IJUSP-Instituto Junguiano de São Paulo
APTA-Núcleo de Mútua Ajuda a Pessoas com Transtornos Afetivos
Curso de Especialização em Psicoterapia Junguiana
Sombra e Feminismo em Madame Bovary
Autor: Haroldo Cesar Michiles
Tutor: Professora Renata Whitaker
Brasília, julho de 2012
Ensaio apresentado como requisito para aprovação no 2º semestre do Curso de Especialização em Psicologia Junguiana
Resumo
Este ensaio pretende destacar um dos mais importantes personagens da literatura Madame Bovary, no movimento de valorização e de emancipação da mulher: O feminismo. Os aspectos “negativos” e “sombrios” que condenaram o autor Gustave Flaubert à época, se tornaram um século mais tarde o núcleo do movimento feminista, que trouxe entre outros aspectos positivos, a igualdade da mulher na questão dos direitos civis e sua inserção no mercado de trabalho, no direito ao prazer. Aos poucos Ema, o personagem central da Obra de Flaubert e deste ensaio, abandona a persona de esposa recatada, seria e devotada, e como que numa fantasia compensatória, é arrebatada ou possuída sua atitude sombria, conceitos estes ligados à teoria desenvolvida por Jung.
Palavras-chaves: Feminismo. Bovary. Jung. Persona. Sombra. Direitos Civis.
Introdução
“Ema Bovary sou eu”. Foi com essa frase icônica que Flaubert se defendeu nos tribunais da acusação de ter ofendido a moral, a religião, as mulheres e a própria França, sendo em seguida absolvido pela Sexta Corte Correcional do Tribunal do Sena, em Paris, ano de 1857. Motivo? Sua obra Madame Bovary, que foi inicialmente publicada em episódios na Revista Revue de Paris. O autor e seu editor, foram acusados formalmente de terem criado um ser monstruoso, corrompido e odioso: Madame Bovary.
Mesmo sendo absolvido pela Lei, não o foi pelos críticos puritanos do Século XIX, que não o perdoaram pelo tratamento que deu ao adultério, ao clero e a sociedade burguesa da época. Vale destacar que a anti-heroína de Flaubert foi engendrada à luz de um fato real ocorrido numa pequena cidade da França.
Diz a biografia do escritor, que ele foi amigo e significativamente influenciado pelo filósofo Alfred Le Pottevin, que não só compartilhava a atitude negativa do jovem Flaubert em relação à vida, mas o incentivou a aprofundar seus pensamentos sombrios. Some-se a essa amizade à morte precoce do pai, sua epilepsia, a influencia de autores que cultuavam a melancolia como Lord Byron e Rousseau, que tiveram importância real em sua atitude francamente antissocial de comportamento recluso e introspectivo.
Todo esse contexto serve para refletir sobre o DNA psíquico de um personagem tão complexo e ambivalente como Ema Bovary. Seria ela a projeção da sombra do próprio autor? Flaubert, como Ema odiava a hipocrisia, a sujeição feminina, a religião, a sociedade burguesa e a moral da época; envolveu-se em algumas relações com mulheres casadas ou separadas, e a exemplo de sua figura literária, foi muito mal visto por críticos, Igreja, e por vários de seus pares.
O aspecto “sombrio” e “corrompido” do personagem central de Madame Bovary (aspectos estes considerados negativos na época), anteciparam em quase um século, os valores libertários e de emancipação da mulher, que se tornariam o núcleo do movimento feminista na segunda metade do século XX e ficou para a história. Projetou dessa forma sua sombra de forma positiva, pois o movimento feminista não se constitui apenas no radicalismo proposto pela feminista Glória Stein, o da “queima de sutiãs”, mas em especial, pela luta na igualdade dos direitos civis e a ascensão da mulher no mercado de trabalho. Cabe aqui destacar várias mulheres que pouco a pouco vão reconfigurando o poder feminino antes exercido apenas nas coxias, mulheres como as escritoras Gertrude Stein e Simone de Beauvoir, as Chefes de Estado Golda Meir e Indira Ghandi, a Primeira Ministra Britânica Margareth Thatcher, e também pela atriz americana Jane Fonda, que vestindo a sua mais famosa persona, a Hanói Jane, deflagrou um processo contestatório e avant garde, que apressou o fim da mais que estúpida guerra do Vietnam.
