Símbolos e Arquétipos na Literatura e na Arte

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Símbolos e Arquétipos na Literatura e na Arte
Cleone Augusto Rodrigues

“L’art est à l’image de la création.
C’est un symbole, tout comme le monde terrestre
est un symbole du cosmos.”
(Théorie de l’art moderne, P. KLEE)

“L’art ne reproduit pas le visible; il rend visible.”
(Id. ibid.)

“L’affinité générale des œuvres entre elles qui,
au lieu d’avoir diminué, a été renforcée au cours
des millénaires, ne réside pas dans l’écorce des
choses, mais dans la racine des racines, dans le
contenu mystique de l’art.”
(Du spirituel dans l’art, W. KANDINSKY)

Resolvi começar com estas citações, que marcam tão bem o essencial da arte de todos os tempos e, especialmente, o espírito da arte dita moderna. Mas gostaria de dar a este adjetivo tantas vezes repetido por todos nós, moderno, o valor que lhe é atribuído por Baudelaire. Para ele, modernidade é “o transitório, o fugitivo, o contingente, do qual a outra metade é o eterno e o imutável”, que, segundo entendo, seria “a raiz das raízes”, “o conteúdo místico da arte”, elemento essencial da afinidade existente entre as obras de arte de todos os tempos, como nos diz Kandinsky.
Num trabalho sobre Baudelaire e Delacroix, Leyla Perrone-Moisés comenta: “o que Baudelaire chamava (“Le peintre et la vie moderne”, 1893) aí modernidade não era um determinado momento histórico, mas apenas o momento contemporâneo de qualquer pintor, fosse ele renascentista ou oitocentista. Mas como, no mesmo estudo, ele aponta aspectos essenciais de seu próprio momento histórico, a palavra modernidade aí acaba por ganhar um significado específico.” 1

As considerações inspiradas a Baudelaire por reflexões de Delacroix (reconhecido, a partir de Baudelaire, como o grande pintor do Romantismo), em suas Questions sur le beau e Les variations du beau, nos estimulam a passar através de várias “modernidades”, até chegarmos ao nosso século já quase findo.

