Shine: O Brilho Excessivo e o Pai Devorador
Walter Boechat
Comentário ao filme “Shine”
Evento promovido por
Instituto de Medicina Psicossomática do Rio de Janeiro
Casa de Cultura Lauro Alvim
Novembro de 1997
O filme Shine descreve a história real do pianista australiano David Helfgott. O Diretor George Withers tece um roteiro comovente, à base de flashbacks, desde a infância de David, sua evolução musical, seu encontro com a loucura e a música de Rachmaninoff, sua restauração e relativa adaptação psicológica graças ao amor e à compreensão humana.
Para criar esse clima de passado-presente em contínuo intercâmbio até a volta à Austrália e o encontro final com o pai, Withers lança mão de três atores diferentes, para representar David criança, depois jovem e talentoso pianista e finalmente homem adulto.
A infância de David já é pontuada pela terrível figura de um pai devorador, que como o deus Crono da mitologia grega, devora seus próprios filhos logo após nascerem, isto é; impede que qualquer processo criativo se desenvolva próximo de si.
Logo após concurso de piano infantil na escola, quando David toca peça dificílima para sua tenra idade, uma Polonaise de Chopin, na verdade uma escolha ditada pelo orgulho de seu pai, sua genialidade chama a atenção. Na verdade David acaba por não vencer o concurso, por duas razões: a dificuldade de execução da peça, e a segunda, e mais importante, o fato de nunca ter tido um professor. Seu pai sempre o impediu de ter um, por pura inveja destrutiva.
Na verdade, o filme enfatiza o poder destrutivo do pai sobre o desprotegido David e sobre toda a família: o pai totalitário e repressor centraliza todas as decisões; reprime violentamente a mãe de David e suas irmãs, que são incapazes de qualquer ação independente.
No tocante a David, fica claro que toda sua promissora carreira fica comprometida pelo pai devorador. Aparentemente zeloso o pai, na verdade, oculta a todo o tempo uma profunda inveja destrutiva contra o filho. Se a mãe e as irmãs tornam-se figuras totalmente apagadas e temerosas da violência do pai, forma-se um outro triângulo: David, seu pai e o professor de piano, o sr. Rosen, que percebendo o talento nascente de David, tenta protegê-lo do pai.
O professor consegue penetrar por algum tempo na cápsula defensiva do pai, que finalmente cede e permite que seu filho tenha aulas, e seu desenvolvimento musical passa a ser mais bem orientado. David pode assim crescer musicalmente e chamar a atenção do meio musical.
O pai conta repetidamente sua estória para David. Julga que David é um rapaz de sorte, pois tem uma família. Não é como ele, que perdeu vários parentes na guerra e teve que tornar-se um refugiado judeu, para escapar ao holocausto. Particularmente, relata que sempre gostou muito de música e quis ter um violino. Para isso economizou muito. Seu pai, ao descobrir que comprara um violino, o destruiu, não permitindo que estudasse música.
Aqui a relação geracional das patologias mentais aparece de forma clara. O pai de David não resolvera bem seu complexo paterno, carrega consigo sua Sombra – como os junguianos denominam esse conteúdo não resolvido- e a projeta em seu filho.
A Sombra é um conteúdo indesejável para a consciência, sujeita a contaminações pela psiqué coletiva e facilmente projetável. Além disso, a Sombra está carregada de complexos mais ou menos defendidos, pouco accessíveis ao ego.
Não tendo elaborado sua Sombra, constituída de sofrimento, repressão, mortes e impossibilidades, é mais fácil para o pai de David construir um sistema de defesa baseado no orgulho, onipotência e racionalização, na qual o mundo é visto sob uma ótica distorcida.
Segundo a visão do pai de David, ele é o melhor dos homens, embora não tenha tido grandes oportunidades por causa dos desastres da guerra e, principalmente, de seu pai. Mesmo assim, julga-se um ser superior, pois conseguiu construir uma família, segundo ele, equilibrada. Em certo trecho do filme, começa a se comparar com o sr. Rosen: “Quem ele julga que é? Mora só, foi incapaz de construir uma família sólida como eu. Ele não é uma pessoa confiável…”
Entretanto, o pai de David não consegue impedir seu gradual crescimento musical sob a orientação segura de um profissional, que muito o admira. Chegamos na estória de David ao ponto culminante de seu período infanto-juvenil: há um convite para morar nos EUA, convite formulado pelo famoso violinista Isaac Stern; o prefeito e a comunidade locais promovem fundos para que David deixe a Austrália para ir para os EUA.
Nesse instante, fica clara a inveja do pai: após uma aparente concordância com a partida de David; mesmo após o recebimento de uma carta na qual uma família americana se dispõe a recebê-lo, o terrível pai- Crono se manifesta, jogando a carta ao fogo, com a argumentação de sempre: “você é um rapaz de sorte, tem uma família”, e ainda: “se você for para a América, vai destruir sua família…”
Mesmo com a insistência do sr. Rosen, a repressão do pai predomina. A cena chocante na qual David defeca na banheira, ilustra um quadro de intensa regressão, acentuado pela violentíssima e repugnante agressão física por parte do pai.
David só será capaz mesmo de fazer uma tênue oposição ao pai mais tarde, quando é ajudado pela doce sra Katherine, que conheceu numa homenagem dada pela Sociedade Franco-Soviética. David é levado a esse local pelo pai, que critica os americanos, por não serem como ele, por nunca terem sofrido.