Já Flaubert, ao possivelmente projetar sua sombra em Madame Bovary, escreveu uma das mais importantes obras literárias de todos os tempos estabelecendo-se, como um dos fundadores do movimento realista, por meio da criação de Ema, uma personagem que exorciza seus aspectos “negativos e sombrios”, trazendo-os para a consciência e, consequentemente, para história, onde permaneceram, estimulando o inconsciente coletivo.
Assim ninguém melhor do que Ema Bovary para personificar essa urgência de trazer à superfície o novo conceito de feminino.
Feminismo – Conceito que emerge
Essa temática serve para dar eco às criticas políticas que são feitas às instituições como o casamento e a Igreja. A sociedade da época estava presa a um contexto e só conhece a formula racional. Ema é uma jovem típica francesa e burguesa do seu tempo, sonhando com um grande amor, o dos romances. É uma figura dramática que passeia pela metalinguística, “vive” um romance imersa no mundo de outros romances. Se vê e se sabe como personagem, e para ela, a vida a que foi destinada, não a satisfaz.
Ema sintetiza a luz dos valores do século XIX, a própria anti-heroína. Flaubert desconstrói, e de maneira oblíqua deprecia por meio dela, os valores burgueses da sociedade e em especial, da imagem da mulher da época, cuja virtude maior estava no comedimento e no recato. Inteligente, bela e insaciável, ela se torna ao longo da obra, o oposto dessa mulher idealizada. Obrigada a casar-se com um médico apático e passivo (que não sabia nadar, esgrimir, andar a cavalo como os heróis românticos dos livros lidos por Ema), de uma pequena cidade do interior da França, foi tomada então pela monotonia e pela crescente frustração dos sonhos não realizados de diversões urbanas, do amor erótico, da aventura, da paixão arrebatadora e do luxo.
Ao ver a vida lhe negando uma a uma essas tantas expectativas, é tomada pelo contraponto com a mesma força, e ao abandonar todo o recato, sai como uma bacante do deus Dionísio, na busca do prazer e do amor fantasioso. Enquanto Carlos “nada desejava e nada sabia”, ela, porém, “tinha a vida fria de um celeiro aberto para o norte; e o tédio, uma aranha silenciosa, ia tecendo a sua teia na sombra de todos os cantos de seu coração…” De um amante para outro, de uma divida para outra maior, assim vai Ema construindo o enredo do seu destino, ou mesmo do seu fim.
No século XIX, como já destacamos acima, o ideário de mulher era o da “rainha do lar”, e Madame Bovary respondendo aos apelos do seu tempo, desempenhava ou interpretava a princípio, o papel dela esperado, ou a persona da esposa séria, devotada, recatada, religiosa, prendada e preocupada com o bem-estar da família e com a salvação de sua alma. Flaubert diz que “os burgueses admiravam-lhe a economia; os clientes a polidez; os pobres a caridade, todavia, ela fremia de desejos, de raiva, de ódio. Aquele vestido de pregas escondia um coração revoltado, e aqueles lábios tão pudicos nada revelavam de seu intimo tormento”.
Ema, em seus devaneios dizia a si mesma: “tenho um amante. Um amante”. E deleitava-se com essa ideia. Mas, não só no romance de Flaubert, como em quase todos os romances daquela época, a mulher paga um valor muito alto por transgredir. Como aos mártires, esse preço é cobrado com o sacrifício da própria vida. Não há pois, redenção sem sangue. Essas heroínas pagam com a vida o preço do prazer, seja a Luisa de O Primo Basílio de Eça de Queiroz, seja a Anna Karenina da obra de Tolstói, ou mesmo a própria Ema da obra de Flaubert. De uma forma ou de outra, o romance burguês exerceu e talvez ainda exerça (aliado ao cinema, TV e outras mídias) em algum nível, um papel de contenção, de controlador da moral e da manutenção do status quo.