Vamos então voltar muito atrás, ao tempo da caverna, a fim de revermos desde aí forças básicas do humano, o mundo arquetipal, e o surgimento do símbolo. Pois ele aparece quando aparece a humanidade, e aquele primeiro momento foi, de fato, sua idade de ouro. Depois, com o progresso do pensamento racionalista, o símbolo recua e se enfraquece, mas não morre. Socializado, racionalizado, ele se transforma em signo. Vê-se, portanto, que o símbolo se encontra estreitamente ligado à alma primitiva, para a qual tudo que a cerca tem vida, pulsa, fala. Para a qual o homem constitui parte integrante do cosmo.
Como se sabe, quanto mais primitiva é uma sociedade, mais indiferenciados são seus componentes. Portanto, esta sociedade se caracteriza pelo conformismo. Segundo afirma Lévy-Bruhl, nela, singularizar-se é expor-se. Quando vive numa sociedade assim, o indivíduo é mais, no sentido próprio da palavra, um membro de um corpo. Falta ao primitivo o senso histórico, bem como o espírito crítico. Deste modo, torna-se muito fácil a manutenção dos privilégios das classes dominantes, graças à inviolabilidade dos costumes, impostos por elas. O único dado de que dispõe o primitivo é de ordem sensível. O não-civilizado crê porque vê. Possui, assim, muitas almas: a do corpo, a da respiração, a da vida, e um princípio distinto que sobrevive a tudo isto. Mas esta atitude do não-civilizado possui também sua lógica, ainda que incipiente: ele crê porque vê, e já exerce um certo controle sobre suas percepções.
De qualquer modo, prevalece nitidamente entre eles e o mundo este parentesco místico (a “participação mística”), em que os presságios, vistos por Lévy-Bruhl como signos e causas eficientes, se multiplicam.
Cabe, no entanto, reconhecer, seguindo os que de perto estudaram este assunto, que entre os primitivos, assim como entre nós, a atitude do espírito é essencialmente idêntica. Ela revela “uma natureza experimental”. Varia apenas o grau de luz. Como os costumes têm uma força extrema entre os primitivos, as démarches do espírito param subitamente neles, qual uma espécie de bloqueio, até (ou sobretudo) como autodefesa, a fim de se evitarem rupturas e conseqüentes punições, ou a recusa do grupo. Mas sua atenção está sempre acordada, e observa o insólito.
Este é, suponho, o grande ponto comum entre o primitivo e o poeta (digo poeta no sentido amplo, de poiesis – o artista em geral): o estar acordado para o insólito, que se esconde tantas vezes sob as aparências do trivial. Também o artista, mais do que em geral se pensa, está intrinsecamente ligado a uma cultura e a uma sociedade, mas é no substrato do inconsciente coletivo, onde repousam ou se exasperam os arquétipos, que encontra a força e o canto ou o grito que o fazem viver e morrer, num equilíbrio sempre instável (como todo equilíbrio), ou num desequilíbrio às vezes fatal, ao mesmo tempo em que, assumidamente ou não, colabora para evitar a estagnação desta mesma cultura ou sociedade.
Não vamos caminhar, e sim dar um salto enorme, e logo estaremos no século XIX, na França . Eis-nos incrustados num mundo bem diferente daquele em que o tronco é um homem, e o homem sofre as dores de um tronco ferido. Estamos num momento complicado da História, e num país de grande evolução cultural, extremamente sofisticado. Ali foi o centro do Iluminismo, e Descartes deixou em seu país e em toda a civilização ocidental sua marca indelével. Ou seja, o pensamento racionalista se impôs, mas não de forma absoluta.
Com a socialização crescente, a necessidade prática de comunicação foi levando muitos símbolos a se tornarem conceitos. Pois o símbolo é aberto, enquanto o conceito é objetivo. E o símbolo tomou também a forma de sinal. Isto se desenvolve enormemente numa sociedade como a que surge no início do século XIX, com a industrialização, que cria novos valores. Cada vez mais o ter e o parecer se sobrepõem ao ser. De modo geral, as pessoas se submetem de bom grado à nova ordem. Sob a capa da moral vitoriana, sucumbe o Humanismo. Tudo é pura exterioridade. Existe a euforia dos novos-ricos, a excitação do trabalho para sobreviver, que também aliena o operário, a exploração do homem pelo homem, sob mil pretextos honrosos, mas resta ainda a consciência de uns poucos. Entre eles, e talvez seja justo dizermos, sobretudo, de um grupo de artistas. Estes serão conhecidos como simbolistas, porque buscam traduzir as essências em símbolos, aproximando-se, tanto quanto possível, da linguagem musical. São belgas, ingleses, franceses, que, num movimento compensatório (segundo a visão junguiana), por uma simpatia aguçada e refinada, fugindo à perda de sentido da vida e das palavras, voltam ao período primitivo do animismo ingênuo, quando, na natureza, tudo possui vida, olhar e voz; onde, como afirmou um deles, o mundo real toma ares de magia.
O século XIX se caracteriza, na França, por uma extrema trepidação. Sete regimes políticos se alternam, quatro escolas literárias se sucedem, e muitas esperanças de grandeza e de glória se desvanecem. Os jovens, cheios de vida e sedentos de ação, perdem o sentido de sua existência. Numa sociedade baseada na produção, no lucro, na riqueza e na aparência, os artistas não têm muito o que fazer. Isto nos lembra um texto de Mallarmé, quando descreve o nascimento do primeiro artista, e indica ainda o que acontece depois: “No princípio, o homem saía a cada dia – este para a batalha, aquele para a caça; outro ainda para cavar e revolver a terra nos campos; – com o único fim de ganhar, de viver, ou de perder e morrer, até que se encontrou entre eles alguém diferente do resto, cujos trabalhos não o atraíam, e ele ficou perto das tendas, entre as mulheres, e, com um pedaço de madeira queimada, traçava estranhos desenhos numa cabaça.
Este homem, que não se alegrava com as ocupações de seus irmãos – que não se preocupava com a conquista, e se consumia no campo – este desenhista de bizarros modelos – este inventor do belo – que percebia, na natureza em torno, curiosas curvas – como se vêem figuras no fogo – este sonhador à parte, foi o primeiro artista.
E quando, do campo e de ao longe, voltaram os trabalhadores, eles tomaram a cabaça – e nela beberam.

