nos incomode muito para que consigamos tomar alguma atitude significativa em prol de uma mudança, caso contrário, a tendência é nos mantermos acomodados. E mudar nem sempre é fácil.
Ao mesmo tempo em que Psique teve que enfrentar o seu medo e encarar seu marido, ela também sofre a desilusão de constatar que ele não era, nem de longe, o que ela idealizava. Mesmo sendo ele um deus, ele não era o monstro terrível que ela temia e nem era o príncipe encantado dos seus sonhos de mocidade. Ao iluminar a face do seu marido, ela iluminou a realidade e quando abrimos os olhos, quando despertamos, nos des-iludimos (o movimento inverso), mesmo quando a realidade perante nós é considerada “boa”.
Isso acontece porque o apego às fantasias do inconsciente é forte, pois ele age como um imenso buraco negro dentro de nós, atraindo para si tudo ao redor. Jung acreditava que o inconsciente sempre tenderá a permanecer inconsciente e é por isso que nos apegamos tanto às nossas fantasias, por isso é sempre tão difícil exergar a realidade diante de nós, por isso é tão difícil o processo de amadurecimento.
Viver no mundo das fantasias é maravilhoso, porque é cômodo, tudo ocorre como nós planejamos. Até mesmo os percalços, nas fantasias, são manipulados por nós e isso no coloca numa posição privilegiada de total previsibilidade. Nada nos surpreende e tudo está sempre em seu devido lugar. Porém, ao constatar que existe uma realidade concreta fora de nós, somos tomados de pavor, deprimimos, fugimos, negamos… ou, então, podemos escolher colocar os pés no chão e caminhar neste novo mundo real!
Antes de Psique conhecer a verdadeira identidade do seu marido, ela vivia num paraíso, mas também vivia na inércia e no total desconhecimento de si e de tudo que a cercava. A questão aqui é delicada: é necessária mesmo a aquisição de consciência? Por quê? Para quê?
Tudo que é vivo nasce, cresce, amadurece, reproduz-se e morre. O ritmo da vida é pulsante, a roda gira incessantemente, ninguém consegue conter este fluxo. E nós não podemos esquecer que também somos natureza e, se nascemos inconscientes de nós mesmos, a nossa tendência é que um dia este estado mude também, de alguma forma. É neste contexto que Jung dizia que a mente possui uma estrutura a priori, ou seja, antes da experiência. Quando nascemos, não sabemos como será a nossa vida, mas sabemos que o fluxo da vida seguirá em direção à expansão e à totalidade.
A consciência é o que nos põe em contato com o mundo real, com tudo o que nos cerca e, principalmente, com o momento presente. Ninguém vive isolado e uma pessoa inconsciente de si vive cercada de projeções fantasiosas, ou seja, em vez de se relacionar com pessoas, ela se relaciona com espectros de si-mesma projetados nos outros. Um exemplo: uma mulher não veria uma amiga com o novo vestido bonito, mas sim uma mulher que ousou ter um vestido mais bonito que o seu. Daí se seguem muitos desentendimentos, porque o mundo concreto nunca é igual às nossas fantasias, sejam elas positivas ou negativas.

O mesmo vale para os casamentos: homens e mulheres não enxergam apenas seus cônjuges; em muitos casos o que acaba prevalecendo são as projeções dos seus ideais. Como a vida segue sempre seu fluxo, volta e meia uma gota de óleo fervente lhes cai sobre a face, uma luz se acende e um ser estranho aparece ao seu lado no leito matrimonial.
Restam apenas duas perguntas: Quem é você? e Quem é a pessoa com quem você deciciu dividir a sua vida? Se você não souber responder a primeira pergunta, dificilmente responderá a segunda.
Bibliografia sugerida:
JOHNSON, Robert A. She – A Chave para o entendimento da Psicologia Feminina. São Paulo: Mercuryo, 1987.
JUNG, Emma. Animus e Anima. Tradução Dante Pignatari. São Paulo: Cultrix, 1995.
NEUMANN, Erich. Amor e Psique: uma contribuição para o desenvolvimento da Psique feminina. Tradução Zilda Hutchinson Schild. São Paulo: Cultrix, 1990.
SHARMAN-BURKE, Juliet & Liz Greene. O Tarô mitológico. Tradução Anna Maria Dalle Luche. São Paulo: Arx, 2003.

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