O ideal do amor almejado (insuflado pela literatura romântica do século XIX, como Balzac e George Sand, de que Ema é leitora e personagem), começa pouco a pouco a insurgir-se contra a verdadeira camisa de força que é o contexto moral que a cerca, dando gradativamente um novo lugar a ela, sustentada pelas novas ideias liberais iluministas que pregavam autonomia e liberdade, valores esses que passam a habitar a alma inquieta de Ema, ou de seu criador, Gustave Flaubert, que aliás, constrói o marido de Ema, Carlos Bovary, com elementos pessoais. Ambos eram de Rouen, um médico e o outro filho de médico.
Tédio, frustração, desilusão, irritação, monotonia, invernos rigorosos e inveja, levam-na, pouco a pouco a desvestir-se da sua persona, ao mesmo tempo em que vai sendo tomada ou mesmo arrebatada por sua “atitude sombria”. Talvez sua sede de vida a leve com uma força brutal, a se entregar a aventuras, se relacionando com outros homens, gastando muito, mentindo, manipulando, enganando, atitudes reprimidas na sombra que a moral vigente não permitiria jamais que fossem integradas ao ego. Procurava de início de seu casamento com Carlos, satisfações imaginárias para seus apetites pessoais.
Felicidade, paixão e embriaguez não faziam, como já destacamos anteriormente, parte do repertório feminino daquele tempo. Prazer e satisfação sexual definitivamente não eram coisas de “moças de família”. Os estereótipos femininos são construídos sob a base do coração, centro de toda a vida da mulher, e que a psicanálise viria mais tarde, a definir e a reduzir pelo útero. Basta ver que o termo histeria, vem etimologicamente do grego hustéra, cujo significado é útero. O termo passa então a ser adotado para designar distúrbios de origem mental que afligem as mulheres: sua condição feminina é, para a Ciência, positivamente patológica.
De volta à obra em epígrafe, vale destacar um trecho em que a mãe de Carlos (marido de Ema), diz para ele: “Ela se ocupa? Em quê? Em ler romances, maus livros, obras contra a religião, em que se zomba de padres com discursos tirados de Voltaire. Mas tudo isso tem fim, meu filho, quem não tem religião termina sempre mal”. E sugere ainda a Carlos que deveria proibir-lhe terminantemente de ler romances, e se o livreiro insistisse em vendê-los, deveria chamar a polícia, pois ele estava “envenenando” a alma dela.
Persona versus Sombra
Para falar do aspecto sombrio do personagem (aos olhos da sociedade da época), temos que trazer alguns conceitos de Jung. Segundo ele, possuímos um lado consciente e outro inconsciente, desconhecido. Um dos elementos desse inconsciente é a sombra. O ideal do ego, diz-nos que devemos ser perfeitos, leais, honestos (Ema bem que tentou) mas, a nossa personalidade tem também aspectos negativos (mesmo que não queiramos ou passamos mostrá-los), como a mesquinharia, a maldade, a traição, agressividade, a raiva, a inveja, que também são próprios do ser humano e reprimimos na nossa sombra.
Quando menos esperamos, nos momentos de fraqueza psicológica, de frustração extrema, de tensão, a sombra aparece e nos ataca, nos possui. Perdemos o controle, agimos com raiva, hostilidade, conteúdos que não são próprios da nossa persona. Ficamos possuídos por nossa sombra que, como num transe, nos tem. No caso de Ema Bovary, a jovem casada, calma, religiosa, delicada e ex-aluna de um convento, é quase que substituída por outra mulher que, frustrada em suas expectativas, se atira num voo cego, o das aventuras amorosas e perigosas, em gastos desmedidos, ao sexo com amantes desconhecidos, entregando-se a uma fantasia compensatória, refugiando-se na literatura e aventuras, da realidade frustrante em que vivia. Seria então esse “modus operandi” a constelação de seu lado sombrio e pouco conhecido?