E os séculos se passaram em meio a esses costumes, e o mundo foi inundado por tudo o que era belo, até que se ergueu uma nova classe que descobriu o barato e previu a fortuna na fabricação do falso.

E desaparecia a ocupação do artista, e o fabricante e retalhista lhe tomaram o lugar.2
Encontram-se aqui as características básicas do perfil psicológico do artista, assim como uma espécie de resumo histórico de sua condição até o advento da era industrial. Pois bem, é neste clima de desalento, sentindo-se inúteis e rejeitados, que vão nascer os chamados simbolistas.
Contra o realismo na arte (realismo que tem seu apogeu na escola naturalista), eles pregarão a busca do essencial, do invisível, do impalpável. Em vez de dizer, a obra de arte, em especial a poesia, deverá sugerir, semelhante à música. Toda idéia de representação é abolida em favor da sugestão. O contexto histórico hostil os empurra para a busca de um além, do espiritual, do mágico, do religioso, do Belo com letra maiúscula, o belo essencial, o belo da arte. Sentindo-se alijados pela sociedade, e impotentes para se imporem participando efetivamente da batalha da vida naquele nível de pragmatismo e competitividade, eles deixam sua marca na Terra através da obra de arte, que é seu campo de ação e seu protesto, sua forma de participar, enquanto, ao mesmo tempo, viram de costas para o mundo.
É claro que nenhuma cultura se cria do nada. Todo processo de individualização exige um confronto, e possui, seja de modo mais consciente, ou menos, seus modelos na busca do eu ideal (ou do ideal do eu). Baudelaire, figura basilar do Movimento Simbolista, é herdeiro do Romantismo e do Parnasianismo. É ele o grande ponto de convergência do passado com o presente e o futuro, e, nesta tensão, constitui a grande voz do novo. Sua poesia, recusando os excessos da Escola Romântica, já marcada em seu tom pelo pieguismo e pelos lugares-comuns, e recusando igualmente a rigidez marmórea do Parnasianismo, não escapa, no entanto, às marcas de sua origem. Mas delas de alça, vitoriosa, a novos cumes. E concentra toda a força e toda a angústia de momentos conflitantes na arte e no contexto social e político, em que o autor se insere como pessoa e como artista. Porém é daí, desta vida, com sua lama, com o próprio mal de viver, que realizará sua alquimia, alcançando o ouro de seu fazer poético. Influenciado pelas teorias de Swedenborg, deixa-nos como herança as suas Flores do Mal, das quais faz parte o poema “Correspondances”, que leremos daqui a pouco. Mas antes de o lermos, cabe sublinhar que todo o empenho dos simbolistas é contra a idéia de arte como representação, como imitação da realidade (ou do visível). Cabe à poesia sugerir; ela exige sensibilidade e busca. Trata-se de um campo místico, espiritual. A natureza é o ponto de partida, ela contém os elementos materiais básicos para a composição a ser realizada pelo artista, assim como dos ruídos do mundo os musicistas puderam criar um sistema de sons que lhes permitiu compor sinfonias.
Aliás, cabe lembrar aqui, o pensamento e a arte ocidental têm vivido sempre numa oscilação ou numa batalha entre Platonismo e Aristotelismo, ou seja, entre a visão que domina a Idade Média até cerca de 1200, e à qual se prende o pensamento de Santo Agostinho, ou à visão que prevalece a partir do século XIII, à qual se prende São Tomás de Aquino.
Vejamos, então, “Correspondances”:
La Nature est un temple où de vivants piliers
Laissent parfois sortir de confuses paroles;
L’homme y passe à travers des forêts de symboles
Qui l’observent avec des regards familiers.

Comme de longs échos qui de loin se confondent
Dans une ténébreuse et profonde unité,
Vaste comme la nuit et comme la clarté,
Les parfums, les couleurs et les sons se répondent.