Entretanto o contato com Katherine, o feminino criativo, acaba por ser altamente estruturante para David. Katherine conta sua estória: escritora, filha de escritor, seu pai nunca lhe dava atenção, mergulhado em seus escritos. Expulsava-a mesmo de seu estúdio, onde escrevia.
Certa vez, Katherine, enchendo-se de coragem, derruba o pote de tinta de escrever sobre os escritos do pai. Percebeu nele um olhar de grande ódio, mas só assim pode desafiá-lo e superar o pai devorador. Hoje diria: “aquele foi meu primeiro ato criativo”.
Katherine consola David com sua própria estória, e lhe dá certeza que poderá também superar o pai.
Uma abordagem psiquiátrica clássica da psicopatologia de David é impossível, pois o filme não nos fornece dados como incidência prévia de psicose na família e outros dados epidemiológicos que são importantes na avaliação de um quadro psiquiátrico.
Após o surto psicótico ao terminar o concerto no 3 para piano e orquestra, de Rachmaninoff, em Londres, ficamos sabendo que David se submeteu a seções de ECT e tratamento psiquiátrico. Foi, entretanto, capaz de voltar para a Austrália, onde seu pai o recusa a vê-lo.
A internação psiquiátrica se segue, mostrando um David apresentando sintomas evidentes de uma psicose afetiva. Uma enfermeira diz em certo trecho do filme que David apresenta os sintomas de uma psicose esquizofrênica, diagnóstico com o qual não concordamos. A verborragia é acompanhada de um humor exaltado, com comunicação extremamente fácil. David exerce mesmo uma intensa sedução sobre as pessoas; é carinhoso, abraça e beija homens e mulheres. Não há sinal da vida normalmente interiorizada presente nas esquizofrenias.
Mas a psiquiatria tradicional deixa sua marca negativa no filme, quando os médicos proíbem David de tocar piano, pois seria esse dinamismo que pioraria seu estado mental. A estória- que é real – demonstra o contrário, pois a música acaba por ajudar David em sua organização psíquica, e ao final, embora não haja cura completa, há uma melhora e uma acentuada adaptação ao meio social.
Uma questão delicada se coloca, desde o início da estória de David: seria seu pai-devorador, capaz de ativar uma psicose em seu filho, pela intensa repressão e proibição? Sem dúvida é temerário dizer que sim, pois uma psicose envolve fatores genéticos, disposição familiar e muitos outros elementos, além da psicodinâmica familiar.
O filme dá particular ênfase à relação pai-filho destrutiva, mas a chamada disposição individual não deve ser deixada de lado. A ênfase única na psicodinâmica pode levar pais a uma culpabilização nem sempre cabível, em situações de psicoses onde apenas o meio e situação emocional não podem responder isolados por estados de tamanha gravidade.
Do ponto de vista simbólico, o pai de David representa o patriarcalismo típico de nossa cultura judaico-cristã em sua forma mais perversa. Eu o chamo pai Crono pois é Crono (ou Saturno) que devora seus filhos ao nascerem. Durante toda a trajetória de David quem o salva é o feminino, quando presente e atuante. Sua mãe e suas irmãs estão mergulhadas no ventre do pai devorador, e pouco fazem para seu resgate.
Katherine é o elemento ativo que retira David temporariamente do pai e o leva aceitar o convite da Real Academia de Londres. As luvas que lhe dá são um objeto transicional importante nesse ritual de iniciação.
O feminino é elemento fundamental no processo criativo; em literatura os franceses do século passado a chamaram la femme inspiratrice, os gregos na antiguidade já prestaram culto às Musas, produtoras da criatividade, filhas de Zeus e Mnemósine, a deusa memória.
Somente a criatividade poderia ajudar David a elaborar o pai Devorador; na linguagem mítica dos arquétipos junguianos só através da Anima, do feminino no inconsciente, pode o homem elaborar o pai negativo. Aqui a criatividade se opõe nitidamente ao que Freud chamou de compulsão de repetição, a essência da pulsão de morte.
O feminino vai reaparecer na figura de Silvia, que o abriga em seu restaurante, e por acaso vem a descobrir seu talento pianístico. Mesmo a figura da terapeuta ocupacional que se espanta que tão famoso pianista freqüente sua sala de terapia ocupacional no hospital, já prefigura o encontro com Silvia e, mais tarde, com sua futura esposa, a astróloga amiga de Silvia.
O filme coloca em oposição nítida, dois polos arquetípicos da vida humana: criatividade x patologia.
Há um certo nível de identificação David/Rachmaninoff. Após o fracasso de sua Sinfonia no 1, seguido de uma frustração amorosa, Rachmaninoff mergulhou na esterilidade da não-criação, em perigosa estagnação. É atribuído a um psiquiatra russo, Mikhail Dahl, ter ajudado Rachmaninoff a reencontrar sua criatividade; após depressões e perigosos câmbios de humor, toda a claridade criativa do compositor reapareceu em seu genial concerto para piano e orquestra, no 2. O de no 3, entretanto, que Rachmaninoff estreou em triunfal viagem aos Estados Unidos, é o de maior dificuldade de execução, principalmente em seu movimento final.
Sergei Rachmaninoff foi um dos maiores compositores de nosso século, e, sem dúvida, um dos maiores pianistas de todos os tempos. A estória verídica de David Helfgott nos ensina muito da criatividade musical de Rachmaninoff, mas principalmente de relações humanas; como a compreensão e o afeto podem restaurar fragmentos de personalidade destroçados pela incompreensão.