Jung define a Sombra de uma maneira simples, direta e clara, quando disse que é “aquilo que não queremos ver” (JUNG, 1998, p.128). Vale destacar que nesta simples afirmação estão incluídas as variadas e repetidas referencias à sombra como o lado negativo da personalidade, ou seja, a soma de todos os aspectos desagradáveis que o individuo quer esconder, o lado inferior, sem valor e primitivo da natureza do homem, a “outra pessoa”, o lado obscuro de um individuo.
Para Jung (1986) a sombra é um arquétipo que reside no Inconsciente Pessoal, quando procede das experiências do Ego. Entendemos por Incosnciente Pessoal, a porção do inconsciente que carrega todos os conteúdos das vivencias e de pensamentos que o individuo experimentou, mas não registrou, conteúdos esses que acabou por reprimir e esquecer e, ainda, disposições instintivas que nunca chegaram a atingir o limiar da consciência. Portanto, se encontra próxima da consciência, e justamente por isso, seus conteúdos podem ser mais facilmente identificados e acessados, do que os outros arquétipos que residem no Inconsciente Coletivo.
O arquétipo da Sombra também reside no inconsciente coletivo, como elemento antagonista. A sombra é constituída de elementos com fortes bases morais, guardando em si os traços obscuros da personalidade com expressiva carga emocional e possuindo certa autonomia. É a imagem de todos os aspectos da personalidade em que poderíamos nos transformar (HILLMAN, 1981, p; 208).
Vale acrescentar ainda que a sombra revela um potencial de desenvolvimento criativo ou destrutivo, normal ou patológico. Vai então se consolidando paralelamente à formação do Ego, visto que nossa estruturação egóica tem base eminentemente cultural, formatada em conceitos de certo e errado, de bem e de mal, luz e escuridão, enfim, sempre atuando com conceitos bipolares. Os valores familiares vão, desde a tenra infância, buscando desenvolver a Persona e uma autoimagem do Ego. Os elementos desvalorizados, negados ou reprimidos pela família, também não são aceitos numa criança. Assim, não deixam de existir, são apenas inconscientes.
Por esse viés, o mau e o errado, recaem então sobre a sombra, tornando-a amedrontadora. Em pouco tempo o lado suprimido trona-se reprimido: o arquétipo da sombra, que é um potencial de valores destrutivos, vira um “instinto do mal”, sendo então ativado pelos impulsos rejeitados na vida diária. Quanto mais adequado me torno, mais a sombra se alimenta de motivações contrárias, até chegar aos extremos de um Dr.Jekyll e Mr.Hyde. Como a sombra é uma figura arquetípica, e não apenas um nome para disfarçar o reprimido, temos que considerá-la como uma personalidade viva, com intenções, sentimentos e ideias (HILLMAN, l981).
Aliás, no conto de Stenvenson “O Estranho caso do Dr. Jekyll e de Mr.Hyde”, é observada uma cisão entre Ego e Sombra, numa visão extrema. Não é o que se vê no personagem síntese deste ensaio, uma vez que não há uma cisão de fato, e sim uma vontade de viver que supera qualquer medo. No caso de Ema, essa sombra pode ser encarada aos olhos de hoje, como um aspecto positivo, ou mesmo a hýbris da heroína, ou anti-heroina, pois a leva para a vida e para a realização de seus desejos, mesmo que o autor tenha tido que levá-la ao suicídio. Aos olhos do mundo do século XXI, esse é um final moralista. Mas, provavelmente no contexto do século XIX, nem toda a ousadia do mundo o faria deixar viva uma mulher adúltera que não fosse alguém como Marguerite Gautier ou mesmo Naná, famosas prostitutas, personagens centrais das obras de Alexander Dumas Filho e Emile Zola.