Il est des parfums frais comme des chairs d’enfants,
Doux comme les hautbois, verts comme les prairies,
– Et d’autres, corrompus, riches et triomphants,

Ayant l’expansion des choses infinies,
Comme l’ambre, le musc, le benjoin et l’encens,
Qui chantent le transport de l’esprit et des sens.
Neste soneto encontramos, por conseguinte, a postura de Baudelaire diante da vida, e trata-se de uma postura ligada à corrente platônica. Mas, por certo, ele não pode viver o espírito sem passar pela matéria, não pode experimentar o “CONHECE-TE A TI MESMO” de Sócrates sem este conjunto de corpo e alma, de gravidade que puxa para a terra, enquanto, ao longe, vislumbra a Perfeição e o Absoluto, e anseia por asas que o levem para muito além. As asas que possui são as do espírito. E sente-se mortificado entre a percepção do Absoluto e a necessidade de se submeter ao relativo. Assim, neste poema encontra-se a idéia (que constitui título e corpo da composição) das correspondências entre os diversos campos e níveis da vida, e a de participação mística, hoje excepcional, no mundo que se diz civilizado. Portanto, o que era antes tão praticado, tão “natural”, tornou-se agora o requinte de uma elite artística – mais artística do que intelectual. A imagem básica da natureza como templo já traz a marca da religiosidade deste poeta do sagrado demoníaco, fascinado pela obscuridade, e, sedento, em busca de luz. Neste templo, “de vivants piliers” (vivos pilares) – os homens (poetas) – vivos pilares a serem decifrados, deixam, às vezes, escapar confusas palavras. O homem passa (o homem comum) através de florestas de símbolos (tanto na vida como no poema) – floresta a ser observada atentamente, para que se possa chegar a decifrá-la (função do poeta), e são os símbolos que observam o homem com olhos familiares. Em geral, as pessoas passam distraídas ou indiferentes, e nada vêem. Daí a importância do poeta, “medium” entre o homem comum, agarrado aos seus automatismos, à pretensa segurança de uma vida limitada ao racional, e esta floresta de símbolos, cheia dos murmúrios do inconsciente. Para penetrar neste mundo, que não se dá gratuitamente, são necessários sensibilidade e esforço. Estamos diante de uma ascese. A floresta de símbolos é o mundo, é a vida, é o poema. Estamos, pois, diante da relação entre microcosmo e macrocosmo. Como em Platão, o poema (ou o mundo) é a imagem remota, o pálido reflexo do mundo superior e primeiro, o mundo das Idéias. Todo o animismo dos primitivos e toda uma filosofia gnóstica aí se encontram mesclados.
Neste universo antropomorfizado, aparece a correspondência entre o círculo maior e o menor, ou seja, o macrocosmo (o universo) e o microcosmo (o homem). Ouvem-se ecos, longos ecos, que marcam, alongando-os, tanto o tempo como o espaço. E, com o espírito noturno do poeta (e do poema), que estão ligados à Grande Mãe, aos mundos subterrâneos da percepção intuitiva, estes ecos se confundem numa “ténébreuse et profonde unité”, unidade que abrange tudo, tanto a noite como a claridade. Justamente como era o mundo – o caos -, antes da divisão em noite e dia, em terras e mares. Antes que o corpo do filho deixasse de ser um só com o corpo da mãe, antes que a dolorosa cisão se consumasse. Antes que Logos dividisse o mundo em Bem e Mal, e Eros fosse expulso do Paraíso.
Temos, então, aí, dois adjetivos qualificativos: “ténébreuse” e “profonde”, que modificam “unité”. O primeiro vem de tenebrosus, a, um, o adjetivo latino, derivado, por sua vez, de tenebræ, arum, (trevas), e o segundo vem de profundus, a, um, derivado de profundum, i (profundidade), e significa lugar abaixo da superfície da terra ou das águas, qualidade do que vai ao fundo das coisas, além das aparências, do que é secreto, durável, forte (relativo à vida interior, aos sentimentos). Mas estes ecos marcam uma sinestesia (percepção simultânea: gr. sunaisthêsis – em vários domínios sensoriais), pois são os perfumes, as cores e os sons que se respondem. É, portanto, o emprego do verbo confundir–se no sentido de fundir-se, mesclar-se, tornar-se um só. Mantém-se, assim, a coerência da idéia básica do poema.
Nos dois tercetos do soneto, o poeta se fixa na análise dos diversos tipos de perfume, dos quais enumera alguns. Eles estão ligados ao olfato, o mais sensual dos três sentidos até aí presentes no poema, e encontrado com freqüência na poética baudelairiana (olfato, visão e audição). Parecia que sim. No entanto, sempre mantendo a coerência, ele desenvolve a sinestesia apontada no segundo quarteto. E liga a idéia de perfume à de frescor (imagem que faz parte da linguagem corrente), porém vai adiante, e sublinha o valor táctil deste frescor, pois o relaciona com carnes de crianças; depois, o perfume é doce, doce como o som dos oboés. Assim sendo, temos olfato, paladar, audição, mesclados nesta nova comparação, nesta imagem; é também verde como as pradarias: audição ligada à visão, o mais intelectual dos sentidos, aquele que maior distância mantém entre sujeito e objeto. Existem ainda outros sons, “corrompus, riches et triomphants”. Aparece aí, obsessiva em Baudelaire, a oposição entre carne e espírito, e ele tenta conciliá-los nesta correspondência entre os diversos níveis da vida. Assim, misturam-se, no segundo verso do último terceto, o âmbar, o almíscar, o benjoim e o incenso, perfumes ora mais ligados à sensualidade, como o almíscar, usado pelos dândis, ora mais à purificação, fazendo pensar sobretudo nos rituais religiosos, como o incenso, ao qual se acresce o poder purificador do fogo. Estes perfumes “cantam os transportes do espírito e dos sentidos”. Mas que seria do espírito sem a prova dos sentidos? Da Vinci, marcado por profunda espiritualidade, dizia que todo nosso conhecimento se origina de nossas percepções, de nossa experiência real. Não existe criação espiritual que não parta do corpo em sua busca de harmonia e de ultrapassagem de si mesmo. Separar o corpo da alma é viver unilateralmente, o que constitui base para a neurose. Eros e Logos têm que se complementar, dialogar. O espírito, em seus diversos campos, vem tirar o homem de seu mundo apenas instintivo; mas o instinto, tão arquetípico quanto o espírito, é o início do caminho. E então, a consciência, isto é, a consciência dos limites propostos, ou melhor, impostos pela dupla realidade em que todo ser humano é obrigado a viver, o torna propriamente um Homem. Isto significa tornar-se capaz de se ultrapassar, ou seja, de ir, literalmente, além de si mesmo; de estabelecer uma relação com o outro, buscando, ao mesmo tempo, sua individuação, a fidelidade ao self, que, no entanto, nunca está plenamente encontrado ou definido.
Outro poema ilustrativo da situação do poeta naquele momento da História da França é “L’Albatros”. Também nele aparecem imagens e símbolos que seria interessante analisar:
Souvent, pour s’amuser, les hommes d’équipage
Prennent des albatros, vastes oiseaux des mers,
Qui suivent, indolents compagnons de voyage,
Le navire glissant sur les gouffres amers.