Retomando a discussão da sombra, está será sempre projetada e terá como símbolo, geralmente, uma figura do mesmo sexo do individuo ou de um animal, fazendo com que este se afaste do mundo real, vivendo no mundo ilusório, sem se dar conta de sua própria responsabilidade no que tange a criação de um mundo externo hostil. Com isso pode-se explicar as antipatias pessoais e os preconceitos. Ema foi vítima de tudo isso. Como se sabe, não é o individuo que projeta, e sim o próprio inconsciente que também engendra uma trama que tem por objetivo o isolar o individuo. A Sombra pede passagem e toma posse.
Entretanto a Sombra pode manter-se distanciada da consciência por dois outros mecanismos de defesa, que não a projeção, os quais seriam a negação (nega-se a existência das características sombrias), e a repressão (exclui-se os conteúdos indesejados da consciência alojando-os no incosnciente). Estas ultimas tendem a transforma-se em sintomas psicossomáticos ou até doenças graves.
Byington (1984) conceitua a Sombra Patológica. Esta se forma através das intensas defesas do Ego, pois a energia que deveria ser distribuída, quando reprimida, acaba por alimentar a Sombra, e quanto maior a defesa maior a energia canalizada para a Sombra, que com isso vai adquirindo vida própria e, quando se expressa será responsável pelas mais inaceitáveis formas de conduta e comportamento. Como foi dito anteriormente, não é esse o caso do personagem tema deste ensaio. Enxergamos aqui não só Mr.Hyde, como o Dorian Gray, da obra de Oscar Wilde.
Deve-se ressaltar o fato de que Byington, como expoente da psicologia simbólica define sombra e persona como estruturas pré-egóicas, ou seja, desenvolvendo-se juntamente com o Ego e participando da estruturação da consciência. Portanto, o confronto seria particularmente sentido entre Persona e Sombra e estruturado pelo Ego (Byington, 1988).
A polaridade Persona-sombra poderia ser descrita pela conduta adotada pela adaptação e aceitação social (persona) e o que não se aceita pela consciência (sombra). (Byington, 1987).
Ainda segundo Byington (1988), a Sombra Normal é aquela que pode ser conscientizada e integrada, ou seja, aquela cujos símbolos podem ser confrontados quando o ego a tal se dispõe. O mesmo não ocorre com a Sombra Patológica, que é aquela cujos símbolos não têm acesso à consciência devido às defesas patológicas. É aqui que se centra o foco deste ensaio, nessa sombra é que vai se construindo a nova Ema Bovary.
Nise da Silveira, em Jung Vida e Obra (2011), diz que “a sombra é uma espessa massa de componentes diversos, aglomerando desde pequenas fraquezas, aspectos imaturos e inferiores, complexos reprimidos, até forças maléficas”. Mas também na sombra, poderão ser discernidos traços altamente positivos: qualidades valiosas que não se desenvolveram devido a condições externas desfavoráveis ou porque o indivíduo não dispôs de energia suficiente para leva-las adiante, quando isso exigisse ultrapassar convenções vulgares.
Conclusão
Para a época, Ema era um ser monstruoso e com voluptuosidade depravada, por ter ultrapassado tantas convenções, mas aos olhos de hoje, a personagem de Flaubert, bate de frente com a moral hipócrita do século XIX. Por meio de Ema, o autor abre janelas e possibilidades de se viver de uma outra forma que não aquela imposta pela sociedade, igreja, moral do século em que viveu, mesmo que a personagem tenha como castigo a morte por envenenamento com arsênico. Não seria esse arsênico apenas uma metáfora para o que realmente tinha envenenado Ema, ou seja, os valores da moral religiosa, hipócrita e crítica da época?
A milenar opressão feminina é um dado histórico incontestável. Da mulher foi roubado o próprio corpo na medida em que foi demonizado pela religião, de Pandora à Eva. Esse corpo seria a porta de todos os males que afligem o mundo, a materialização de todo o pecado. Também da mulher foi roubado o próprio riso. A mulher “alvoroçada” serviu por muitos e muitos anos de alerta: “muito riso é sinal de pouco siso”. O ideal burguês da dona de casa era para pouco, muito pouco. A mulher, como diz Simone de Beauvoir na obra O Segundo Sexo, “é sempre vista da perspectiva masculina. O feminino é uma criação do homem”.