A peine les ont-ils déposés sur les planches,
Que ces rois de l’azur, maladroits et honteux,
Laissent piteusement leurs grandes ailes blanches
Comme des avirons traîner à côté d’eux.

Ce voyageur ailé, comme il est gauche et veule!
Lui, naguère si beau, qu’il est comique et laid!
L’un agace son bec avec un brûle-gueule,
L’autre mime, en boitant, l’infirme qui volait!

Le Poète est semblable au prince des nuées
Qui hante la tempête et se rit de l’archer;
Exilé sur le sol au milieu des huées,
Ses ailes de géant l’empêchent de marcher.
Neste poema de quatro quartetos em alexandrinos, vê-se um navio com sua tripulação (“les hommes de l’équipage”). Como é que freqüentemente se divertem os homens desta tripulação? Aprisionando albatrozes, “vastos pássaros marinhos” que, qualificados pelo poeta como “indolentes companheiros de viagem”, “seguem o navio que desliza nos precipícios amargos”. Assim diz o primeiro quarteto.
Nestes primeiro versos, tem-se logo, sem intróito, a apresentação objetiva do que se passa. É o quadro de uma situação que se repete muitas vezes (“souvent”). Isto acontece como uma diversão. Opõe-se o homem ao animal; mas o homem, visto como pertencendo à terra, em oposição ao pássaro, habitante do céu. Nada se diz para qualificar o homem; no entanto, por sua atitude, podemos senti-lo como dominador, pequeno, sádico, mesquinho, cortando o vôo do grande pássaro. Ele aprisiona o albatroz, indolente companheiro de viagem. Este adjetivo indolente é muito importante, em toda sua ambigüidade. Pois se origina do verbo latino dolere, que significa sofrer. Indolência é o estado daquele que não sofre. Antigamente, indolência significava não causar sofrimento. Indolente é aquele que não sofre nem faz sofrer. Mas indolência também significava insensibilidade moral, indiferença. E, modernamente, desde o século XVII, quer dizer disposição para evitar o menor esforço físico ou moral; preguiça, apatia, inércia, languidez. Assim sendo, dois mundos se opõem neste quadro: o da ação, da força, do movimento (correspondendo aos tripulantes do navio), que se confunde com o da violência, da agressão, e o mundo da indolência (correspondendo ao pássaro), onde se vê o albatroz que plana, numa inércia aparente, sem esforço (=sem sofrimento) e sem fazer sofrer, e que, no seu vôo, parece indiferente ao mundo da Terra. Ou seja, eis ali, próximo aos homens de ação, um companheiro que não produz, um inútil.
No segundo quarteto, a tripulação coloca o pássaro nas tábuas do navio. Ora, mal isto acontece, o albatroz, antes, tão majestoso, com sua vastidão, força, claridade, leveza, elegância, em suma, beleza, tudo isto expresso por “rei do céu”, aparece desajeitado, envergonhado, tímido e humilhado. Suas grandes asas brancas, agora, sem função, causam dó, caídas assim, como remos que vão sendo arrastados. Vemos aí a insistência na estatura do pássaro, onde a física é, mais que nada, metáfora da moral, marcada pelos adjetivos “grandes” e “brancas”, em que o branco reforça a pureza e a leveza da ave. O contraste entre a situação inicial do pássaro, no céu, e a atual, é também enfatizada pela transformação da matéria, marcada pela degradação: ao invés de asas feitas de plumas, agora passamos a vê-las mortas, pesadas, completamente sujeitas à lei da gravidade, como remos de madeira. Do movimento livre e altivo de asas, chega-se ao estar/ser passivo de remos, conduzidos, dominados pelo homem.
No terceiro quarteto, desenvolve-se a imagem do albatroz, em seu confronto com a nova situação a que foi submetido: “Este viajante alado, como está/é desajeitado e fraco!” Hoje em dia, “veule” significa fraco, sem energia, sem fibra, desprezível. E continua o poema: “Ele, antes tão belo, como está cômico e feio!” Assim, nas circunstâncias atuais, transforma-se o sujeito/objeto. Vê-se que não existe a objetividade pretendida pelos realistas: a realidade é múltipla e instável. Neste mesmo quarteto, aparece a tripulação em sua zombaria do albatroz: um lhe irrita o bico, por meio de um cachimbo curto; outro, capengando, irrita o “infirme”, o mutilado que voava. Deste modo, mais uma vez, se reitera a marca da falta. E fica bem claro: é na terra que se faz sentir a incapacidade do grande, do maior pássaro dos mares.
Enfim, o último quarteto explicita a relação entre o poeta e o albatroz, comparação preparada com esmero. Semelhante a este último, sacrificado pela tripulação em seu prazer vulgar, o poeta é capaz de viver nas alturas, pois está familiarizado com a tempestade, e não se importa com o arqueiro. Mas, exilado na terra, em meio aos gritos de escárnio de seus algozes, se torna impotente: “suas asas de gigante o impedem de caminhar.”