É claro que não há elementos concretos confirmando ou mesmo apontando que Madame Bovary era a projeção da sombra de Flaubert, mas é fácil intuir que há uma identificação da inquietação do autor com os valores morais que o iluminismo auxiliaria a flexibilizar.
De uma forma ou outra, o autor ao exorcizar seus demônios, anuncia um tempo que estava por vir. Ema Bovary esboça ou desenha um movimento que poucos anos depois seria nomeado de feminismo. Vale lembrar que somente no final do século XIX e começo do século XX, as mulheres passaram a ter direito ao voto em alguns países da Europa (no Brasil só acontece em 1932). Logo viria a luta pela igualdade no campo e conquista de outros direitos civis além do voto, como o direito ao amor livre e à pílula anticoncepcional, a participação na política e nas diversas esferas do poder. Até na legislação, a mulher foi por séculos e séculos classificada como ser de segunda linha. Basta lembrar que o Código Civil Brasileiro vigente até 2003, preceituava que a mulher não virgem, poderia ser devolvida pelo marido aos seus familiares até sete dias após o casamento. Somente a Constituição de 1988, prevê a igualdade entre homens e mulheres perante a lei.
Mesmo com todos os avanços e a proteção legal, a mulher ainda tem uma árdua batalha para se inserir no mercado de trabalho e principalmente, para ter salários iguais ao dos homens. A bem da verdade, o percurso do movimento feminista teve como projeto embrião não só a Ema de Flaubert, como também, o obra ícone de Simone de Beauvoir, O Segundo Sexo. Se fossemos construir uma espécie de árvore genealógica das mulheres que fizeram e mudaram a história, sejam reais ou de ficção, a Ema Bovary criada por Flaubert certamente estaria lá. Antes de Bertha Lutz, de Marguerite Yourcenar, de Beauvoir, de Olga Prestes, de Lispector, de Indira e Golda, de Thatcher, de Bachelet, de Merkel, de Dilma e de tantas outras Marias e Clarices, como diz a música lindamente cantada por Elis…
Referências
BYINGTON, Carlos. O conceito de sombra patológica com o conceito de defesa dentro de uma teoria de psicopatologia simbólica. Junguiana nº 2 Petrópolis:Vozes,1984.139p.
FLAUBERT, Gustave. Madame Bovary. Editora Nova Cultural Ltda. 2003.
GRANT, Walkiria, PATRASSO, Raquel. O Feminino, A Literatura e a Sexuação. Psic. Clín.Rio de Janeiro, vol.19, n.2, p.133-151, 2007.
HILLMAN, James. Estudos de psicologia Arquetípica. Rio de Janeiro.Achiamé.234p.
JUNG, Carl Gustav. Aion- Estudos sobre o si-mesmo (O.C.Vol IX/2). 2 Petrópolis: Vozes,1986
JUNG, Carl Gustav. Psicologia do Inconsciente (O.C.Vol VII/1).11 Petróppolis: Vozes, 1998ª.160p
SAMUELS, Andrew; SHORTER, Bani; PLAUT, Fred. Dicionário Crítico de Análise Junguiana. Rio de Janeiro: Imago, 1988.236p.
SILVEIRA, Nise. Jung Vida e Obra. 22ª reimpressão. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2011.
Documentos eletrônicos
VERUNSCHK, Micheliny. Entre a Rosa e Camélia :Uma Leitura de Teresa e Emma. In: www.musarara.com.br
(consultado em 3/3/2012)
LASHERAS, Anyara Menezes. O arquétipo da sombra no romance “O Retrato de Dorian Gray”. In:
http//:br.dir.groups.yahoo.com/group/Estacao_Palavra/message/
(consultado em 3/3/2012)