“O Albatroz” se estrutura a partir da antítese entre o pássaro, símbolo universal de elevação e espiritualidade, e a tripulação grosseira do navio: a massa humana. Acima desta, aquele paira, senhor de si, tranqüilo e majestoso. Na terra, no entanto, ele se sente deslocado, anulado. Chegamos, assim, ao tema do exílio e do reino, uma constante no discurso da civilização judaico-cristã.
Como o pássaro, o poeta. De tanto se fixar no absoluto e no infinito, talvez nem tanto por vontade sua, mas por uma espécie de fatalidade – arquetipal, diríamos -, se torna desajeitado, incapaz, risível, em meio a uma sociedade que se caracteriza por uma competitividade e um imediatismo feroz.
E foi esta a pintura que, sem a menor pretensão de fazer sociologia ou psicologia, apenas exercendo sua função de poeta, em sua ânsia de evasão do quotidiano prosaico, Baudelaire nos deixou do contexto em que viveu. E de si mesmo.
Se pensarmos esta criação literária e a própria pessoa do artista, sob a ótica junguiana, poderemos dizer que esta situação está relacionada (e se exacerba em certos momentos históricos) com o cânon cultural do Ocidente, no qual prevalece o arquétipo do Pai, o consciente, o racional, a força, a ação. No artista, entretanto, prevalece o mundo arquetipal da Grande Mãe, da qual ele jamais consegue se separar para uma liberação da anima. Daí, neste contexto, sua solidão, sua incapacidade de se adaptar à comunidade. Ele fica próximo da criança, com seu mundo mítico das imagens primordiais, e do neurótico. Existe, porém, uma diferença capital separando o artista da criança e do neurótico: a consciência e a criação. Em se tratando apenas de neurose, pode-se falar de criatividade, não de criação.
Os depoimentos dos grandes artistas (ou criadores, de modo geral) os mostram como submissos a um destino. Sua liberdade, neste caminho arquetipicamente determinado, é apenas a de buscar a maneira apropriada para se expressarem, de acordo com sua individualidade, seu tempo e sua missão. É aí que surge o Herói. É assim que ele se ergue e se ultrapassa: na aceitação diante de seu fado, na humildade e disciplina, na determinação de criar, e no amor total com se entrega.
É esta força do inconsciente (por certo, em sua tensão com o consciente) que, paradoxalmente, leva o herói a lutar contra o autoritarismo de certos sistemas, pela criação de novos valores contra aquilo que já se esclerosou. Sonhar – mais que os homens em geral – e criar um mundo novo, eis sua missão. E isto, ele o diz e faz com novas combinações de palavras, arquitetando inusitadas cadeias de sons, rompendo com os paradigmas e as imagens que já se transformaram em clichês (como fez o Simbolismo em relação ao Romantismo), renovando o mundo com a cor e a luz, ou com a obscuridade e a sombra, plasmadas numa tela ou numa escultura, descobrindo novas harmonias da desarmonia. Tateia, ousa, capta relações, sangra rupturas, assim como, tentando ser fiel ao self, terá que atravessar desertos varridos por ventos e tempestades. Ou então, ficará reduzido à máscara. Só recusando-a ele poderá alcançar a individuação, que, segundo Jung, “já não coincide com o ego, mas com um ponto medial entre o consciente e o inconsciente”, e que “seria o ponto de um novo equilíbrio, um novo centramento da personalidade total, um centro virtual, que, devido a sua posição focal entre consciente e inconsciente, garante para a personalidade um fundamento novo e mais sólido.” 3
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Notas:
1- PERRONE-MOISÉS, Leyla, “A luta com o anjo: Baudelaire e Delacroix”, in: Artepensamento, org. NOVAES, Adauto, São Paulo, Companhia das Letras, 1994, p.234.
2- MALLARMÉ, Stéphane, “Le ’Ten O’clock’”, in: Œuvres Complètes, Paris, Pléiade, 1951. (É nossa a tradução do texto citado).
3- JUNG,C.G., “The Relations between the Ego and the Unconscious”, par. 365, citado por NEUMANN, Erich, in: Art and the Creative Unconscious, tradução para o inglês por Ralph Manheim, Princeton University Press (Bollingen Series LXI), Princeton, N. J., 1974, p.74. (É nossa a tradução do texto citado, para o português).
Referências bibliográficas:
1- BAUDELAIRE, Charles, Les Fleurs du Mal, in: Œuvres Complètes, coll. l’Intégrale, Paris, Seuil, 1968.
2- CAILLIET, Emile, Symbolisme et âmes primitives, Paris, Boivin Editeurs, 1936.
3- JUNG,C.G., El hombre y sus símbolos, Madrid, Aguilar, 1969.
4- KANDINSKY, W., Du spirituel dans l’art, Paris, Denoël/Gonthier, 1975.
5- KLEE, Paul, Théorie de l’art moderne, Paris, Denoël/Gonthier, 1975.
6- MALLARMÉ, Stéphane, Œuvres Complètes, Paris, Pléiade, 1951.
7- NEUMANN, Erich, Art and the Creative Unconscious, Princeton, N. J., 1974.
8- NOVAES, Adauto (org.), Artepensamento, São Paulo, Companhia das Letras, 1994.

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